quarta-feira, 14 de junho de 2017

"Brasil ainda faz política com afeto, não com a cabeça"

"Brasil ainda faz política com afeto, não com a cabeça"

por Deutsche Welle — publicado 14/06/2017 00h38, última modificação 13/06/2017 13h47
Historiador diz que é preciso combater uma sociabilidade que se baseia em tratar o público como o privado: "Há uma elite que se considera superior"
André Tambucci / Fotos Públicas
Corrupção
Ato contra a corrupção do PT em 2016
Por Clarissa Neher
Há pouco mais de 80 anos do lançamento do clássico Raízes do Brasil, o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, que não distingue o público do privado, parece ainda presente na sociedade brasileira, apesar das previsões do intelectual que a cordialidade desapareceria com a industrialização.
Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda apresentou pela primeira vez o conceito, resultado de uma sociedade rural autoritária caracterizada pela família patriarcal. Segundo o intelectual, esse homem cordial dominou as estruturas públicas do País, usando-as em benefício próprio.
No entanto, não foi exatamente isso o que ocorreu. Para o historiador João Cezar de Castro Rocha, a cordialidade é uma característica de sociedades hierárquicas e desiguais. Em entrevista à DW Brasil, o autor dos livros Literatura e cordialidade: O público e o privado na cultura brasileira e Cordialidade à brasileira: mito ou realidade? debate o conceito de homem cordial e sua ligação com a corrupção.
"O problema da corrupção endêmica no Brasil só terá solução quando efetivamente constituirmos uma nação, quando em lugar de homens cordiais e elites que se consideram superior aos outros, nós formos de fato todos cidadãos", destaca Castro Rocha.
DW Brasil: O conceito de "homem cordial" parece mais atual do que nunca. Mas Sérgio Buarque de Holanda previa que ele desapareceria com a industrialização e o fim da sociedade rural. Na sua opinião, por que ele não desapareceu?
João Cezar de Castro Rocha: Eu proponho que, na verdade, o homem cordial não é apenas fruto de uma sociedade agrária, mas característico de uma sociedade hierárquica e desigual, como a sociedade brasileira, que foi fundada sobre o trabalho escravo e que ainda hoje mantém a consequência do longo período de escravidão. Então, o homem e a mulher cordiais não apenas permaneceram, como pelo contrário, cresceram e estão muito fortes. 
DW: E isso é visível também na política?
JCCR: A atual política brasileira, marcada por uma polaridade radical, por intransigência inédita e por uma intolerância completa é absolutamente cordial no sentido próprio do termo, ou seja, é uma política que se faz com afetos, com estômago e não com a cabeça.
DW: A corrupção seria característica própria do "homem cordial"?
JCCR: Seria ingenuidade imaginar que o homem cordial é por vocação mais corrupto do que a seriedade alemã ou puritanismo anglo-saxão. A corrupção faz parte de toda e qualquer estrutura de poder, mas a questão central de uma corrupção que pode ser caracterizada como cordial é a sua associação com a ideia da hierarquia e da desigualdade. 
No Brasil, historicamente, há uma elite que se considera realmente superior ao restante da população e que, por isso, considera ter direito a saquear a coisa pública. Nós não temos um Estado no sentido próprio do termo, temos é um aparato estatal apropriado pelas elites.
DW: O senhor fala da corrupção nas elites, mas é possível afirmar que ela ocorre também nas camadas mais baixas, que é algo generalizado?
JCCR: É preciso diferenciar a corrupção de uma sociedade que tem um cotidiano esquizofrênico. Em 1808, quando a família real veio para o Brasil, não havia casas suficientes, e o rei mandou pintar nas portas de algumas a inscrição "Propriedade Real”, PR, obrigando os donos a deixá-las para os nobres portugueses. O povo traduziu PR como "ponha-se na rua”. A história da cultura brasileira é uma oscilação constante entre propriedade real e ponha-se na rua.
Existe uma lei e sabemos que ela não é cumprida porque não há as condições práticas para cumpri-la, ao mesmo tempo, não podemos verbalizar o caráter vazio da lei, então, desenvolvemos uma sociedade profundamente esquizofrênica no sentido próprio do termo. Dizemos A sabendo que precisamos fazer B. Eu faria uma diferença entre o princípio esquizofrênico e a corrupção.
DW: Qual seria essa diferença?
JCCR: Há um princípio de maleabilidade que pode levar a uma corrupção, mas eu diria que corrupção hoje no Brasil é a apropriação privada dos recursos públicos. Não dá para comparar o senhor Emilio Odebrecht, roubando bilhões de dólares, com o pobrezinho do brasileiro que no serviço público oferece um cafezinho para o atendente. Se dissermos que tudo é a mesma corrupção é mais um meio que a elite tem de se desculpar.
DW: Mas o jeitinho, esse desvio do cotidiano, não legitimaria de alguma forma a corrupção nas grandes esferas?
JCCR: Acho que isso é um equívoco, pois o que está à disposição da elite brasileira, das empreiteiras, dos partidos políticos e de políticos não é um jeitinho, é um tremendo jeitão, não tem comparação. Além disso, a sociedade foi organizada de uma forma esquizofrênica, o Estado sempre impôs ao povo inúmeros PR e o jeitinho é uma estratégia, em alguns casos, para driblar a impossibilidade de cumprir o PR.
Mas se simplesmente legitimarmos o jeitinho, nós estaremos favorecendo a corrupção. Acho importante que, no cotidiano, o brasileiro comece, por exemplo, a apenas atravessar o sinal quando ele estiver aberto para pedestres. É muito importante uma mudança de cultura.
DW: Como seria possível acabar com esse ciclo desta corrupção generalizada?
JCCR: Do ponto de vista do Estado brasileiro é preciso acabar com esse discurso tolo de que tem muito Estado no Brasil, pois não tem. O Brasil tem Estado de menos para o que de fato importa. É preciso ainda implementar mecanismos eficientes de controle que tenham como base a transparência.
Do ponto de vista da sociedade é começar uma discussão a longo prazo que necessariamente deve passar pela educação e, sobretudo, por uma consciência crescente para mudarmos nossa forma de agir no trato diário. Por exemplo, não posso defender a universidade pública e não dar minhas aulas.
O problema da corrupção endêmica no Brasil só terá solução quando efetivamente constituirmos uma nação, quando em lugar de homem cordiais e elites que se consideram superiores aos outros, nós formos de fato todos cidadãos.
DW: O que é preciso combater?
JCCR: É preciso combater uma sociabilidade que se baseia em tratar o público como o privado, e isso são o homem ou a mulher cordial. A sociabilidade cordial é movida pelo coração, tanto ama quanto odeia, tanto pode ser autoritária quanto afetiva, mas impõe fundamentalmente à ordem pública a lógica do privado.
Sem dúvida para superar esse tipo de corrupção precisamos fazer que o Estado brasileiro finalmente seja público e deixe de ser um parque de diversões para que as elites econômicas, políticas e financeiras deste País continuem tirando os recursos públicos como se fossem privados.

Diretas e Direitos

Diretas e Direitos

por Guilherme Boulos — publicado 12/06/2017 00h26, última modificação 09/06/2017 16h15
Temer cumpriu a promessa de unificar o país: quase todos são contra o seu governo
Victória Damasceno
Ato São Paulo
O ato que aconteceu em São Paulo levou 100 mil manifestantes ao Largo da Batata pelo pedido de Diretas Já
Após o colapso do governo Temer, com a divulgação do escândalo da JBS, iniciou-se a construção de um amplo movimento em defesa da antecipação das eleições no País. Atos político-culturais no Rio de Janeiro e em São Paulo levaram milhares às ruas, expressando um sentimento majoritário na sociedade brasileira. Antes mesmo dos áudios de Joesley, pesquisa Datafolha já havia apontado que 85% da população defendia as Diretas Já. Agora, segundo o Vox Populi, são 89%.
Temer, de fato, cumpriu a promessa de unificar o País. Havia apenas esquecido de mencionar que a unidade seria de quase todos contra seu governo. Mesmo na coalizão que bancou o golpe e sustentou Temer até aqui as fissuras estão a nu. Parte da grande mídia – liderada pela Rede Globo – já desembarcou. A base parlamentar, evidentemente, já não é mais a mesma. E o próprio empresariado começa a pensar em plano B. 
Neste cenário, a luta pelas Diretas ganha muita importância. A entrada de artistas de grande expressão social no movimento permitiu que as manifestações ecoassem para além das fronteiras da esquerda organizada.
Os últimos dois domingos mostraram isso, com a experimentação de outra linguagem na manifestação: mais expressões culturais e menos falatório. Os eventos não foram despolitizados por isso, ao contrário do que sugeriu apressadamente parte da própria esquerda.
É evidente que o momento exige cuidado para que as nossas manifestações não reproduzam a antipolítica ou o antipartidarismo. Mas o formato dos atos – ainda que com contradições próprias de qualquer novidade – buscou esse equilíbrio entre amplitude e politização. O sucesso do Rio e de São Paulo já estimulou eventos em várias outras cidades já para estes próximos dias.
Ao mesmo tempo, ocorreram os primeiros movimentos para viabilizar uma Frente Ampla pelas Diretas, com a participação de dezenas de entidades sociais, religiosas e jurídicas, além de partidos políticos.
Mano Brown
O rapper Mano Brown foi um dos artistas que se apresentaram nos atos em São Paulo e no Rio de Janeiro (Foto: Victória Damasceno)
Essa articulação, juntamente com as iniciativas dos artistas e produtores culturais, poderá vocalizar o anseio da maioria do povo por uma saída democrática à crise política, que seja capaz de – por meio de fortes mobilizações – derrubar o governo Temer e rechaçar a alternativa infame de eleição indireta por este Congresso.
Nessa unidade, entretanto, há um ponto que deve ser inegociável: a bandeira do combate às reformas da Previdência e trabalhista. Não se trata apenas de enfrentar um governo, mas, sobretudo, de derrotar sua agenda de destruição de direitos.
Se a bandeira das Diretas não estiver associada a isso, perde o sentido desde o ponto de vista popular. Tanto mais quando vemos o Senado, em meio ao furacão, avançar sem pudores na aprovação da reforma trabalhista.
Além disso, o porcentual da população que rejeita as medidas é quase o mesmo que desaprova Temer e defende a antecipação das eleições. Isso nos deve levar a combinar iniciativas como os atos político-culturais, com maior protagonismo dos artistas, com mobilizações sociais mais contundentes, em especial a nova greve geral marcada para o dia 30 deste mês. A defesa das Diretas precisa estar no mesmo plano da defesa dos direitos. 
Há três caminhos políticos diante da crise atual: ou Temer consegue recompor sua base de apoio e fica até 2018; ou Temer cai e o Congresso elege o presidente por via indireta; ou, ainda, a mobilização popular cresce – com atos e a greve geral – sendo capaz de derrotar o governo e pressionar pela antecipação das eleições.
Dessas três alternativas, aquela que representa as melhores condições para barrar a agenda de retrocessos é a terceira. Se o povo for chamado a decidir, seguramente rechaçará o projeto das reformas. Isso não assegura que ele seja enterrado de vez, mas representaria um duro revés.
Nossos problemas não serão resolvidos magicamente. A bandeira das Diretas, é claro, tem seus limites na medida em que o que está derretendo não é apenas o governo Temer, mas o sistema político da Nova República.
Não haverá saída popular para a crise que não passe por uma profunda democratização do Estado brasileiro. Mas, atualmente, a combinação Diretas/Direitos é a bandeira com maior capacidade de construir maioria social para barrar quaisquer retrocessos. 

Fonte: Carta Capital

Moro veta perguntas da defesa de Lula: “perda de tempo”

Moro veta perguntas da defesa de Lula: “perda de tempo”

Postado em 14 de junho de 2017 às 8:22 pm

A defesa de Lula divulgou nota sobre a audiência de hoje conduzida pelo juiz Sérgio Moro, no processo em que os procuradores acusam Lula de receber um terreno da Odebrecht para a construção da sede do Instituto Lula — o terreno não foi doado, e o Instituto funciona em outro entedereço. O juiz disse que as perguntas da defesa eram “perda de tempo”, pois já havia sido feitas em outro processo. Leia a nota:
“O cerceamento ao direito de defesa e o desrespeito à atuação dos advogados mais uma vez se fez presente hoje (14/06) em audiência na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, relativa à Ação Penal 5063130-17.2016.4.04.7000.
O juiz Sérgio Moro interrompeu o trabalho da defesa de Lula na oitiva do ex-diretor geral da Polícia Federal Luiz Fernando Correa, exatamente quando o depoente, na mesma linha dos ex-procuradores gerais da República Claudio Fontelles e Antonio Fernando Barros, também ouvidos hoje, discorria sobre o estímulo e condições materiais propiciados pelo então Presidente Lula no combate à corrupção e a lavagem de dinheiro.
É preciso registrar que o Juízo tem permitido, nas demais audiências, que o Ministério Público Federal (MPF) formule perguntas na mesma linha de outras já feitas anteriormente às testemunhas de acusação – em audiências referentes à Ação Penal 5046512-94.2016.4.04.7000/PR – notadamente em relação aos delatores. Moro afirmou que indeferia o questionamento porque tais perguntas já haviam sido respondidas em outra ação e que sua continuidade resultaria em “perda de tempo”.
A realidade é que o Juízo impediu a defesa de reforçar aspectos relevantes, que desmentem o cenário de “corrupção sistêmica” afirmado pelo MPF.
Diante da falta de provas que se verifica na acusação à Lula, é lamentável que o Juízo recorra a tais expedientes e, junto com a representante do MPF manifeste comportamento tão desrespeitoso à defesa. Mais uma vez se atenta contra as prerrogativas profissionais, à participação do advogado na administração da Justiça, como assegura a Constituição Federal (art. 133) e as regras internacionais da magistratura, dos procuradores e dos advogados. Tal conduta fere igualmente as garantias fundamentais do ex-Presidente Lula.

Cristiano Zanin Martins

Fonte: DCM

“VERBA VOLANT, PECUNIA MANENT”. UMA CARTA AO BOI TRAIDOR

“Verba volant, pecunia manent”. Uma carta ao boi traidor

FERNANDO BRITO


À moda e sem o talento de Veríssimo, com suas cartas da Dorinha:

Senhor Joesley,

“Pecunia nunc mala est”

Por isso lhe escrevo, claro que anonimamente, posto que, falasse, decerto gravar-me-ia e a verba (do latim as palavras, porque a outra esvaiu-se), non volant.

Muito a propósito do intenso noticiário destes últimos dias e de tudo que me chega aos ouvidos das conversas no Palácio.

Esta é uma carta pessoal. É um desabafo que já deveria ter feito há muito tempo.

Desde logo lhe digo que não é preciso qualificar a sua deslealdade.
Deslealdade ao código mais antigo e respeitável que Constituição Federal, o da honra entre ladrões.

Entretanto, sempre tive ciência da absoluta desconfiança do senhor e de seus asseclas em relação a mim e ao PMDB. Desconfiança incompatível com o que fizemos para manter o apoio pessoal e partidário ao seu negócio.

Voei em seu avião, deixei que seus modos ousados de açougueiro afluente oferecessem as rosas da cupidez à recatada. Ruborizei-me, claro, como em meus mui talentosos versos: De vermelho/Flamejante/Labaredas de fogo assomaram-se-me às faces (abro um parênteses para esclarecer que labaredas de fogo é licença poética e não pleonasmo, como sua bovina convivência di-lo-ia).

À minha natural discrição conectei aquela derivada da cobiça que nos é comum.

Vamos aos fatos. Exemplifico alguns deles.

Jamais usei consigo os métodos do Calado de Curitiba, ou o linguajar chulo de outros, imundo como o pó de Minas, mas caí na esparrela, como o dinheiro caiu no Perrela. (é incontida minha atração por rimas ricas, perdoe-me)

Cedi ao senhor o meu subterrâneo acesso, que noutros palácios d’antanho apenas aos amantes e conspiradores se franqueava.

Desta confiança, porém, valeu-se sua alma rastaquera para, sordidamente, gravar-me, o que só não foi pior por conta de meu natural recato monosilábico. Tanto que, frequentemente, há quem me  tome como decorativo, de tão silencioso.

Contido, disse apenas “tem que manter isso”, não o “vai, Tigrão” do seu linguajar.

Contava, decerto, com minha ruína, planejada e desejada por aquel’outro  Gato Angorá, que me ruge, enquanto o outro mia.

E não esperava que meu capanga lá do Mato Grosso pudesse me blindar.

Passados estes momentos críticos, tenho certeza de que o senhor amargar-se-á profundamente do que fez.

Sei que a senhor não teve confiança em mim e no PMDB, hoje, e não terá amanhã, quando o levarmos ao matadouro, o descarnarmos, porcionarmos, fatiando, o seu império e – perdoe-me a rudeza açougueira – usarmos suas tripas para fazer linguiça.

Vingativamente,

O Anônimo do Tietê

PS: em homengem piedosa à sua ignorância, esclareço que a epígrafe desta missiva, “Pecunia nunc mala est”, não é “nunca ponha o dinheiro na mala”, mas que “o dinheiro agora é ruim”.


AS RUAS E AS URNAS

As ruas e as urnas
José Dirceu


Em visita recente, o produtor Luiz Carlos Barreto lembrou-me de que o filme "Terra em Transe", clássico de Glauber Rocha, completa meio século. Não pude deixar de comentar que, novamente, o Brasil está em transe.

A única solução razoável, antes como agora, é uma catarse, uma revolução política, econômica, social e cultural.

Não é possível um acordo com quem rasgou o pacto constitucional de 1988 e atropelou a soberania popular.

Os golpistas e seus avalistas, ao derrubarem um governo legal e legítimo no intuito de revogar direitos e conquistas históricas do povo brasileiro, puxaram a faca e cometeram crime de alta traição à democracia.

Romperam o fio da história e colocaram em risco nossa soberania.

Querem nos reduzir, de novo, à linha auxiliar do império.

A coalizão golpista deu origem a um governo abarrotado de históricos corruptos.

Nada disso, porém, importa aos falsos santarrões que incensam a Operação Lava-Jato, desde que os usurpadores fossem úteis para a aplicação de reformas que destruíssem o legado petista, a herança trabalhista e os êxitos do último processo constituinte.

Olhando e revisitando a história de nosso país, sabemos o que está em jogo: o desmonte do recente e precário Estado de bem-estar social, previsto na Constituição de 1988 e implementado durante as administrações de Lula e Dilma Rousseff.

Assalta-se a renda do trabalho para garantir o pagamento de juros exorbitantes, a ampliação da taxa de lucro das grandes corporações e a retomada dos fundos públicos pelas camadas mais ricas.

Os golpistas não hesitaram em sabotar o governo Dilma.

Decretaram verdadeiro apagão nos investimentos e créditos, ampliando a recessão, levando pânico aos cidadãos e paralisando o país.

Tratou-se de um vale-tudo para recuperar o comando do Estado e impor uma agenda rejeitada pelos eleitores desde 2002.
Não se vacilou em pisotear as regras democráticas e forjar um arremedo de regime policial, no qual se opera a serviço de objetivos político-ideológicos.

O Brasil precisa de liberdade para decidir seu futuro, com eleições diretas, um novo governo popular e a convocação de Constituinte soberana.

É vital romper a camisa de força do rentismo e da concentração de riqueza, reformar os sistemas financeiro e tributário.

Só assim viabilizaremos o desenvolvimento econômico, social e cultural.

Essa tarefa é histórica e pressupõe superar os limites comprovados dos governos petistas - apesar dos avanços reformistas, ainda não transformamos as estruturas de nossa sociedade e do poder político. Não há espaço para conciliação.

É necessário, para o bem-estar social do país, dar fim à armadilha de uma falsa harmonia nacional e um ludibrioso salvacionismo contra a corrupção.

O horizonte das forças populares e de esquerda deve ir além das próximas eleições presidenciais, agora ou no próximo ano. Podemos até vencer, mas sem ilusões: sob quaisquer circunstâncias, nosso norte é o avanço no rumo de uma revolução política e social, democrática.

A meta é lutar, resistir e preparar um governo de amplas reformas. Sob a proteção de um novo pacto constitucional, originário das urnas, se a casa-grande voltar ao leito da democracia. Pela força rebelde das ruas, se nossas elites continuarem de costas para a nação.


SOS LULA

SOS LULA
Emir Sader

O Brasil parece estar absolutamente desamparado. O governo não governa mais e não se sabe até quando será governo. O Congresso vive aos deus dará, entre a defesa do mandato dos parlamentares acusados de corrupção, com os olhos postos as eleições de 2018 e nas vantagens e desvantagens de apoiar o governo ou romper com ele. O Judiciário, que havia renunciado a exercer seu papel no golpe, tem espasmos de decisão, enquanto juízes e promotores substituem a oposição política como partidos de direita. A mídia parece barata tonta diante dos monstros que ela mesma criou.

Ninguém consegue pensar nas eleições presidenciais de 2018, que parecem que ocorrerão daqui a um século. Ninguém consegue imaginar o governo Temer por mais algumas semanas, o que dizer por mais alguns meses. Nenhuma articulação com algum tipo de credibilidade está em curso para substituir o presidente golpista combalido. A inércia governo o país, que é vitimizado, alem das políticas suicidas do governo, pelo abandono. Quem se faz cargo do Brasil?

Para completar o quadro de destruição de tudo o que Brasil tinha de melhor, promotores se encarregam de tentar destruir a única presença política de credibilidade no país – o Lula. Diante da corrupção generalizada que atinge todo o governo, grande parte do Congresso e do próprio Judiciário (de que o financiamento da JBS ao Instituto do Gilmar já é o escárnio), a obsessão de promotores e da PF é tirar o Lula da vida política.

Lula não representa hoje apenas o PT. Lula não representa hoje apenas a esquerda. Lula não representa hoje apenas as camadas pobres da população. Lula representa um governo que deu certo, que respondeu às necessidades da grande maioria da população, que, apesar de atacado com mais de 80% de referencias negativas na mídia, saiu do governo com 87% de apoio.

Lula representa hoje a única alternativa de reconstrução mínima do país. Lula não representa apenas a possibilidade de recompor os direitos sociais da grande maioria, abandonada por um governo que só pensa nos interesses dos bancos. Lula não representa apenas a necessidade de terminar com o desemprego de mais de 14 milhões de pessoas. Lula não representa apenas a urgência de acabar com a recessão que está levando o Brasil à pior catástrofe econômica e social da sua história. Lula não representa apenas a necessidade de recuperar a imagem do país, que hoje apresenta ao mundo uma imagem penosa, vergonhosa, sem governo, de corruptos e golpistas que assaltaram o poder.

Lula representa a única via urgente, indispensável, de recuperação do Brasil como país viável, a única possibilidade de resgate da esperança, de uma alternativa de futuro para todos. Lula representa a única possibilidade de recompor o funcionamento do país como Estado de Direito, como república, como nação.

Ninguém como Lula pode se propor a dirigir o Brasil como estadista, respeitado pelo povo e pelo mundo. Ninguém pode se reapresentar ao país como quem fez o governo no momento mais virtuoso da nossa história. Ninguém pode encarar as acusações mais arbitrárias de peito aberto, se defendendo e partindo para o ataque diante da falta absoluta de isenção da parte dos seus acusadores.

Ninguém como Lula tem a capacidade de diálogo com todos os setores do país, dos catadores de lixo aos grandes empresários, passando por todos os setores da sociedade brasileira.

Ninguém como Lula pode representar o SOS que o Brasil precisa para hoje, para ser resgatado do abandono a que foi entregue por uma política suicida de desconstrução do patrimônio público, de exclusão social de milhões de brasileiros, de retorno ao Mapa da Fome e ao FMI.


O Brasil precisa do Lula como o único dirigente político que pode reconstruir a democracia e a convivência social pacífica entre todos, recompor o diálogo e o debate político entre todas as forças sociais, políticas e econômicas. Estar contra o Lula não é estar contra o PT, é estar contra a única via de resgate do país como nação, do Brasil como democracia, de todos nós como seres humanos com direitos a voz, a voto e à uma vida digna.

JBS PATROCINAVA EVENTOS DE GILMAR MENDES

JBS patrocinava eventos de Gilmar MENDES

FERNANDO BRITO

A notícia da Folha de S. Paulo publica hoje, de que a JBS patrocinava os megaeventos do IDP - Instituto de Direito Público, pertencente a Gilmar Mendes coloca toda a constelação da República na desconfortável situação de ter tido suas despesas pagas, indiretamente, por Joesley Batista.

De acordo com o IDP e a JBS, um dos congressos incluídos nos patrocínios ocorreu em abril, em Portugal, pouco mais de uma semana depois de sete executivos do frigorífico firmar um acordo de delação com o Ministério Público Federal. Participaram daquele encontro magistrados, ministros do governo Michel Temer, além de advogados e políticos, diz a Folha.

Há uma imprecisão, Temer foi a outro, também em Portugal, igualmente patrocinado pela JBS, embora seu nome não aparecesse na lista de patrocinadores.  Mas não faltou gente “importante” neste de abril, já depois da delação de Joesley Batista.

Lá estavam Fernando Henrique Cardoso, Aécio Neves, João Doria e uma vasta coleção de ministros do STF, STJ,  Ricardo Barros (Saúde), Osmar Terra (Desenvolvimento Social e Agrário), Bruno Araújo (Cidades), ministros do governo Temer, o desembargador João Gebran Neto (a quem sobem os recursos sobre as decisões de Sérgio Moro), Paulo “Pato” Skaf e uma legião de convidados, que pode ser conferida, no programa do evento.

É lógico que, à exceção de Gilmar Mendes, um dos sócios do IDP, os demais não poderiam saber que  Joesley Batista pretendia bancar as despesas da delegação.

A história de que o dinheiro foi devolvido em maio, depois do escândalo da JBS, porque “chegou depois” e “não foi gasto” é o primeiro caso de “patrocínio póstumo” a um evento que já se realizou. Alguém pode achar que é igual a devolução de mochilas.

Está tudo bem documentado, no Youtube, e nem sequer se pode dizer que o patrocínio havia, porque a JBS não aparece nem na lista de patrocinadores, nem na de “apoiadores”.

Mas se o Ministro Gilmar Mendes, como diz, não vê nada de estranho e que, até o escândalo, a JBS tinha “reputação ilibada”, faria bem em tornar público o contrato de patrocínio e as datas de pagamento que ele prevê.

Até porque, de Lula se exigiu, e ele mostrou, quem e quanto se pagou por suas palestras.

O Ministro Gilmar Mendes, com isso, poderia prestigiar a nova vertente do Direito, que diz que quem fica sob suspeita é que tem de provar sua honestidade, não o contrário.


Na fronteira da genialidade e da loucura: Lima Barreto


Na fronteira da genialidade e da loucura: Lima Barreto

Por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite em 06/06/2017 na edição 944
“Nãolimabarreto é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.” (Lima Barreto)

Há 136 anos, numa sexta-feira, em 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, nascia Afonso Henriques Lima Barreto. Filho de descendentes de escravos, seu pai João Henriques de Lima Barreto era tipógrafo da Imprensa Nacional e sua mãe Amália Augusta, professora primária. O casal teve quatro filhos. Ao completar sete anos de idade, o futuro escritor e jornalista ficou órfão da figura materna, que o introduziu no universo das letras. Lima Barreto estudou no Liceu Popular de Niterói.
Ao perder o emprego, o pai passou a trabalhar como almoxarife numa colônia de alienados na Ilha do Governador (RJ). A nova atividade fez com que a família se mudasse para uma casa que se localizava dentro da área do hospício, onde lá permaneceu por quase dez anos.
Seu pai, diante das dificuldades econômicas, contou com o apoio de Afonso Celso de Assis Figueiredo (1836-1912) – visconde de Ouro Pedro – que era padrinho de Lima Barreto. Este viabilizou, com o seu prestígio político, o ingresso do menino no conceituado Colégio Pedro II onde se bacharelou em Ciências e Letras. No ano de 1897, Lima Barreto passou a frequentar o curso de Engenharia da Escola Politécnica, que não foi concluído. Nesta escola, ele era o único aluno negro.
O funcionário público
A vida seguia seu curso normal, quando, em 1902, Lima Barreto se deparou com o inesperado: a loucura de seu pai e a responsabilidade de assumir o sustento da família.  Embora os problemas enfrentados, ele estreou, naquele ano, na imprensa estudantil, escrevendo artigos críticos na revista universitária A Lanterna, não poupando os colegas e os vaidosos professores. Na capital do Império, candidatou-se, em 1903, a uma única vaga na Secretária de Guerra num concurso público, obtendo 2ª lugar. Devido à desistência do candidato concorrente, assumiu o cargo, aos 22 anos, recebendo, como copista, um modesto honorário.
Surge o  romancista
Empregado, ele se mudou, em 1904, para o bairro Todos os Santos no Rio de Janeiro. Em sua nova residência, número 32, da Rua Major Mascarenhas, começou a escrever a primeira versão do seu romance “Clara dos Anjos”, tratando, com preciosismo, questões socioeconômicas ligadas à escravidão no Brasil. Fato curioso é que Lima Barreto nasceu, no dia 13 de maio, sete anos antes da Abolição da Escravatura (1888), cuja data tornar-se-ia uma efeméride alusiva à assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel.
O livro “Clara dos Anjos” foi concluído entre os anos de 1920 e 1922.  Lima Barreto não chegou a vê-lo publicado, pois foi editado somente em 1948. A obra, na realidade, diferencia-se do seu esboço original.  O próprio autor assim declarou: “Saiu coisa bem diferente, se bem que o fundo seja o mesmo”. Em suas duas versões, a protagonista Clara é vítima da sua condição de mulher negra e pobre.  Na realidade, o cerne da trama permaneceu inalterado: trata-se da estória de uma jovem mulata que se envolve, amorosamente, com um rapaz branco e de condição socioeconômica superior, que se recusa a contrair matrimônio, para consertar o “malfeito”.
O crítico mordaz e a imprensa
recordaçoes
Colaborador na famosa revista Fon-Fon (1907-1958), Lima Barreto fundou também, com amigos, em 1907, a revista Floreal. Embora tenha circulado apenas quatro edições desta revista, ela acabou por despertar atenção do crítico literário José Veríssimo (1857-1916). Nela, ele começou a escrever o folhetim “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, editado, na forma de livro, em 1909, pela Livraria Clássica Editora. No primeiro capítulo, há uma nota autobiográfica, conferindo um tom de pessoalidade no trato de questões relativas à etnia negra e à classe social.
O romance que polemizou
Em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, estão presentes os percalços, os preconceitos sociais e étnicos, que são vivenciados, pelo personagem, na busca de sua ascensão profissional na carreira jornalística. O protagonista, um afrodescendente, após diversas dificuldades, consegue um emprego de escrivão de um jornal, porém só é promovido por ter descoberto, em uma noitada de orgia, seu chefe e sua amante. Com esta publicação, Lima Barreto se tornou “persona non grata” em relação a outros grandes jornais do Rio de Janeiro, principalmente do Correio da Manhã (1901-1974).
No livro, este jornal assume o título fictício de “O Globo”. Curiosamente, mais tarde, Irineu Marinho (1876-1925) fundou, em 1925, no Rio de Janeiro, um jornal com o mesmo título, que completa, em 2017, os seus longevos 92 anos de fundação.
De acordo com a historiadora Lila Schwarcz, que lançará, em junho de 2017, uma biografia de Lima Barreto, ele foi um crítico implacável em relação ao jornalismo da sua época. O trecho da pág. 92, do livro, ratifica a opinião da historiadora:
     “A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa ressuscitasse […] só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista…”
Embora o conflito que se estabeleceu, Lima Barreto havia realizado uma série de reportagens no importante Correio da Manhã.  Nele, a obra ”O Subterrâneo do Morro do Castelo” foi originalmente publicada, em 1905, sendo o livro editado somente em 1997. Na realidade, devido às críticas presentes em “Memórias do Escrivão Isaías Caminha”, os donos dos importantes periódicos do Rio de Janeiro, passaram a ignorar a figura de Lima Barreto. Ainda neste período, ele começou a escrever o romance “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, trazido a público somente em 1919.
Frequentador assíduo da Biblioteca Nacional, nosso escritor passou a dedicar-se, de forma intensa, à leitura dos clássicos da literatura mundial, assim como dos escritores da sua época, a exemplo de João do Rio (1881-1921) e Machado de Assis (1939-1908), Olavo Bilac (1865-1918) e Coelho Neto (1864-1934). Em relação ao primeiro escritor, devido às contundentes críticas presentes em “Recordações do Escrivão Isaías”, este acabou divergindo de Lima Barreto. Quanto a Coelho Neto, ele criticou o estilo literário do mesmo, afirmando: não posso compreender que a literatura consista no culto ao dicionário.” Também discordava dele quanto à paixão pelo futebol, pois, na época, tinha um caráter racista e excludente.
Em 1910, ano em que o cometa Halley cruzou os céus novamente, Lima Barreto fez parte do Júri, no caso “Primavera de Sangue”, e acusou os militares de participarem do assassinato de um estudante. Os responsáveis não foram condenados, A partir deste episódio, nosso escritor teve todas as suas promoções, na Secretaria de Guerra, inviabilizadas.
A contribuição literária nos periódicos da época
Um ano depois, em 1911 num período de apenas três meses, Lima Barreto escreveu uma das obras mais importantes da sua trajetória literária: “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Impresso, como folhetim, no Jornal do Commercio (1827-2016), o livro foi lançado, em 1915, conforme comentou, no discorrer deste texto, por uma questão cronológica.
Na Gazeta da Tarde (1880 -1887), Lima Barreto publicou, em 28 de abril de 1911, seu famoso conto “O homem que sabia Javanês”. O protagonista, o malandro Castelo, afirma ser um grande estudioso do idioma javanês quando, na realidade, trata-se de um grande engodo. Usando deste artifício, o personagem consegue enganar boa parte da sociedade carioca da época, visando à sua ascensão na carreira política, na vida acadêmica e diplomática. Mais tarde, publicou-se uma coletânea, que, além deste conto, reuniu mais quatro títulos do autor: “’Um especialista”, “A nova Califórnia”, “Miss Edith e seu tio” e “Como o homem chegou”.
Em 1911, na Gazeta da Tarde (1880 -1887), Lima Barreto registrou o que ficou gravado na sua retina, quando, aos sete anos, assistiu a uma missa campal, em alusão a Abolição da Escravatura (1888), em companhia de seu pai. Segue um trecho:
“(…) fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folgança e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente de festa e harmonia”.
 Lima Barreto sempre buscou, durante a sua existência, vivenciar a harmonia daquela tarde de 1888, constituindo-se esta, em sua visão, a essência de uma autêntica esperança de uma convivência mais justa e fraterna.
Excelente cronista de costumes do Rio de Janeiro, Lima Barreto também colaborou para diversas e importantes revistas literárias, como “Careta” (1908-1960), “Fon-Fon” (1907-1958) e “O Malho” (1902-1954).
O alcoolismo
No ano seguinte, em 1912, Lima Barreto publicou dois fascículos das “Aventuras do Dr Bogóloff” e dois livretos de humor, um deles na revista “O Riso” (1911-1912). Infelizmente, neste período, nosso escritor passou a ter sérios problemas com o alcoolismo, porém seguia colaborando na imprensa.  Sofrendo de alucinações, entre agosto e outubro de 1914, foi internado no Hospital Nacional dos Alienados.
Em 1915, o jornal A Noite (1911-1957) publicou, na forma de folhetim, a sátira política “Numa e a Ninfa”. Neste período, Lima Barreto iniciou uma longa participação, principalmente, entre 1919 e 1922, na famosa revista carioca Careta (1908-1960), na qual colaborou com artigos sobre os mais variados assuntos, predominando os de teor político.
Triste Fim de Policarpo Quaresma
polycarpo
Depois de ter sido publicado, em folhetim, “Triste Fim de Policarpo Quaresma” é lançado, em 1915, na forma de livro, pela Editora Typ. “Revista dos Tribunaes”.  Lima Barreto, nesse período, teve que recorrer a empréstimos financeiros para publicá-lo. Este clássico da nossa literatura situa-se na transição de dois períodos literários: o Realismo e o Pré-Modernismo. Com a objetividade, na forma de escrever, e o uso de um racionalismo, que se expressa por meio da realidade, a obra é retratada sem as idealizações românticas.
O personagem principal, o Major Policarpo Quaresma, foi chamado, pelo intelectual Alfredo Bosi, de o grande “Dom Quixote” nacional. (BOSI, 2006, p. 318). Trata-se, na realidade, de um personagem absorvido pelo sentimento nacionalista dos primeiros anos da República Velha (1889 -1930).
O livro, em síntese, é uma narrativa dos ideais e frustrações do funcionário público Policarpo Quaresma. Homem metódico, nacionalista fanático e sonhador, Policarpo se dedica ao estudo das riquezas do Brasil, valorizando a cultura popular, a fauna, flora e a hidrografia.  Entre outras atitudes, de extremo ufanismo do protagonista, ocorreu quando este sugeriu a substituição do idioma Português – nossa língua oficial – pelo Tupi-Guarani. As atitudes de Policarpo foram julgadas como bizarras e doentias, resultando em sua internação. Segue um trecho do livro, no qual Policarpo propõe a mudança da nossa língua oficial:
(…) “Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima, aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá múltiplas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por sua criação de povos que aqui viveram e ainda vivem” (…)
Durante a narrativa – presente na obra- cresce o abismo entre as questões ideológicas, sustentadas pelo personagem, e o mundo real que é retratado pelo autor. Narrada na terceira pessoa, a obra “Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi adaptada para o cinema, tendo como ator principal o gaúcho Paulo José. Lançado em 1998, o roteiro é de Alcione Araújo e a direção de Paulo Thiago. O filme “Policarpo Quaresma, Herói do Brasil”. apresenta, com muito humor, trechos importantes da obra de Lima Barreto, como Policarpo se deitando de bruços na relva, para fazer sexo, com sua terra, tal a dimensão surreal do seu nacionalismo.
Na forma de quadrinhos, a obra “Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi lançada, em 2013, visando a uma leitura compreensível, pelo público juvenil, na fase escolar. Edgar Vasquez e Flávio Braga foram os responsáveis por transformá-la em quadrinhos.
Lima Barreto, sempre mergulhado no mundo das ideias e preocupado com as questões sociopolíticas, passou a escrever no semanário político ABC. Em julho de 1917, passou às mãos do editor, J. Ribeiro dos Santos, os originais do satírico “Os Bruzundangas”, que foi publicado somente, em 1922, um mês após a sua morte. Neste livro, o autor registra os laços de nepotismo, corrupção e a sonegação de impostos que estão presentes de forma exacerbada na Primeira República (1889-1930).
A negativa da Academia Brasileira de Letras (ABL)
Diante da sua intensa produção literária, nosso escritor se candidatou à vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), porém o seu pedido de inscrição não foi sequer avaliado. Lima Barreto, embora muito aborrecido, seguiu o seu caminho na literatura, lançando a 2ª edição de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” e, na forma de livro, o folhetim “Numa e a Ninfa”. Lima Barreto, neste período, passou a colaborar, com suas crônicas, na imprensa alternativa da época, tendo escrito para os jornais: A Lanterna, ABC e Brás Cubas.
Ao final de 1918 e início de 1919, Lima Barreto permaneceu internado no Hospital Central do Exército devido às contusões sofridas durante alucinações alcoólicas. Aposentado, em dezembro de 1918, por meio de decreto presidencial.
Neste ínterim, devido a um artigo crítico à etnia negra, deixou de colaborar no semanário político ABC. Neste período, também colocou à venda o romance, que havia  começado a escrever há 10 anos: trata-se de “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”. Revisto por ele mesmo e mandado datilografar pelo editor Monteiro Lobato (1882-1948), este foi o único de seus livros a observar tais cuidados. Esta obra recebeu aplausos de intelectuais importantes, como João Ribeiro (1860-1934) e Alceu Amoroso Lima (1883- 1983). Neste livro, o Rio de Janeiro se configura numa entidade com vida própria, que se autoconsome num eterno confronto existencial entre o antigo e o novo.
Com o retorno tão positivo, em relação a sua produção literária, Lima Barreto se  candidatou, pela segunda vez, à vaga, na Academia Brasileira de Letras, (ABL) deixada por João do Rio (1881-1921), que havia se afastado em virtude de desentendimentos com o poeta Humberto de Campos (1886-1934). Desta vez, sua candidatura foi aceita, porém não conseguiu ser eleito.
Infelizmente, o fantasma do alcoolismo e da depressão continuava a assombrar o nosso escritor. Certa vez, Monteiro Lobato se deparou com Lima Barreto, totalmente, embriagado e maltrapilho, optando, então, por não cumprimentá-lo, evitando o constrangimento diante daquela situação.
A doença se agrava
o cemitério dos vivos
Em 1919, vivenciando uma forte crise nervosa, ele foi internado, pela segunda vez, no Hospital Nacional dos Alienados, Esta sofrida experiência resultou em anotações, que deram origem aos primeiros capítulos do livro “Cemitério dos Vivos”, no qual está presente o universo cruel e desolador de um hospício, marcado pelo espectro da loucura.    Autobiográfico, o livro nos apresenta o autor revoltado com injustiças e preconceitos que sofria por meio do narrador-protagonista, Vicente Mascarenhas, cuja existência, como a do autor, foi pontilhada por tragédias pessoais. Póstuma, esta obra foi publicada, na íntegra, somente em 1956.
Lima Barreto, em “Cemitério dos Vivos”, tornou público o cotidiano de um hospício, criticando o seu sistema anacrônico e carcerário ao tratar seus internos. Segue dois pequenos trechos desta magnífica e vanguarda obra:
  “Muitas causas influíram para que eu viesse a beber, mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente.” (,,,)“Choques morais, deficiência de inteligência, educação, instrução, vícios, todas essas causas determinam formas variadas e desencontradas de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é”.
No ano de 1920, o seu livro “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” concorreu ao prêmio da Academia Brasileira de Letra (ABL) de melhor livro publicado no ano de 1919 e ganhou uma menção honrosa. Ainda no mesmo ano, as livrarias passaram a vender o seu livro de contos “Histórias e Sonhos”, e Lima Barreto entregou ao seu amigo e editor, F. Schettino, os originais de Marginália, que constavam de artigos e crônicas publicados na imprensa da época. Esta coletânea foi editada em 1953.
Em seu “Diário Íntimo” (1903-1821), que foi também, postumamente, publicada a primeira edição, em 1953, o autor nos traz um relato humano pontuado pelo sofrimento e por uma incisiva denúncia de racismo.  Nele, Lima Barreto nos deixou registrado: “É difícil não nascer branco” / “a raça para os brancos é conceito, para os negros pré-conceito.” Segue um breve, trecho, no qual o autor declara a sua propensão ao suicídio:
   “Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo após a morte de minha mãe, quando fui acusado de furto tive vontade de me matar.”
Em janeiro de 1921, “Cemitério dos Vivos” teve um trecho publicado, na Revista Souza Cruz (1916-1935), com o título “As origens”. Estas memórias manuscritas não foram concluídas por Lima Barreto. Em abril daquele ano, ele fez uma viagem à cidade de Mirassol, em São Paulo, onde o médico e amigo, Ranulfo Prata, tentou, sem êxito, recuperar a frágil saúde do nosso escritor.
Retornando ao Rio de Janeiro, ele se reclusou em sua modesta casa em Todos os Santos, passando a receber apenas alguns amigos e a sua irmã Evangelina. Esta se desdobrou, em relação à saúde do irmão, com cuidados e dedicação integral.  Lima Barreto procurou reagir à doença, embora as internações e o estigma da loucura de seu pai. Uma das formas de lutar contra a doença era manter o hábito de passear pela sua amada cidade do Rio de Janeiro e, na privacidade, dedicar-se à leitura e à escrita.
Em julho de 1921, Lima Barreto, pela terceira vez, tentou o ingresso na Academia Brasileira de Letras (ABL) retirando, porém, a sua candidatura. Segundo o próprio autor, a atitude foi tomada “por motivos inteiramente particulares e íntimos”.
Nos últimos meses, que ainda lhe restavam, Lima Barreto entregou os originais de ‘ Bagatelas, que reuniu uma produção literária, no período de 1918 a 1922, destacando as agruras do nosso país e do mundo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Esta obra também póstuma foi publicada em 1923.
Na Revista Souza Cruz, de outubro /novembro de 1921, foi publicada a conferência  “O destino da literatura”, cuja apresentação Lima Barreto não conseguiu realizar na cidade de Rio Preto, em São Paulo, próxima a Mirassol. Em dezembro de 1921, ele iniciou a segunda versão de seu romance “Clara dos Anjos” – já comentado no texto – terminado no início de 1922.
No mês de maio de 1922, a revista “Mundo Literário” publicou o primeiro capítulo de “Clara dos Anjos”. Neste período, os originais de “Feiras e Mafuás”- uma coletânea de artigos e crônicas – foram entregues por Lima Barreto, visando à sua publicação, que ocorreu mais tarde , em 1953, pela Editora Mérito.
O Anarquista
Lima Barreto foi um dos poucos literatos brasileiros a se interessar pela literatura russa e ler com afinco seus autores. Após a Revolução Russa de 1917, ele se tornou anarquista. Nosso escritor foi um defensor dos animais, um crítico mordaz do academicismo e do feminismo. Quanto a este último, ele apontava falta da participação e inclusão das mulheres negras.
Ao se referir à sua “cor”, ele usava a expressão “pele cor de azeitona escura”, e tinha um olhar bastante crítico e desconfiado em relação à Lei Áurea (1888), deixando registrado em um diário: “liberdade era uma palavra que eu desconfiava e não confiava”.
Em resposta ao preconceito racial e à exclusão social sofrida, em seu cotidiano, nosso escritor escrevia sobre estes temas de forma contundente e mordaz.  De acordo com a historiadora e antropóloga, Lila Schwarcz, que, em junho de 2017, lançará uma biografia de Lima Barreto a sua intenção era de fato polemizar:
triste visionario
“Ele achava que os negros só poderiam ser socialmente integrados através da luta e do constante incômodo. Por isso, denunciava que a escravidão não acabou com a abolição, mas ficou enraizada nos menores costumes mais simples”.
Em sua obra, ele não aborda somente o centro do Rio de Janeiro, mas principalmente os subúrbios, os seus habitantes; descrevendo, com detalhes, as estações de trem, os transeuntes, as ruas, os bares, os costumes, as tradições populares, as violências e opressões, deixando, de lado, a elite burguesa.
Lima Barreto escreveu romances, sátiras, contos, crônicas e críticas, abordando as injustiças sociais presentes numa sociedade elitista e excludente.  Crítico feroz do regime oligárquico da República Velha (1889-1930), ele foi o elo de transição entre o Realismo e o Modernismo. Detentor de um estilo literário que divergia dos padrões da sua época, sua escrita era fluente, coloquial e despojada.
A morte do escritor e jornalista
Os problemas de saúde de Lima Barreto, ao longo dos anos, foram se agravando, pela presença do reumatismo, do alcoolismo, entre outros padecimentos. No dia 1º de novembro de 1922, aos 41 anos, ele faleceu devido a um colapso cardíaco.
Nosso escritor morreu no “Dia de Todos os Santos”, que, por ironia do destino, é o nome do bairro carioca onde ele viveu tantos anos. Junto ao seu corpo, foi encontrado um exemplar da “Revue dês Deux Mondes” que era a sua preferida. Dois dias após o seu falecimento, foi a vez de seu pai. Ambos se encontram sepultados, no Rio de Janeiro, no Cemitério João Batista, conforme o desejo de Lima Barreto.
Vários críticos literários consideram que Lima Barreto preparou o terreno para a vanguarda, representada, na Semana de Arte Moderna, de 1922, pelos escritores modernistas e suas propostas de transformação e de novos conceitos literários.
O trabalho literário de Lima Barreto foi recuperado, após duas décadas da sua morte, por seu biógrafo Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), que foi o responsável pela organização da obra completa do nosso escritor.  Os originais, que se constitui num belo acervo da sua intensa produção, foram comprados, em 1949, pela Biblioteca Nacional onde está preservado, atualmente, na Divisão de Manuscritos.  Lima Barreto escreveu 17 livros.
A obra do nosso escritor já esteve também, em vários momentos, presente no teatro: Triste Fim de Policarpo Quaresma (1978 /1994), “O homem que sabia Javanês (1986)”, “Cemitério dos Vivos” (1993) e “Estação Terminal” (2008).
Embora a invisibilidade e o preconceito presentes no transcorrer da sua existência, Lima Barreto, finalmente, assume o merecido lugar no panteão dos grandes nomes da literatura nacional, que, devido ao seu talento, aliado ao brilhantismo intelectual, há muito tempo, já deveria ter ocupado.
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Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e Coordenador do setor de imprensa do Musecom.
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Bibliografia :
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2002.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas. 3 ed. São Paulo, Atual editora, 2005.
ENGEL, Magali Gouveia. “Gênero e Política em Lima Barreto”. In: Cadernos Pagu. Nº 32 jun / 2009.
NOLASCO-FREIRE, Zelia. Lima Barreto: Imagem e Linguagem. Sâo Paulo: Annablume, 2005.
PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de Janeiro: Cátedra, 1976.
VÍDEO : Depoimento de um grande intelectual do movimento negro no Brasil : Joel Rufino dos Santos (1941-2015).
https://www.youtube.com/watch?v=e2mZHmSo_c4


Fonte: Observatório da Imprensa