Diante do nariz da sociedade
Entre as produções jornalísticas que abordaram a volta da fome no Brasil, confirmada pela Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), divulgada nesta semana, chamou minha atenção a entrevista de Natuza Nery no podcast “O Assunto” com o repórter Marcelo Canellas, da TV Globo. Canellas foi convidado a falar do tema porque, em 2001, fez uma série de reportagens sobre a fome no Jornal Nacional, de grande impacto, e voltou a cobrir o assunto há alguns meses, quando já havia oficialmente 19 milhões de pessoas passando fome (os números da POF se referem ao biênio 2017/2018, certamente cresceram com a pandemia).
Perguntado sobre o que mais o marcou na cobertura de 20 anos atrás, Canellas disse: “primeiro, a intensa repercussão, afinal tratava-se de um ‘anti-furo’ de reportagem, todo mundo sabia que isso acontecia, estava no nariz da sociedade”. E completou: “o que acontece é que às vezes as pessoas se acostumam com o inaceitável”.
Há muitos fatores que explicam a volta da fome, fruto não apenas da histórica desigualdade social, do racismo e da concentração de renda e terra, mas do desemprego em alta desde 2015, do salário mínimo defasado diante da inflação, da imposição do teto dos gastos públicos, e do abandono da educação e dos programas sociais - um “arsenal” de combate à pobreza e a fome, dilapidado a partir do governo Temer, como explicou o economista Walter Belik, também entrevistado por Natuza. Mais difícil é justificar, como disse o repórter, por que as pessoas se acostumam ao inaceitável, o que vemos todos os dias no país.
Tenho cá para mim que a imprensa tem seu dedinho de culpa nesse conformismo coletivo. E a dica está na própria frase de Canellas, quando ele diz que falar de fome é um “anti-furo”, já que está na cara de todos nós. Em outra entrevista sobre a mesma série, ele também conta que levou tempo para convencer seus superiores de que valia a pena investir em um tema, digamos, tão óbvio.
Assim como o jornalismo revela, ele também esconde. Racismo, violência policial, feminicídio, pobreza, desigualdade, tudo aquilo que nos define como sociedade, é “corriqueiro”. Precisa ser um caso escandaloso ou atípico para virar notícia.
Todos sabíamos que a fome vinha se agravando há alguns anos, tanto é que a Pública fez uma série de reportagens sobre insegurança alimentar na periferia de São Paulo em 2018, e um especial sobre fome em 2019, quando pesquisadores e organizações internacionais já tinham a dimensão do problema. Por que então não falamos de uma aflição tão grande com muito mais frequência?
Assim como a fome, a indiferença diante das injustiças sociais também é uma antiga mazela nacional e, como elas, perpetua-se no silêncio.
Marina Amaral, diretora executiva da Agência Pública