sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Carol Proner: julgamento de Lula mostrou ao mundo como Judiciário pode ser primário

ENTREVISTA

Carol Proner: julgamento de Lula mostrou ao mundo como Judiciário pode ser primário

Em entrevista, jurista diz que veículos internacionais viram falta de princípios na condenação do ex-presidente

Brasil de Fato | São Paulo (SP)
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O julgamento do ex-presidente Lula mostrou ao mundo como o sistema Judiciário, quando necessário, pode ser primário, disse jurista / Facebook/Divulgação
O julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), realizado no dia 24 de janeiro em Porto Alegre (RS), mostrou ao mundo como o sistema Judiciário, quando necessário, pode ser primário em relação ao direito dos réus, cometer violações de prerrogativas legais e usar provas ilícitas para fazer valer um ponto de vista. Essa é a avaliação da jurista Carol Proner, doutora em Direito e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo Proner, que participou recentemente de um encontro com juristas na Espanha, a opinião pública estrangeira recebeu muito mal o resultado do julgamento. Para a jurista, veículos como o The New York Times e Le Monde Diplomatique fizeram questão de ressaltar a “falta de princípios estruturantes do mínimo do que seria um processo considerado justo”.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Proner, que integra a Frente Brasil de Juristas pela Democracia, também falou sobre os próximos passos do processo que envolve o ex-presidente, a Lei da Ficha Limpa e o poder do capital que, segundo ela, tem cada vez mais influenciado setores do Judiciário.
Confira alguns trechos da entrevista.
Brasil de Fato: Quais foram as justificativas que levaram o Tribunal Regional Federal da 4ª Região a aumentar a pena do ex-presidente Lula de nove para 12 anos?
Carol Proner: A sentença é, do ponto de vista técnico, muito questionável. Já os artigos dos especialistas em processo penal, que trabalham com as garantias jurídicas, têm sido implacáveis quanto ao direito de liberdade, direito de ser inocente até que se prove o contrário. É muito grande a quantidade de argumentos que fazem com que a sentença em segundo grau seja ainda mais surpreendente no sentido do não respeito ao direito.
É muito grave a forma acelerada como se fez esse julgamento, tentando alcançar um marco legal da Lei da Ficha Limpa, obviamente, considerando o calendário eleitoral para impedir que Lula seja candidato. Isso é transparente e evidente. Isso é comprovado pela forma acelerada e orquestrada na formulação dos votos, que não dá margem para qualquer tipo de dissonância técnica ou jurídica para, eventualmente, embasar um ou mais recursos que não sejam os embargos declaratórios.
Nesse caso, nós temos uma situação clara a respeito da tentativa do uso recursal e da aplicação da Ficha Limpa para impedir que Lula seja preso, mas muita coisa nova está surgindo. Tanto o juiz Sérgio Moro como o Tribunal de Porto Alegre, fizeram um jogral que não deu margem para os embargos infringentes e para poder questionar as diferenças de posicionamentos.
Daqui em diante, o que pode ser feito em relação ao processo do ex-presidente Lula? Quais devem ser os próximos passos?
Os advogados de defesa já estão mirando os tribunais superiores, vão usar todos os recursos disponíveis e estão fazendo isso de uma forma muito correta, muito atenta. Eu tenho a impressão que não vamos abrir mão tanto de expor a tecnicidade do julgamento, quanto utilizar a tecnicidade para fazer a defesa do ex-presidente de forma correta para garantir que ele possa se candidatar.
Agora, a sociedade está reagindo de forma surpreendente, porque as pesquisas de opinião mostram que Lula não foi afetado nas intenções de voto pela condenação. Isso significa que a sociedade brasileira está entendendo esse processo como uma farsa jurídica. 
A impressão que dá é a percepção cada vez maior de que o Judiciário já está se envolvendo nas eleições, o que é absolutamente inadmissível. É preciso dialogar, de forma paradidática com a Suprema Corte, pela responsabilidade que ela tem em conter os avanços desse caso específico de jurisprudência. Nós estamos falando do poder Judiciário, um poder legítimo de exercício da administração da justiça.
O ex-presidente Lula tem a possibilidade de, por meio de uma brecha da Lei da Ficha Limpa, garantir a sua candidatura, mesmo com outra chapa tentando impugná-lo depois das inscrições oficiais em 15 de agosto?
Sim, há uma brecha na Lei da Ficha Limpa que já foi usada por diversas outras pessoas em situações parecidas. Obviamente não eram ex-presidentes da República e não era uma candidatura à Presidência da República, mas candidaturas eleitorais que foram, através dessa brecha, mantidas e depois confirmadas após julgamento no Supremo Tribunal Eleitoral.
Então tudo está posto agora a prova nesse caso. Qual é a tônica principal? Eu volto a dizer: nós estamos vivendo uma fratura institucional muito grave por conta de um impeachment sem crime de responsabilidade, que traz à sociedade brasileira a sensação de estar sendo governada por usurpadores, que estão fazendo um governo antipopular, antissoberano, o que acaba assustando muito as pessoas. 
O advogado do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Geoffrey Robertson, fez questão de assistir ao julgamento do ex-presidente Lula e tem falado sobre as irregularidades cometidas. Como o caso tem sido visto internacionalmente?
Dos 300 jornalistas que estavam em Porto Alegre acompanhando o julgamento, mais de 50 eram jornalistas estrangeiros. No The New York Times e no Le Monde Diplomatique, logo depois da sessão, foi destaque o primarismo desse julgamento em relação aos direitos de defesa do réu, da própria defesa, a violação das prerrogativas, o uso de provas ilegais, ilícitas, enfim, a questão da paridade das armas, uma série de princípios estruturantes do mínimo do que seria um processo considerado justo.
O Geoffrey Robertson já tinha conhecimento do caso, vem acompanhando pelas ações da defesa junto às Nações Unidas. Mas ele quis estar presente observando daquela sala destinada às autoridades e saiu escandalizado pelo que viu.
A gente acabou de voltar de um seminário internacional que falou da pós-democracia, ou do chamado capitalismo neoliberal pós democrático. Estamos vivendo, no mundo inteiro, um capitalismo tão agressivo que ele já não precisa mais de instrumentos democráticos. Até que ponto o poder Judiciário, os setores do poder Judiciário, o controle dos tribunais, não são uma estratégia do grande capital?
Muito tem se falado sobre uma reforma do Judiciário, eleição para juízes… Esse é o momento de começar a pautar esse tipo de discussão?
Discutir uma reforma judiciária na crise que nós estamos, com o Congresso que temos, diante dessa correlação de forças absolutamente desfavorável a qualquer princípio democrático, em qualquer um dos poderes, seria inviável. Agora, já há tentativas de discutir as crises nos poderes, porque isso gera uma ansiedade popular muito grande, dessa sensação de estar sempre sendo enganado pelos políticos, uma desvalorização da ideia de partido e de político. Tudo isso é crise, mas isso não dá direito que o Judiciário se desloque tanto assim da sua função. 
Estão, portanto, na vitrine desse processo político atual, não apenas porque nas mãos desse poder está a possibilidade da sanidade eleitoral de 2018, como também pelo fato de que eles tenham algumas fragilidades, algumas debilidades com relação ao que se poderia ser considerado justo em uma sociedade.
A começar com seus salários, e não os salários em si, mas o que eles chamam de 'penduricalhos', esses extras que geram um valor muito além daquilo que seria a média de recebimento de um funcionário público.
O caso do juiz [Marcelo] Bretas, do Rio de Janeiro, é o mais simbólico nesse processo e serve de lição. Ele mesmo tirou sua conta do Twitter depois do debate que teve, do twitaço que foi feito, porque não se sustenta que duas pessoas casadas recebam o mesmo benefício. Se não é um critério normativo é um critério de justiça, e é um juiz, é um magistrado, está dando um exemplo social.
Sobre a exposição rotineira do Judiciário nos meios de comunicação. O quanto isso influencia também o voto dos juízes?
O Judiciário não pode se queixar da exposição, que acaba afetando toda a corporação. É um fenômeno que já não se pode controlar. Uma vez que eles vão para o campo político, deslocando-se da sua função original de inibir conflitos, de administrar a justiça no campo jurídico, quando eles querem também atuar naquilo que não seria a sua competência original, vão dar asas também para que a sociedade reaja politicamente.
Então, quando os juízes são atacados, é desagradável ver juízes sendo atacados aí na rua, quando estão de férias, dentro de um avião, é super desagradável. Eu pessoalmente acho um absurdo, eu não faria isso por uma questão republicana, institucional, democrática, mas é compreensível. Talvez não seja aceitável, mas é compreensível que isso aconteça diante do papel extrapolado funcional que eles estão exercendo.
Isso deveria ser um alerta para gerar uma reflexão interna dentro do poder Judiciário. Agora veja: é um poder com muito autopoder. Eles se autogovernam, se autorregulam, regulam seus próprios salários, definem seus próprios salários, não tem um controle popular porque não são eleitos.
Existe a possibilidade da candidatura do ex-presidente Lula acontecer, mesmo que ele seja preso?
É um debate, porque ele pode ser preso com o julgamento em andamento. Em tese, poderia ser possível sim, porque ele não foi julgado, não houve trânsito em julgado. E uma decisão da Suprema Corte ainda está para ser suscitada — e provavelmente será no momento em que o processo chegar na segunda turma.
Então, o que esperar do Supremo Tribunal Federal? Não pode haver prisão, é injusto o processo e a confirmação da sentença. Os movimentos sociais vão se levantar independente de apoiarem ou não o Lula porque tem candidaturas avulsas de partidos de esquerda.
Ele [Lula] representa muita coisa, não apenas um candidato do PT, mas uma pessoa que trouxe para o Brasil uma possibilidade de inclusão social que o país nunca teve e, agora, o contraste muito grande com a destruição do país em todos os âmbitos. Eu não vejo ninguém contente, mesmo as pessoas que não estão reagindo ainda, daqui a pouco vão se dar conta do legado. O legado não é do PT, mas de uma mistura de políticas públicas apoiadas em uma democracia de coalizão com a luta popular para manter seus direitos e suas garantias.
Edição: Nina Fideles

A missão impossível do General Braga Neto


A missão impossível do General Braga Neto

imposible
No pouco que falou até agora – porque quase não o deixaram falar – o General Braga Neto tem demonstrado serenidade e aversão a entrar em ondas de histeria ou de demagogia como aquela que um dos conselheiros de Michel Temer nesta intervenção, Moreira Franco, prometeu, quando candidato a governador, de “acabar com a violência em seis meses”.
Mas ele está sujeito ao ditado militar de que “missão não se recusa, se cumpre”
Resta saber o quanto desta missão  poderá ser feito sem a necessidade de “mostrar serviço” com ações espalhafatosas, mas ineficientes.
Em qualquer escola militar, quem propusesse uma ação de mil homens para capturar três ou quatro “inimigos ”  e uma pistola .40 seria desqualificado pelo emprego ineficiente dos meios à sua disposição.
Mas, no caso atual, paralisar a cidade criando transtornos ao trânsito  das pessoas, por uma, duas ou três semanas será “positivo”,  dará “visibilidade”, embora com aqueles resultados pífios.
Se o general, porém, for ao cerne da ferida, terá problemas.
Se mexer com a “banda podre” do organismo policial que suga o crime, aí terá problemas.
Como tivemos, no Governo Brizola, quando o fizemos.
Os “top moments” de violência que enfrentamos – o massacre da Candelária e o de Vigário Geral – foram produzidos por policiais que sabiam que atingiriam, com eles, a “maldita” política de direitos humanos. Como tivemos a mídia a promover um único e duvidoso “arrastão” na praia – até parece que não temos dúzias deles hoje, não é? – como prova do descalabro que Leonel Brizola tinha levado a segurança pública no Rio.
Pois é: nos invadimos as favelas,sim. Com escolas de primeira linha, com serviços públicos, com respeito aos direitos que seres humanos merecem, morem na Vieira Souto ou no Morro do Alemão.
Está além do poder do general em fazê-lo, não se pode cobrá-lo por isso.
A intervenção que a cargo do general se pôs não tem as ferramentas do diálogo com as comunidades.
Seus soldados serão como americanos no Iraque, empurrando gente para o Estado Islâmico, se não as tiverem.
A missão dada ao general é impossível e, se tomada ao pé da letra se autodestruirá em  pouquíssimo tempo.
Se o general é, como parece, da minha geração,sabe que as guerras se travam não pelo corpos físicos , mas por corações e mentes.

Reforma da Previdência: governo não diz, mas valor das aposentadorias vai cair

ENTREVISTA

Reforma da Previdência: governo não diz, mas valor das aposentadorias vai cair

"A reforma da Previdência de 2017, ao invés de corrigir um suposto déficit fiscal, vai gerar um déficit de cidadania"

"A verdade é que o objetivo é fragilizar a previdência pública para privatizar" / Alex Ferreira / Câmara dos deputados
Muito antes de o governo Temer propor a "reforma" da Previdência por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287 (na prática, um desmonte do sistema), a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Denise Gentil já desmontava uma das teses centrais que seria usada para justificar o projeto. Em sua tese de doutorado A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005, ela explicava que a Seguridade Social – que engloba a Previdência – é superavitária, levando-se em consideração todos os recursos assegurados constitucionalmente que eram desviados.
Mas o governo não só omite tais dados, como ainda toma diversas medidas que enfraquecem o caixa previdenciário, como é o caso das desonerações e perdões de dívidas das empresas. "Não é difícil concluir que o governo Temer não tem nenhuma intenção de produzir o equilíbrio fiscal com a reforma da Previdência, porque as receitas já foram destruídas com a concessão de isenções tributárias e perdões de dívidas para as grandes corporações e com a reforma trabalhista", explica. "O caos já está instalado e foi produzido pelo governo federal e pelo Congresso Nacional em 2017."
Na entrevista abaixo, ela fala sobre essas questões e também aborda a campanha publicitária promovida pelo Planalto para tenta convencer a opinião pública da necessidade da PEC 287. "Amudança na aposentadoria dos servidores é peça de propaganda para a sociedade direcionar seu ódio para o lado errado e não enxergar quem, de fato, está ganhando com a reforma da Previdência."
O relator da PEC 287 fez novas alterações na matéria para tentar discutir e aprovar o texto até o final de fevereiro. Essas mudanças mudam a essência da proposta?
Nada mudou. A única alteração parece ter sido a pensão integral para viúvos e viúvas de policiais mortos em combate.
Quais as principais imprecisões – e mentiras mesmo – que  podemos identificar na atual campanha do governo pela "reforma" da Previdência?
A primeira é a de que vai combater privilégios. O governo redefiniu, a seu modo, o significado da palavra privilégio.
Ao longo de 2017, o governo Temer fez quatro Refis. Para quem não sabe, Refis é uma abreviação para o refinanciamento de dívidas das empresas para com a União, ou seja, é o perdão e parcelamento de dívidas que representam a concessão de enormes privilégios tributários que desfalcam a Previdência e o Tesouro Nacional. O governo fez o Super-Refis das empresas, através da Lei nº 13.496 de 2017, cujo prejuízo para os cofres públicos está estimado em mais de R$ 500 bilhões durante os próximos três anos; fez o Super-Refis dos produtores rurais por meio da Lei 13.606 de 2018, concedendo favores aos ruralistas que gerarão um prejuízo de R$ 15 bilhões para a Previdência; fez também o Refis das petrolíferas, considerado uma vitória devastadora do capital multinacional do setor de petróleo e gás sobre as jazidas do país, e nesse Refis o Congresso perdoou R$ 54 bilhões em tributos devidos pelas empresas do setor entre 1997 e 2014.
Adicionalmente, numa clara entrega do patrimônio natural do país ao capital internacional, favoreceu, imediatamente, as vencedoras do leilão do pré-sal de outubro/2017 (Exxon Mobil, Petrogal, Repsol Sinopec, Shell, Statoil, Total, PBEnergy, Petrobras, CNODC, CNOOC e QPI), ao permitir que, a partir de 2018, tenham redução da base de cálculo e isenção do pagamento de impostos e contribuições que farão uma renúncia de receitas estimada em R$ 1 trilhão nos próximos 25 anos ou de R$ 40 bilhões ao ano. As desonerações, ao isentarem de tributos a produção de navios e as importações, destroem a indústria naval brasileira, eliminam milhares de empregos diretos e indiretos no Brasil, acabaram com a política de conteúdo local estimulando o conteúdo internacional e diminuem, consideravelmente, o impacto positivo do petróleo no PIB brasileiro. O governo Temer também fez o Refis de estados e municípios, que concedeu descontos de 40% em multas e encargos e de 80% nos juros, e com isso a estimativa de perda de receita da Previdência é de R$ 35,4 bilhões.
Depois de causar essa demolição nas receitas da Seguridade Social, favorecendo empresas nacionais e transnacionais, concentrando renda em escala descomunal, provocando, deliberadamente, tamanha desigualdade social, o governo diz que os servidores públicos é que são os privilegiados. O que seria privilégio para o governo Temer? Pretende criar uma nova definição para essa palavra? O que houve em 2017 foi a demolição total das receitas da Previdência. Quero deixar claro que o governo fez de tudo para quebrar a Previdência ao conceder esses privilégios.
A verdade é que o objetivo é fragilizar a Previdência pública para privatizar, criando o medo nas pessoas sobre o futuro, empurrando os cidadãos brasileiros para os fundos privados de previdência complementar que são muito caros e muito inseguros. E, ao mesmo tempo, a reforma objetiva atirar o ônus do ajuste fiscal sobre os ombros dos assalariados, do setor público e do setor privado do país, principalmente dos mais pobres.
De que modo a proposta afeta as camadas de baixa renda?
A idade mínima, ou melhor, duas idades mínimas, de 65 anos para homens e 62 para mulheres, não é justa. Em um país subdesenvolvido, com estruturas produtivas extremamente heterogêneas, com enormes desigualdades regionais entre sudeste e sul, de um lado, e norte e nordeste, de outro, e com distâncias abissais entre ricos e pobres nas grandes metrópoles é uma insanidade impor idade única para homens e mulheres. A expectativa de vida é radicalmente distinta entre as classes sociais, de forma que os mais pobres não vão alcançar a aposentadoria. Poucos alcançam hoje, menos ainda alcançarão no futuro, porque além de tudo essa idade é móvel, isto é, ela se eleva com o aumento da expectativa da média dos brasileiros. Isso não é apenas injusto. É absurdo.
Outra coisa que precisa ser dita é que a reforma Temer prejudica as mulheres. A aposentadoria por idade aos 65 anos para os homens já está em vigor, embora, hoje, não seja móvel. A reforma pretende implantar um aumento da idade de aposentadoria para as mulheres, de 60 para 62 anos. Com base no quê? Como o governo justifica? As mulheres passaram a ter mais empregos dignos com a crise? Os salários das mulheres se elevaram na recessão? Estão cuidando por menos tempo das crianças, dos idosos e dos enfermos da família porque foram criadas mais creches e escolas em tempo integral? Foi implantada alguma estrutura de cuidados para com os idosos no SUS? A vida das mulheres melhorou recentemente no país? As mulheres devem reagir a uma reforma que aumenta a discriminação de gênero. As mulheres, quando chegam aos 60 anos, já trabalharam, em média, por cinco anos a mais que os homens que chegam nessa mesma fase, se forem consideradas as horas de trabalho doméstico. Portanto, 60 anos para a aposentadoria por idade das mulheres permanece razoável.
Outro problema que o governo não revela nas suas propagandas da reforma é que o valor das aposentadorias do setor privado, ou seja, do RGPS, vai cair muito. Quem se aposentar com 15 anos de contribuição e preencher o requisito da idade mínima (65 anos para homens e 62 para mulheres) vai receber um benefício parcial, de apenas 60% da média de todas as suas contribuições. Há um duplo prejuízo. Primeiro, o valor da aposentadoria será menor, porque hoje esse percentual é de 85%. Segundo, o valor do benefício será menor porque, na regra atual, é utilizada a média dos 80% maiores salários de contribuição, mas a proposta de reforma fala da média de todas as contribuições, o que inclui os mais baixos salários recebidos pelo trabalhador, puxando o valor da média para baixo. Vai ter perda, sim. Mas, o governo não se importa em dizer, nas suas propagandas para convencer o povo da suposta necessidade de reforma, que não vai retirar direitos de quem mais precisa.
O advogado João Badari realizou diversas simulações para testar os efeitos da reforma da Previdência e provou que, se a reforma for aprovada, elevará o tempo para o segurado conseguir sua aposentadoria, seja para aqueles que ficarem dentro da regra transitória (com pedágio), como para aqueles que caírem na regra da aposentadoria por idade, porque a reforma extingue a aposentadoria por tempo de contribuição. Em todas as simulações realizadas o benefício integral também se tornou muito mais distante.
Você foi uma das primeiras pessoas a identificar que não havia déficit no

sistema de seguridade social. Agora, o governo centra sua argumentação no "fim dos privilégios". Trata-se de uma guinada estratégica, já que o Planalto aparentemente perdeu a discussão a respeito do déficit? O servidor público se tornou um bode expiatório nesse contexto?
O governo não convenceu uma parcela importante da sociedade de que há déficit, já perdeu o debate dentro da CPI da Previdência comandada pelos senadores Paulo Paim e Hélio José e, o que é mais importante, os deputados e senadores sabem do prejuízo que representará nas urnas se a reforma for aprovada. Muitos precisam do foro privilegiado. O governo, portanto, insiste, e continua oferecendo favores financeiros para os políticos alicerçarem suas campanhas em 2018. Isso é declarado abertamente, pelo próprio governo, para a imprensa. Ninguém do Judiciário vai falar nada sobre isso?
Além da liberação de cargos, emendas parlamentares, verbas para prefeitos e governadores no ano de 2017, tem mais. Presidente Temer decidiu, em dezembro do ano passado, liberar, para os municípios, mais R$ 3 bilhões do orçamento de 2018, caso a reforma da Previdência seja aprovada. A estratégia é pressionar os prefeitos a influenciarem deputados na Câmara. O presidente também reforçou o poder do ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, com R$ 10 bilhões para a finalização de obras em redutos eleitorais de quem votar pela reforma da Previdência. Tudo isso saiu na imprensa. Do ano passado, somente em restos a pagar de emendas parlamentares, que podem ser destinadas por deputados federais e senadores a redutos eleitorais, e mais as novas emendas do Orçamento deste ano, são R$ 20 bilhões. O povo fica sabendo porque está sendo divulgado na imprensa. Já teriam até prometido recursos de bancos públicos, da Caixa Econômica, por exemplo, para serem usados em troca de apoio à reforma da previdência, ou seja, será moeda de troca com governadores para que eles pressionem deputados a aprovarem as mudanças nas regras de aposentadoria. Então, o que eu, como cidadã, posso dizer disso tudo? Como cidadã, penso que isso é um escândalo nacional e vivemos uma era de trevas da política nacional.
Nesse contexto o servidor público é, sim, um bode expiatório, usado para atrair a ira da sociedade para outro polo, deixando encoberto o jogo político das grandes empresas financeiras com o governo. O governo diz que com a reforma, acaba o problema que gera desequilíbrio na nossa sociedade: servidores do alto funcionalismo público que se aposentam com seu último salário. Acontece que, desde 2013, já não existe mais essa possibilidade de se aposentar com o último salário. Aliás, não existe desde 2003. Mas, com a regulamentação da Funpresp, o fundo de previdência complementar dos servidores públicos, feita em 2012 pela então presidente Dilma Rousseff, os funcionários públicos se aposentam apenas pelo teto do INSS. Não será essa reforma do presidente Temer que produzirá o efeito de equiparação entre os sistemas porque simplesmente isso já foi feito.
Portanto, a mudança na aposentadoria dos servidores é peça de propaganda para a sociedade direcionar seu ódio para o lado errado e não enxergue quem, de fato, está ganhando com a reforma da Previdência.
Caso seja aprovada a PEC da Previdência, seus efeitos, combinados com a precarização estimulada pela nova legislação trabalhista, podem inviabilizar a previdência pública a curto prazo?
Sem dúvida, o já desastre aconteceu. A reforma trabalhista que entrou em vigor em novembro do ano passado irá agravar ainda mais a situação de queda da arrecadação previdenciária. Isso porque foram legalizadas duas modalidades de contrato de trabalho que irão diminuir as contribuições dos trabalhadores para a Previdência: o trabalho intermitente, em que o funcionário é contratado para trabalhar apenas algumas horas por semana ou por mês, recebendo um salário que pode ser inferior ao mínimo, e a terceirização de todas as atividades da empresa. O trabalhador terceirizado ganha em média 20% menos do que um trabalhador com contrato direto. Dificilmente esses novos trabalhadores, submetidos a esses contratos, irão contribuir para a Previdência. Nem eles, nem seus empregadores.
Não é difícil concluir que o governo Temer não tem nenhuma intenção de produzir o equilíbrio fiscal com a reforma da Previdência, porque as receitas já foram destruídas com a concessão de isenções tributárias e perdões de dívidas para as grandes corporações e com a reforma trabalhista. O caos já está instalado e foi produzido pelo governo federal e pelo Congresso Nacional em 2017.
O governo insiste na reforma desde o fim de 2016, a despeito de todas as dificuldades enfrentadas. A quais setores econômico-financeiros interessa fazer uma reforma desse tipo? De que forma eles ganham?
A proposta de reforma da Previdência de 2017, ao invés de corrigir um suposto déficit fiscal, vai, indubitavelmente, gerar um déficit de cidadania. Pretende desamparar os idosos de renda média e baixa, desproteger trabalhadores e levar famílias ao empobrecimento e adoecimento. Produzirá calamidades sociais que gerarão mais gastos (com saúde e contenção da violência), sem realmente fazer as intervenções necessárias para enfrentar a evolução demográfica pela qual a sociedade brasileira atravessará, e que dependem do projeto de civilizatório nossa sociedade deseja alcançar.
A degradação do orçamento da seguridade e, mais particularmente, da Previdência Social é uma estratégia clara da atuação do Estado em favor do avanço das finanças sobre a política social. É na esfera das aposentadorias e pensões que se acirrará a disputa pelo fundo público. O governo orquestrar a dilapidação dos direitos previdenciários por meio de intermináveis reformas, alegando permanentemente a fragilidade fiscal e atuarial do sistema, que ele próprio constrói, ao preço de pesadas desonerações, sonegações e perdão de devedores. A campanha do “rombo da Previdência” acaba se tornando uma profecia que se autorrealiza. Quem se beneficia dessa engrenagem?
Os fundos de capitalização que são os maiores beneficiados de todos esses mecanismos. O patrimônio líquido dos fundos de previdência aberta passou de R$ 23 bilhões em 2002 para R$ 490 bilhões em 2015. Não apenas isso. Houve profunda expansão da captação líquida em suas carteiras. Há um salto de R$ 28 bilhões em 2006 para R$ 48 bilhões em 2016 medidos em valores reais de 2016, sendo que o maior impulso ocorre precisamente no ano em que a reforma da previdência começa a tramitar no Congresso.
Quais as possíveis alternativas a essa proposta que o Planalto quer implementar para a Previdência?
Em primeiro lugar, o governo deveria estar produzindo uma reforma tributária para reduzir a desigualdade de renda e aumentar a arrecadação. Em segundo lugar, caberia mudar urgentemente a política econômica. Precisamos de uma política fiscal e monetária geradora de investimento, emprego e melhorias salariais. As principais fontes de receita da Previdência estão altamente vinculadas ao dinamismo da economia. A Previdência depende dos empregos formais, do patamar do salário médio e da mobilidade social. Sem isso, não é possível sustentar um sistema previdenciário no longo prazo. Longe de termos um problema demográfico grave, o que temos é um problema de distribuição de renda, de falta de dinamismo econômico e de debilidades graves no nosso sistema político, altamente antidemocrático, e todos esses obstáculos só podem encontrar solução no campo político. O déficit fiscal é cortina de fumaça, construída para encobrir os verdadeiros problemas que temos que enfrentar – a construir uma nação democrática, que honre seu povo, que o proteja e lhe assegure soberania. Portanto, a reforma política é muito mais urgente.
Edição: Rede Brasil Atual

O caso Lula: o advento da pós-justiça?

O caso Lula: o advento da pós-justiça?

O processo de Lula alerta-nos para a facilidade com que são hoje postos em causa direitos em nome da eficácia da justiça

 
10/02/2018 16:54
 

(*) João Arrisco Nunes

1. A recente condenação de Lula, em recurso, por alegado crime de corrupção, tem alimentado dentro e fora do Brasil confrontos que têm implicações mais amplas do que a atuação do judiciário brasileiro neste caso ou as implicações políticas da condenação ou absolvição de Lula para o futuro próximo do Brasil. Sendo Lula o candidato às próximas eleições presidenciais que lidera as intenções de voto em todos os cenários nas sondagens, apesar das condenações e das continuadas campanhas mediáticas e ataques nas redes sociais, compreende-se a tentativa, por parte do bloco no poder no Brasil, de impedir a sua candidatura. Mas a passagem dessa tentativa pela ação do poder judiciário suscita preocupações que vão além da situação do Brasil, sobre a tolerância ou mesmo a defesa, nos regimes democráticos, de violações de direitos e da ordem constitucional, em nome da luta contra a corrupção, o terrorismo ou a imigração ilegal e como arma política.
2. Juristas conceituados, dentro e fora do Brasil, têm demonstrado a existência de irregularidades que violam ou prejudicam os direitos de Lula: a suspensão da presunção de inocência; a rejeição da relevância de provas que refutem os argumentos da acusação; escutas ilegais; a urgência com que o julgamento do recurso de Lula foi agendada, passando à frente de 347 outros processos, ao mesmo tempo que prescreviam acusações contra políticos de outros partidos, por vezes inexplicavelmente retidas durante anos. A estas violações juntam-se as campanhas mediáticas que promoveram, antes do julgamento, a difusão da “convicção” de procuradores sobre a culpabilidade de Lula, mesmo admitindo a ausência de provas que a sustentassem, ou a afirmação pública de um juiz pertencente ao tribunal que julgou o recurso de Lula, antes ainda da audiência, de que a sentença do juiz Moro em primeira instância seria “irretocável”...
3. Num trecho do voto do juiz Victor Laus, um dos três magistrados da audiência de recurso que condenou Lula em segunda instância e que lhe aumentou a pena, a conceção que presidiu ao processo é explicitada de forma inequívoca: “Quem responde a crime tem que ter participado dele; e para ter participado alguma coisa de errado ele fez”, acrescentando: “Se alguém fez algo de errado e esse algo de errado é crime, essa pessoa responde. Ponto.
Ou seja: é culpado quem responde em tribunal, independentemente do que for apurado no julgamento. Assim, antes mesmo de terem ouvido as alegações da defesa, os três juízes tinham já o seu voto final escrito, que se limitaram a ler no final da audiência.
Passando por alto ou minimizando como “erros” as irregularidades cometidas no processo de Lula, João Miguel Tavares defendeu, em comentário recente, que o “que está em causa são diferentes visões sobre a forma de enfrentar o problema da corrupção. Uma visão, como é o caso da portuguesa, que exige ao Ministério Público não só que prove que o corrupto recebeu uma vantagem indevida mas também a identificação do serviço exacto que ele prestou ao corruptor. E a visão, que tem sido a dos juízes brasileiros no processo Lava-Jato, que considera que esta exigência levada às últimas consequências dificultaria de tal forma a prova do crime que quase todos os corruptores ficariam impunes”.
A “visão” existente em Portugal prejudicaria assim a eficácia da luta contra a corrupção, fragilizada pelo alegado excesso de exigência na produção de provas e pelo respeito do princípio da presunção de inocência até à pronúncia de sentença. Ponderar provas existentes não é o mesmo que substituir provas por convicções, ou rejeitar aquelas que não servem à acusação, como tem sido documentado no processo de Lula. Quanto à eficácia comparada da justiça portuguesa e da brasileira no combate à corrupção, vale a pena recordar que, apesar da ampliação mediática de alguns casos, o Brasil continua a ter as suas principais instituições dominadas por políticos indiciados ou investigados por corrupção — a começar pelo atual Presidente —, que, por via de foros privilegiados ou de convenientes demoras nos processos, vão passando incólumes pelas investigações, mesmo quando não faltam provas...
4. O processo de Lula alerta-nos para a facilidade com que são hoje postos em causa, em nome da eficácia da justiça, os direitos que configuram o que Isaiah Berlin, retomando uma expressão usada por Hegel, chamou as liberdades negativas, as que asseguram a proteção contra a arbitrariedade e a garantia da integridade e segurança pessoal. Ainda que, historicamente, essas liberdades tenham sido respeitadas de maneira desigual, condicionadas por desigualdades de recursos e de poder e pelo reconhecimento desigual da cidadania, elas têm sido consideradas, mesmo em democracias de baixa intensidade, como a linha vermelha que não se pode ultrapassar, e que teria no poder judiciário os seus defensores. Que as violações desses direitos sejam defendidas ou toleradas em nome de um bem maior converte a proteção da lei em fonte de insegurança, os juízes em justiceiros que criam situações de exceção aplicadas seletivamente e concentram em figuras de super-juizes as funções de acusar, julgar e condenar.
Assim vão crescendo os espaços para a ampliação do arbítrio e criminalização da oposição política e do dissenso, em nome de cruzadas promovidas como grandes causas civilizacionais. Será este um sinal de que estaríamos a entrar na era da pós-justiça e do pós-direito, parceiros da pós-democracia e da pós-verdade?

(*) Investigador do Centro de Estudos Sociais e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra