terça-feira, 15 de novembro de 2022

Homenagem merecida!

 


EMPRESÁRIO NORTE-AMERICANO VENDE DISCURSO AMBIENTAL, MAS LUCRA COM TERRAS PÚBLICAS E GERA CONFLITOS ENTRE RIBEIRINHOS NO PARÁ


Foto: Climate Partner

EMPRESÁRIO NORTE-AMERICANO VENDE DISCURSO AMBIENTAL, MAS LUCRA COM TERRAS PÚBLICAS E GERA CONFLITOS ENTRE RIBEIRINHOS NO PARÁ

Estudo revela que áreas públicas na cidade de Portel têm sido usadas para vender créditos de carbono para gigantes estrangeiras.

UM ESTUDO PRODUZIDO pelo Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais revela que mais de 714 mil hectares da cidade de Portel, no norte do Pará foram — e continuam sendo — explorados comercialmente por meio de projetos de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação de Florestas, conhecidos como REDD.

A quantidade de terras equivale a 28% do território total do município, de pouco mais de 63 mil habitantes. O objetivo do projeto REDD é vender créditos de carbono para empresas estrangeiras compensarem suas emissões de poluentes no planeta.

Desses 714 mil hectares, 200 mil estão sobrepostos em terras públicas em fase de implementação de três projetos de assentamento para famílias que vivem do extrativismo na floresta, ao encargo do Instituto de Terras do Pará, o Iterpa. São terras públicas que estão sendo utilizadas para obtenção de lucros privados, embora os proponentes afirmem ter respaldo legal.

O estudo, que o Intercept divulga em primeira mão, exemplifica quatro projetos em curso em Portel, todos com participação direta de um negociante norte-americano chamado Michael Edward Greene. São eles: o REDD RMDLT Portel-Pará, o Pacajai REDD+ Project, o Rio Anapu-Pacajá REDD, e o Ribeirinho REDD+ — todos registrados na Verra, organização dos Estados Unidos que cria padrões e emite certificados para atividades de redução do desmatamento e do aquecimento global.

A proposta comum é o monitoramento e manejo das florestas para mantê-las em pé por meio de práticas agroecológicas e utilizando a mão de obra de ribeirinhos e outros povos tradicionais que já vivem nas áreas onde os projetos incidem. Dessa forma, argumentam os proponentes, será possível manter no solo o carbono não liberado por meio de eventuais desmatamentos e queima das florestas e vender seus créditos às empresas que quiserem compensar suas emissões de poluentes.

Entre as empresas compradoras dos créditos estão gigantes de diversos setores do mercado internacional, como Boeing, Delta Airlines, Air France, Amazon, Repsol, Samsung, Toshiba, Kingston e até o clube de futebol Liverpool, da Inglaterra.

“Há também intermediários que compram créditos dos projetos em Portel e revendem para empresas poluidoras e para todo o tipo de iniciativas, como festivais, agências de viagem, feiras, congressos, entre outros. Entre esses intermediários, estão empresas como Stand for Trees, ClimatePartner, Allcot e Offsetters Clean Technology”, aponta o relatório.

Comunidade ribeirinha no assentamento Joana Peres 2, em Portel.

 

Foto: Climate Partner

Um portelense do Michigan

Nascido em dezembro de 1979 em Michigan, nordeste dos Estados Unidos, Michael Edward Greene é sócio de diferentes empresas no Brasil e no exterior, algumas das quais constam como proponentes ou participantes nos quatro projetos mencionados, como a Brazil Agfor LLC (gestora de investimentos em madeira e agricultura) e a Amigos dos Ribeirinhos.

Bacharel em Engenharia Industrial pela Universidade de Kettering, Greene “vive no Brasil há 10 anos, prestando consultoria relacionada a situações imobiliárias complexas”, segundo um documento, de 2018, de um dos projetos em que atua.

Uma escritura particular de transmissão de direitos e posse assinada em dezembro de 2017 mostra que o norte-americano passou a ser dono, naquele ano, de mais de 31,5 mil hectares de terras em Portel.

Cinco propriedades rurais, de tamanhos variados, foram transmitidas a Michael Greene por Jonas Akila Morioka, empresário paulista apontado em relatório da justiça do Pará como grileiro de terras no Pará. Ele chegou a criar um site para contar sua versão sobre a origem de suas propriedades no estado.

A transmissão da posse das terras fez parte de um acordo entre os dois, firmado após Greene reclamar o pagamento de comissão por ter atuado como corretor de terras de Morioka em Portel. Quem assinou a escritura de transmissão das propriedades foi Zaqueu Hideaki Alencar Morioka, filho de Jonas Morioka e proponente de um dos quatro projetos REDD mencionados no estudo do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais, conhecido pela sigla em inglês WRM.

Em mapa apresentado no estudo, os projetos aparecem justapostos. “O fato das áreas se encaixarem quase perfeitamente, como um quebra-cabeça, indica haver uma coordenação entre os proponentes dos projetos, na medida em que foram elaborados de modo que um não se sobrepusesse a outro, já que isso não é permitido pelas regras dos projetos REDD”, aponta o relatório.

Ainda segundo o documento, apesar de ser norte-americano, Greene chegou a presidir a Associação de Ribeirinhos e Moradores de Portel, envolvida em um dos projetos. De acordo com informações de uma base de dados pública, a associação foi fundada em 2018 na cidade de São José dos Campos, São Paulo — em linha reta, a quase 2,5 mil quilômetros de distância da cidade paraense.

O nome que aparece no quadro societário é o de Jean Felipe Pessoa Borges, representante de Michael Greene em pelo menos três de suas empresas: Agfor Florestal, Agfor Empreendimentos e Agfor Investments.

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Empresário norte-americano Michael Edward Greene, que responde pelos projetos de emissão de carbonos em Portel

 

Foto: Reprodução

Hoje, quem preside a Associação de Ribeirinhos e Moradores de Portel, segundo documento de agosto deste ano disposto na plataforma Verra, é Evelise da Cruz Pires Greene, esposa do norte-americano. Evelise e Michael se casaram em janeiro de 2012 na cidade de Guarulhos, na grande São Paulo (terra natal de Evelise).

Por e-mail, em duas ocasiões, perguntei a Michael sobre Evelise. Ele não respondeu, assim como também não deu respostas sobre as propriedades de Portel transferidas a ele por Morioka.

No projeto REDD RMDLT Portel-Pará, de 194 mil hectares, Evelise é apresentada como quem gerencia o orçamento e os contratos dos funcionários. Sobre ela, é dito que entende as nuances da região e tem experiência com gestão de terras, títulos de propriedade, com órgãos como Incra, Iterpa e Ibama, além da justiça do Pará e a polícia ambiental.

“Evelise também é coproprietária de inúmeras propriedades dentro da área do projeto e tem um interesse pessoal para garantir que elas sejam protegidas e não invadidas”, diz o relatório. Nele, Michael Greene é apresentado como coordenador do projeto e dono de terras.

Proprietários ocultos, mas nem tanto

Segundo o relatório do WRM, não é possível saber quem são os donos das grandes extensões de terra negociadas como projetos REDD em Portel. “A documentação não prova conclusivamente propriedade das áreas em questão. Essa informação é essencial para esclarecer quem são os supostos proprietários e ajudaria a entender se os títulos procedem ou não”.

No projeto REDD RMDLT Portel-Pará, um documento anexado na plataforma Verra aponta que as informações não serão passadas por serem “consideradas sensíveis”.

Apesar do sigilo, o estudo da WRM descobriu que Michael Greene, Jonas e Zaqueu Morioka são donos de pelo menos 15 matrículas de imóveis rurais sobrepostas a áreas do assentamento Deus é Fiel, do Iterpa.

No caso de Greene e Zaqueu Morioka, a propriedade está em nome de empresas das quais são proprietários ou acionistas. O pai, Jonas Morioka, tem matrículas em seu nome e também em nome de suas empresas. Em comum, Greene e ele são acionistas na empresa Telheiros Serviços de Apoio, e proprietários da Cruzeiro Engenharia Florestal.
“Esta pequena amostra aponta que pessoas ligadas aos projetos REDD, seja diretamente ou por meio de empresas com as quais estão envolvidas, alegam ser proprietárias da grande maioria das terras em disputa. Revela também a possível estratégia que utilizam – em especial Michael Greene – de não aparecer como proprietário, mas registrar terras em nome de empresas das quais participa de uma ou outra forma”, revela o estudo.

“A maioria dessas terras são públicas estaduais, que estão na posse de comunidades ribeirinhas por meio de títulos de concessão de direito real de uso. Os títulos são entregues à associação mãe dos moradores do assentamento, que gerencia o assentamento estadual”, explicou Nilson Corrêa da Silva, secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores Familiares Rurais de Portel, o STTR.
Sobre a titularidade das terras onde incidem os projetos Redd e as sobreposições a assentamentos, questionei a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, a Semas, o Instituto de Desenvolvimento Florestal, o Ideflor, e o Iterpa. Não tive resposta de nenhum dos órgãos.

Enviei questionamento à plataforma Verra sobre conflitos entre os projetos REDD e os assentamentos e sobre a autenticidade dos títulos de propriedade da terra apresentados pelos proponentes. A organização não enviou respostas até a publicação desta reportagem, assim como Jonas e Zaqueu Morioka, a quem também foi solicitado entrevista.

Nas tentativas que fiz para entrevistar Michael Greene por e-mail e WhatsApp, os retornos do empresário foram sempre de desconfiança e suspeita de que eu estivesse sendo pago ou usado por algum concorrente seu para prejudicá-lo.

“Se o Intercept está me contatando, significa que as pessoas que estão tentando derrubar a floresta em Portel, destruir a cultura do povo e tirar direitos à terra da população Ribeirinha estão tendo muito sucesso. Devem tê-lo alimentado com um monte de mentiras”, foram suas primeiras palavras em resposta ao meu primeiro contato por e-mail.

“Sou respeitado pelo Greenpeace mesmo [a ONG] sendo contra o REDD. Eles nunca me atacaram, porque sabem que se eu parar, [o município de] Portel está basicamente acabado”, completou. Enviei a Michael Greene 24 perguntas, todas em inglês (exigência dele) por e-mail. Por mensagem de texto e e-mail, ele respondeu quatro delas, mas sem explicar os pontos abordados no relatório.

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Projeto em áreas públicas de Portel, com venda de emissão de carbono para grandes empresas.

 

Foto: Climate Partner

Qual o valor do negócio?

Não é possível saber quanto, até o momento, os proponentes faturaram vendendo os créditos de carbono às empresas. Na base de dados Verra existem planilhas de três dos quatro projetos com a quantidade de créditos vendidos e as empresas compradoras. Mas não há informações exatas sobre o valor de venda de cada crédito.

O estudo do WRM faz uma estimativa a partir do valor médio de 5 dólares por crédito. O projeto REDD RMDLT Portel-Pará, que teve início em 2008 e vai até 2047, já vendeu mais de 7 milhões de créditos — o que corresponderia a 35 milhões de dólares.

O projeto Pacajai REDD+ Project, com início em 2009 e previsão de término em 2048, já comercializou 22 milhões de créditos, o que significaria um faturamento de 50 milhões de dólares. O Projeto Rio Anapu-Pacajá REDD faturou pelo menos 30 milhões de dólares com a venda de 6,3 milhões de créditos.

Na base de dados Verra não aparece, até o momento, a planilha de vendas do projeto Ribeirinho REDD+ — o mais novo entre os quatro, com início em 2017 e término previsto para daqui a 30 anos.
O WRM afirma que os ribeirinhos entrevistados para a produção do estudo e residentes nas áreas dos projetos não têm informação sobre quantos créditos foram vendidos ou para quem, nem sobre o valor dos investimentos realizados em Portel.

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Moradores ribeirinhos no assentamento Joana Peres 2.

 

Foto: Climate Partner

Enganando os ribeirinhos

Entre os benefícios oferecidos aos ribeirinhos para que aceitem os projetos REDD em seus territórios está a oferta feita pelos proponentes do título das terras, o que, supostamente, geraria segurança fundiária e estabilidade às famílias.

O que é apresentado nos quatro projetos como esse título, no entanto, é o Cadastro Ambiental Rural, o CAR, um registro autodeclaratório nacional, feito de forma eletrônica e obrigatória para todos os imóveis rurais. Sua função, segundo a lei, é integrar informações ambientais das propriedades em um banco de dados federal para fins de monitoramento, planejamento ambiental e combate ao desmatamento. A lei é explícita ao dizer que o CAR “não será considerado título para fins de reconhecimento do direito de propriedade ou posse”.

Greene me enviou mais de mil CARs registrados em nome de ribeirinhos de Portel a partir de um dos projetos liderados por ele, como prova de seu empenho em “pagar para 2.217 famílias obterem seus direitos à terra”, segundo me disse na primeira mensagem que trocamos.

“A forma como os CARs são explicados nos projetos induz a uma compreensão equivocada. A documentação dos projetos sugere ainda que depois de 30-40 anos, os moradores ganhariam o ‘título oficial’ da terra, deixando margem para uma interpretação – falsa – de que empresas privadas teriam competência para emitir títulos de terra, o que é uma atribuição do Estado brasileiro”, alerta o relatório.

E a confusão atravessou o Atlântico. A Climate Partner, empresa alemã que vende créditos de carbono a partir de projetos REDD em Portel, afirma em seu site que a ideia do projeto é “continuar preservando a floresta tropical e conceder oficialmente aos ribeirinhos, os habitantes da Amazônia, os direitos de terra correspondentes”.

Segundo Nilson Corrêa da Silva, do STTR, a criação dos CARs pelas empresas têm gerado conflitos internos nas comunidades. “Se minha terra era dividida há 100 anos por uma castanheira, agora uma empresa diz que eu tenho direito a 100 hectares de terra. Se a terra não tinha 100, o cara queria 100. Se a terra tinha mais de 100 hectares, já dava confusão com outros vizinhos. Gerou um conflito muito grande na região que a gente não conseguiu controlar até hoje. Estamos fazendo plenárias para mobilizar comunidades rurais para fazer o debate sobre isso”, relatou Silva.

Ronaldo Duarte Marinho, morador da comunidade ribeirinha Sagrado Coração de Jesus, no assentamento Joana Peres 2, me contou que foi difícil o enfrentamento com os funcionários dos projetos de Greene que pretendiam fazer o CAR individual das terras coletivas do assentamento.

“Eles chegaram até a ameaçar a gente, porque andavam com ex-policial no barco contratado por eles. A gente via que ele estava armado. Eu cheguei a ir duas vezes no barco pedir para não fazerem [o CAR individual]. Na área em que eu moro, eles não fizeram, eu não deixei. Mas eles ficavam bravos com a gente, diziam que eu era contra o trabalho social que ia ajudar todo mundo”, revelou Marinho.

O assentamento Joana Peres 2, com cerca de 1.200 famílias e quase 7 mil pessoas, recebeu em julho deste ano o título de concessão de direito real de uso do governo do Pará. Depois disso, um dos projetos REDD de Michael Greene suspendeu as construções de escolas no território.

“Eles inventaram de construir umas escolas dentro das áreas onde fizeram os CARs. Eles fazem qualquer coisa, tiram foto e pegam assinatura das pessoas para aprovar o projeto lá fora. A gente entrou com um pedido, pela associação, na Semas e no Ministério Público para o cancelamento dos CARs pequenos [individuais]. Parte dos CARs estão suspensos. O CAR coletivo do assentamento ainda não saiu, mas deve sair até o final de novembro”, adiantou o ribeirinho.


Sob Bolsonaro, clubes de tiro explodem em áreas de conflito da Amazônia Legal

 

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Carol Castro

Novos estabelecimentos acompanham agronegócio e estão nas regiões mais violentas do Pará, Rondônia, Maranhão e Mato Grosso. 

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A xenofobia disfarçada do empresário bolsonarista Vittorio Medioli O PRECONCEITO IRRACIONAL CONTRA OS NORDESTINOS


A xenofobia disfarçada do empresário bolsonarista Vittorio Medioli

A cada eleição com vitória do PT, vemos enxurrada de ataques preconceituosos contra o povo nordestino. Desta vez, a mais virulenta veio da elite mineira.

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O presidente e candidato derrotado à reeleição Jair Bolsonaro ao lado do empresário e apoiador Vittorio Medioli.

 

Foto: Facebook.

JÁ VIROU QUASE uma tradição. Toda vez que se encerra a apuração de uma eleição presidencial em que o PT sai vencedor, inicia-se uma onda de ataques preconceituosos contra o povo nordestino. E não são apenas ataques de pessoas comuns na internet, mas de políticos e jornalistas do mainstream.

Em 2014, inconformado com a reeleição de Dilma e sua votação maciça na região Nordeste, FHC afirmou que a petista se elegeu graças aos “menos informados” dos “grotões” do país. Segundo ele, o estado de São Paulo é diferente, mais bem informado, e por isso o seu partido teve a maioria dos votos.

Ainda em 2014, em meio à apuração, a jornalista Leilane Neubarth da GloboNews escreveu no Twitter: “Em São Paulo Dilma tem até agora 25% dos votos, já no Piauí ela tem 71% dos votos. Isso dá o que pensar…..”. Em um ambiente político em que se culpava os estados do Nordeste pela reeleição de Dilma, não é difícil imaginar o que fez a jornalista pensar.

Naquela eleição, os “mais bem informados” de São Paulo – e de outros estados que não são considerados “grotões” – elegeram o Congresso mais conservador desde 1964. Nunca havia sido eleito um parlamento com tantos militares, religiosos e ruralistas. É o mesmo Congresso que dois anos depois rasgaria a Constituição para derrubar Dilma e prepararia o terreno para o nascimento do neofascismo bolsonarista na política brasileira.

Oito anos se passaram, mas os ataques ao povo nordestino continuam sem freio. E, mais uma vez, a xenofobia não partiu apenas de bolsominions alucinados na internet. O ataque mais virulento veio do prefeito de Betim, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte. Vittorio Medioli, que apoiou Bolsonaro de maneira entusiasmada durante a campanha, usou sua coluna no jornal mineiro O Tempo, do qual é dono, para fazer um ataque xenofóbico disfarçado de análise bem elaborada.

Ao final da eleição, ele constatou que existem “dois Brasis”: “um que produz mais e arrecada impostos, e outro, paradoxalmente mais carente, que vive das transferências. Dessa forma, a divisão territorial, por meio de um ‘divórcio consensual’, está com suas sementes se espalhando”.

Medioli acredita que o resultado das eleições “ampliou o inconformismo dos que produzem muito e se consideram submissos à decisão de estados mais distantes do centro da produção industrial”. O prefeito mineiro apontou não apenas as diferenças políticas e econômicas entre o Nordeste e o “Brasil que produz mais”, mas fez questão também de ressaltar as diferenças nos costumes. “Há nítidas divergências de pensamentos, costumes e opiniões, agravadas pelas maciças transferências de renda entre Unidades da Federação”.

Depois dessas observações ultrajantes, Medioli colocou a proposta separatista sobre a mesa: “Separar, portanto, é avaliado como alternativa para se desfrutar de rendas regionais próprias que, no formato de hoje, dividem-se em nome da equidade nacional”. Ele deixa suas intenções separatistas mais claras ao concluir que “a única solução para resgatar a legitimidade ameaçada” é “dar a Lula o que é de Lula e a Bolsonaro o que é de Bolsonaro”.

A ideia, claro, não faz sentido nem sob os critérios estabelecidos por Medioli. Os eleitores do estado de Minas Gerais e da cidade de São Paulo, locais considerados por ele como parte do país “que produz e paga impostos”, deram a vitória para Lula. Talvez seja o caso também de separar Betim – cidade em que Bolsonaro venceu – do resto de Minas Gerais, não é mesmo?

Vittorio Medioli não é um bolsominion qualquer. É um italiano naturalizado brasileiro que nasceu em berço de ouro e veio morar no Brasil aos 25 anos. Diferentemente da maioria dos imigrantes italianos, Medioli já chegou ao país como um empresário milionário, fundando em Betim a Sada Transportes e Armazenagem, empresa que hoje é responsável por transportar os carros novos da Fiat e de montadoras do ABC paulista. O empresário chegou a dominar 55% do mercado de logística de automóveis no país.

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Vittorio Medioli posa ao lado dos senadores do PL Carlos Viana e Flávio Bolsonaro e do ex-ministro da Casa Civil de Jair, o general da reserva Walter Braga Netto.

 

Foto: Facebook.

Nos anos seguintes, os negócios foram aumentando e se diversificando. Hoje, Medioli possui mais de 30 empresas em diferentes ramos da economia, como transporte de cargas, fabricação de autopeças, venda de veículos, agricultura, produção de biocombustíveis, logística, siderurgia e imprensa. Essas empresas compõem o grupo Sada, comandado também por sua esposa e suas duas filhas.

Não satisfeito com todo esse poder financeiro acumulado, Medioli entrou para a política, tendo sido eleito quatro vezes seguidas para deputado federal. No quarto mandato, foi o candidato mais votado pelo PSDB em Minas Gerais e o quarto mais votado do estado.

Na campanha para a prefeitura de Betim, Medioli surfou na onda antipolítica. Apesar de ter sido deputado por quatro mandatos seguidos, emulou João Doria e se apresentou não como político, mas como gestor. Hoje, Medioli é, sem sombra de dúvidas, um dos homens mais poderosos e ricos do estado mineiro. Em 2020, ele declarou ao TSE um patrimônio de R$ 350 milhões.

O jornal O Tempo e outros veículos de comunicação do qual é proprietário são usados por ele para fazer politicagem. Além de historicamente atacar seus adversários políticos no estado, o jornal O Tempo tem se dedicado a impulsionar o bolsonarismo, principalmente durante a última campanha eleitoral. Entre o primeiro e o segundo turno, Medioli fez uma série de questionamentos descabidos sobre as urnas eletrônicas em sua coluna, com a clara intenção de engrossar o golpismo de Bolsonaro.

No texto em que pregou a separação do Nordeste, Medioli já havia defendido os golpistas que foram para frente dos quartéis: “Com exceção do Nordeste, milhões de pessoas se aglomeram em frente aos quartéis do Exército procurando alternativas ao que não querem. Não se conformam, pois esperam viver em um Estado mais liberal do ponto de vista econômico e garantidor do que chamam de ‘ordem e do progresso’”.

Na mesma época em que Bolsonaro foi acusado de pedofilia por dizer que “pintou um clima” entre ele e meninas de 14 anos, o jornal O Tempo publicou manchetes como essa:

Para Medioli, Bolsonaro é um “presidente honesto, que varreu a corrupção do Brasil. Corrupção essa que tira comida da mesa do povo”. O curioso é que esse valoroso ítalo-brasileiro “que produz”, paga impostos e defende a moral e os bons costumes dos sudestinos tem um currículo marcado por acusações e condenações de corrupção.

Em 2015, a Justiça Federal condenou Medioli a cinco anos e cinco meses de prisão pelos crimes de evasão de divisas e manutenção clandestina de depósitos no exterior. Os crimes foram apurados pela Operação Colina, um desdobramento do caso Banestado, em que se investigou a evasão de 30 bilhões de dólares de políticos para o exterior entre 1996 e 2002. Segundo a denúncia, Medioli enviou um total de 595 mil dólares para o exterior por meio de um doleiro, sem informar às autoridades competentes.

A grana transitava ilegalmente por contas no exterior para, finalmente, ser depositada em um banco na Suíça em que Medioli possuía conta – uma prática cliché de ricos gananciosos. Na sentença condenatória, a juíza destacou que o motivo do crime era o “enriquecimento fácil” e que as circunstâncias revelaram “audácia e indiferença do acusado”.

No ano passado, a condenação à prisão foi confirmada pela justiça. Mas, neste ano, o TRF-1 extinguiu a punição por prescrição. Além dessa condenação, Medioli foi acusado também de formação de cartel e de quadrilha no setor de transporte de veículos novos. Segundo o site Livre Concorrência, veículo especializado na cobertura da formação de cartéis no Brasil, Medioli é apontado como o chefe de um cartel que controla mais de 90% do setor de transporte de veículos novos. Esse é o Brasil “que produz”!

O separatismo é uma ideia antiga, difundida especialmente por racistas da região Sul, que desejam se separar do resto do Brasil. Há movimentos separatistas também em São Paulo, que exaltam o passado dos bandeirantes — os assassinos e estupradores de pretos escravizados e de povos indígenas — e defendem a ideia de que o estado paulista é que “carrega esse país nas costas”.

Os movimentos separatistas dentro do Brasil são invariavelmente marcados por xenofobia e racismo. Essas ideias não são levadas a sério pela maioria da população dessas regiões e, por enquanto, não têm força suficiente para se impor. Mas quando um milionário influente na economia, na política e na imprensa do segundo estado mais populoso do país trata a separação como uma possibilidade real, não há como duvidar que a coisa pode escalar.

Medioli nasceu na Itália, multiplicou sua fortuna no Brasil e agora propõe fatiar o país por não se conformar com a derrota eleitoral da extrema direita. Ele não é um empresário excêntrico e falastrão como Luciano Hang, nem um político bronco como Bolsonaro. É um homem culto, com fala mansa e pose de moderado, mas que não se acanha na hora de colocar todo seu poderio político e financeiro em defesa dos ideais mais reacionários. Xenofobia é um crime passível de cadeia. Ou o país começa a punir ideias xenófobas ou normalizaremos de vez o preconceito e o ódio contra o nordestino a cada quatro anos.

Elon Musk e o golpismo

 

sáb., 12 de nov. às 08:00

Sábado, 12 de novembro de 2022
Elon Musk e o golpismo

Viramos brinquedos de bilionários – e quem perde é a democracia.

Insatisfeito com o governo, um empresário ficou sabendo de protestos em uma praça central da cidade pelo Facebook e Twitter. Nas ruas, cidadãos munidos de celulares fotografavam, filmavam e postavam para reportar o que, segundo eles, a mídia tradicional não mostrava. Empoderadas e conectadas, as pessoas comuns criavam uma nova forma de fazer política. Suas opiniões tinham valor, e qualquer mobilização poderia ser organizada em poucas horas, desafiando tentativas de censura, o status quo e o poder que ousasse não respeitar a vontade das ruas.

Você conhece muito bem essa história. Mas ela não é a de um empresário catarinense que, informado pelo WhatsApp e YouTube e articulado em grupos de Telegram, resolveu acampar na frente de um quartel protestando a favor da "liberdade" e contra a "censura" em um delírio bolsonarista. Ela aconteceu em 2010, no Egito, quando milhares de pessoas se articularam pela internet e foram às ruas protestar contra o regime de Hosni Mubarak, no movimento que ficou conhecido como Primavera Árabe e chancelou as redes sociais como ferramentas potencialmente revolucionárias – para o bem (nos moldes das democracias liberais ocidentais, claro).

Embora alguns líderes das empresas de tecnologia contestassem na época o papel das redes na transformação da política – caso de Mark Zuckerberg, do Facebook – quase o mundo inteiro comprou a ideia de que a grande praça pública e a comunicação descentralizada eram um motor para a democracia no mundo. 

Seguiram-se anos de entusiasmo, com órgãos antitruste passando pano para aquisições desenfreadas de big techs e tentativas regulatórias sendo asfixiadas em nome da preservação do potencial livre, inovador e aberto das redes. Estar no Twitter, Facebook, Google se tornou vital para qualquer um, em qualquer instância. Até mesmo as relações internacionais e comunicação entre chefes de estado, tradicionalmente litúrgica, migrou para plataformas privadas. Era a chamada "twiplomacy", tão festejada pelos profissionais de políticas públicas do Twitter.

Agora estamos vivendo as consequências disso – e vai piorar. As duas últimas semanas foram didáticas ao explicitar o risco de permitir que plataformas privadas concentrem e mediem o debate público. As redes sociais nunca foram uma praça pública, como bem apontaram muitas pessoas desde o início da ascensão desse modelo comercial baseado em coleta desenfreada de dados, anúncios direcionados e mecanismos para prender a atenção e viciar usuários. Estavam mais para shoppings mesmo.

Mas elas se vendiam muito bem, e esse discurso até colou durante alguns anos – até quando ficou muito claro o potencial delas na disseminação de fake news, teorias conspiratórias, discurso de ódio e, em última instância, corrosão do debate público e da própria democracia. 

Ok, você poderia dizer, mas seus donos e acionistas são responsáveis, há profissionais excelentes trabalhando duro e estudando para coibir efeitos nocivos, as plataformas investem pesado em projetos e iniciativas sociais e de mídia e há um genuíno esforço para mitigar o lado ruim.

Essas duas semanas deixaram claro: não, não há. Por mais boa vontade que exista, nada – profissionais competentes, um bom departamento de RP, acionistas que não querem ter prejuízo, projetos de diversidade e inclusão – consegue frear o potencial danoso da enorme concentração de poder e do modelo de negócios perverso das grandes plataformas. Confiar é um erro.

A devassa de Elon Musk no Twitter é o exemplo mais óbvio. Defensor da liberdade de expressão incondicional, ele prometeu acabar com políticas de combate à desinformação e ao discurso de ódio – em outras palavras, com as áreas do Twitter que, ainda que de forma falha, garantiam que aquele ambiente não se transformasse em um antro nazista e de extrema direita na internet – e está conseguindo. Ele já tinha tentado dialogar com Putin pelo Twitter sobre a guerra na Ucrânia – agora, é considerado por alguns um problema de segurança nacional nos EUA.

Mal assumiu a empresa, o bilionário já promoveu um passaralho que afetou áreas inteiras, como a de direitos humanos. O escritório no Brasil praticamente acabou. Criou um caos de tal tamanho que engenheiros dizem que o site pode ter problemas técnicos sérios em breve – e diretores estratégicos de áreas como segurança, privacidade e compliance renunciaram ao cargo. O FTC, órgão regulador americano, já avisou que "ninguém está acima da lei" e acompanha as movimentações. E, em meio ao caos, Musk admitiu que não descarta a falência da empresa. 

Desesperado para ganhar dinheiro e fazer valer os US$ 44 bilhões da compra, sua principal aposta é a verificação azul para qualquer seguidor que possa pagar – e garantir que, pagando bem, o usuário terá mais visibilidade do que todo o resto. (Curiosamente, exatamente o contrário do que consolidou o Twitter como uma grande praça de conversas democráticas, com qualquer usuário podendo viralizar tanto quanto qualquer outro famoso.) A novidade já está funcionando e seu principal efeito, até agora, é uma profusão de fakes verificados que rendem risadas, mas transformam o Twitter em um caos informacional muito pior. 

Não poderia ser mais didático: era isso que acreditávamos que era revolucionário, praça pública de conversas horizontais, novo palco da diplomacia mundial etc. Um brinquedo de bilionário.

E não é só o Twitter. Só nessa semana, nós mostramos no Intercept que, apesar da resolução do TSE e de regras próprias da plataforma, o YouTube tem falhado em moderar conteúdo antidemocrático (e proibido). A plataforma do Google também privilegiou, ao longo das eleições, a Jovem Pan nas recomendações aos usuários. Perguntei ao YouTube quantos moderadores trabalhavam especificamente no Brasil, já que vários denunciantes de big techs já apontaram que as empresas globais, em geral, dedicam menos esforços para países do sul global. A empresa não me respondeu. 

O que as redes criam se reflete nas ruas. Os golpistas vivem em um ecossistema informacional paralelo, que o pesquisador João Cezar Castro Rocha classificou como "dissonância cognitiva coletiva deliberada". Segundo ele, a extrema direita transnacional, com apoio do capital internacional e das big techs, aprendeu a combinar o elemento verticalizador das plataformas – que atuam filtrando e organizando o que os usuários veem – com a horizontalidade. É um ecossistema de mídia que se parece com a Hidra de Lerna: você exclui um canal agora, na sequência surge outro, e o verdadeiro problema nunca é resolvido. 

Quem ganha com isso? Os "MEIs", o que o pesquisador chamou de "microempreendedor ideológico", que lucram com a radicalização política em anúncios em seus canais no YouTube. As plataformas e seus acionistas, que recebem anúncios por cliques e audiência (e faturaram centenas de milhões de reais só na campanha eleitoral brasileira), em um modelo de negócios próspero. E os bilionários, como Musk, que não apenas querem tentar piorar a lógica da rede a fim de aumentar a margem de lucros, mas também transformá-la em uma arma política e comunicacional a favor de seus outros negócios nos EUA e no mundo. 

A essa altura, já deveria estar claro: a internet comercial como é hoje, essa que aprisiona os usuários – usuários, como os de drogas – em seus ecossistemas moldados para maximizar o lucro não é revolucionária. Muito pelo contrário. É uma prisão perigosa para nós e para a sociedade. Por mais que iniciativas de reparação existam e sejam bem-vindas, elas ainda dependem da boa vontade de empresas privadas – e Elon Musk no Twitter mostrou que, por melhor que seja a iniciativa, nossa comunicação estratégica estará sempre à mercê de quem paga mais. 

Não podemos ser brinquedos de bilionários ou minas de dados para grandes extrativistas digitais. Esse sistema precisa ser revisto e regulamentado de forma apropriada, ampla e responsável antes que a próxima onda conservadora chegue. E aí pode ser tarde demais. 

Tatiana Dias
Editora Sênior

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Destaques

A xenofobia disfarçada do empresário bolsonarista Vittorio Medioli
João Filho
A cada eleição com vitória do PT, vemos enxurrada de ataques preconceituosos contra o povo nordestino. Desta vez, a mais virulenta partiu da elite mineira.

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Sob Bolsonaro, clubes de tiro explodem em áreas de conflito da Amazônia Legal
Carol Castro

Novos estabelecimentos acompanham agronegócio e estão nas regiões mais violentas do Pará, Rondônia, Maranhão e Mato Grosso. 

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Empresário norte-americano vende discurso ambiental, mas lucra com terras públicas e gera conflitos entre ribeirinhos no Pará
Felipe Sabrina
Estudo revela que áreas públicas na cidade de Portel têm sido usadas para vender créditos de carbono para gigantes estrangeiras.
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