sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Coronavírus: porque nenhum país da África começou ainda a vacinar contra a covid-19

 

Coronavírus: por que nenhum país da África começou ainda a vacinar contra a covid-19

Anne Soy - Correspondente sênior da BBC para África
·8 minuto de leitura
Um voluntário recebe uma injeção de um profissional de saúde durante o primeiro teste clínico humano do país para uma potencial vacina contra o novo coronavírus, no Baragwanath Hospital em Soweto, África do Sul, 24 de junho de 2020
África do Sul tem participado de testes em humanos para várias vacinas potenciais para covid-19

A África terá que esperar "semanas, senão meses" antes de receber as vacinas contra a covid-19 aprovadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de acordo com vários funcionários que trabalham para obter doses para o continente.

Quase 900 milhões de doses foram garantidas até agora por meio de várias iniciativas, o suficiente para inocular cerca de 30% dos 1,3 bilhão de pessoas que vivem no continente neste ano.

O acúmulo de pedidos de países ricos, déficits de financiamento, regulamentações e desafios logísticos, como cadeias de frio, retardaram o processo de distribuição das vacinas. "O mundo está à beira de um fracasso moral catastrófico e o preço será pago com vidas e meios de subsistência nos países mais pobres", advertiu o chefe da OMS, Tedros Ghebreyesus Adhanom.

A pressão por maior equidade têm crescido. Quase 40 milhões de doses foram administradas em pelo menos 49 países de renda mais alta, em comparação com apenas 25 doses administradas em apenas um dos países de renda mais baixa, de acordo com Adhanom. "Não 25 milhões, não 25 mil, apenas 25", disse ele, sem dizer a que país se referia.

Até agora, nenhuma das principais vacinas ocidentais chegou à África, quase dois meses depois que as primeiras doses foram administradas na Europa.

Uma coalizão de organizações e ativistas apelidada de The People's Vaccine Alliance descobriu que "as nações ricas que representam apenas 14% da população mundial compraram mais da metade (53%) de todas as vacinas mais promissoras". Isso incluiu todas as vacinas da Moderna para 2021 e 96% da produção esperada da Pfizer.

O Canadá liderou a lista, de acordo com os dados da empresa de análises Airfinity, "com doses suficientes para vacinar cada canadense cinco vezes". Grande parte dessa demanda deve ser atendida antes que os países de renda mais baixa tenham alguma chance.

Centenas de ativistas anti-Aids da Aids Therapeutic Treatment Now (ATTN) marcham para protestar contra a inacção do governo sul-africano em fornecer medicamentos antirretrovirais a pessoas infectadas com o vírus HIV, 3 de Agosto de 2003 em Durban.
Uma campanha combinada resultou na disponibilização de medicamentos contra a Aids acessíveis na África

'Não busque superlucros'

Na África, a situação reacende memórias da década de 1990, quando o tratamento antirretroviral (ARV) para HIV/Aids foi feito nos Estados Unidos. Embora o continente tivesse uma população muito maior de pessoas infectadas com HIV, demorou pelo menos seis anos para que o tratamento que salvasse vidas pudesse estar disponível para os africanos.

Doze milhões de pessoas morreram na África de complicações relacionadas à Aids em uma década, mesmo com a mortalidade nos Estados Unidos caindo drasticamente, de acordo com análises dos Centros Africanos para Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Winnie Byanyima, diretora-executiva da UNAids, o braço da ONU para o combate da Aids, tem estado na vanguarda daqueles que pedem maior equidade dos fabricantes de vacinas para covid-19.

"Não estamos pedindo a eles que tenham prejuízos", diz ela à BBC.

Com os antirretrovirais, foi a pressão das pessoas que vivem com HIV e dos defensores do direito à vida que levou os governos a permitir a produção de tratamentos genéricos muito mais acessíveis.

"O preço (do tratamento anti-retroviral por pessoa) caiu de US$ 10 mil por ano (por pessoa) para apenas US$ 100 por ano".

Ela quer que o mesmo ocorra com a vacina da covid-19, exortando a indústria farmacêutica "a não ser movida pelo desejo de superlucros".

Byanyima acrescenta que as fabricantes ainda podem ter ganhos, mesmo se compartilharem suas fórmulas.

Um membro da equipe médica do Departamento de Saúde da África do Sul trabalha em um computador em uma unidade móvel de teste no Aeroporto Internacional O.R Tambo em Ekurhuleni em 30 de dezembro de 2020, onde os passageiros que apresentam sintomas de COVID-19 na chegada são testados
África do Sul participou de testes de vacinas em humanos, mas ainda não começou a vacinar pessoas

'Furando fila'

Tedros Ghebreyesus, da OMS, também clama por equidade: "Mesmo falando a linguagem do acesso equitativo, alguns países e empresas continuam priorizando negócios bilaterais, contornando a Covax, elevando os preços e tentando ir para a frente da fila", disse.

A Covax é uma iniciativa da OMS e da Vaccine Alliance para distribuir as vacinas para a covid-19 de maneira equitativa em todo o mundo.

"A maior parte do suprimento das principais vacinas foi pré-encomendado por países ricos, mesmo antes de os dados de segurança e eficácia serem disponibilizados", diz Richard Mihigo, chefe de imunização e desenvolvimento de vacinas no escritório da OMS na África.

Questionado sobre por que a Covax não fez o mesmo, ele disse que garantir financiamento foi a primeira tarefa em que a iniciativa se envolveu. Até agora, US$ 6 bilhões foram levantados de uma meta de US$ 8 bilhões para 92 países de renda média e baixa, de acordo com Thabani Maphosa da Vaccine Alliance, Gavi.

Até agora, a iniciativa garantiu dois bilhões de doses para esse grupo de países, que inclui toda a África. Cerca de 600 milhões são para o continente.

A União Africana fez acordos para que os Estados membros solicitem financiamento de US$ 7 bilhões de credores, que cobriria até 270 milhões de vacinas, de acordo com seu atual presidente, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa.

'Operação Mammoth'

Mas não é apenas a compra de vacinas que precisa de financiamento. Os países também vêm investindo em cadeias de frio enquanto se preparam para sua chegada. Isso é especialmente importante para a vacina Pfizer, que deve ser mantida a -70°C.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que normalmente lida com a distribuição de vacinas infantis, cuidará da logística de entrega das vacinas Covid-19 nas instalações da Covax.

A agência se prepara para transportar pelo menos o dobro de sua capacidade normal — o que chama de "uma operação logística gigantesca e histórica".

Mas antes que isso possa ser feito, os países precisam ter infraestrutura pronta para receber e administrar as doses. Benjamin Schreiber, que está coordenando as instalações da Covax para a Unicef, diz que está "preocupado por não termos recursos suficientes para a implantação e preparação".

"Pelo que estamos vendo na implantação em alguns dos países de alta renda, essa operação é complicada, necessita de recursos e deve ser planejada de maneira adequada. Não houve recursos globais suficientes para os países de baixa renda", diz ele à BBC.

Apesar das deficiências, Schreiber traça um quadro mais otimista da capacidade do continente de introduzir novas vacinas.

"A África tem muito mais experiência do que muitas outras regiões — fizemos muitos lançamentos de vacinas nos últimos 10 anos e há boa experiência para organizar campanhas de vacinação direcionadas."

Ele acrescenta que alguns países que lidaram com o vírus ebola também têm expertise e infraestrutura em cadeias de ultra-frio. Mesmo antes de a pandemia começar, a organização diz que tem apoiado a infraestrutura da rede de frio em países de baixa renda, incluindo a instalação de 70 mil geladeiras, metade das quais movidas a energia solar.

A situação atual em cada país ainda não está disponível. Maphosa, da Gavi, disse que os países estão enviando documentos para informá-la sobre sua capacidade para distribuir vacinas.

Apenas uma vacina aprovada pela OMS

Mas mesmo que estivessem prontos, questões regulatórias são outro entrave. Nas instalações da Covax, apenas vacinas aprovadas pela OMS podem ser compradas. Até agora, apenas a da Pfizer foi listada para uso emergencial pela organização. O processo de aprovação das vacinas Moderna e Astrazeneza está em andamento.

"As vacinas que estão sendo recomendadas para uso de emergência precisam absolutamente atender aos padrões mínimos de segurança e eficácia", diz Mihigo.

Já Estados Unidos e UE têm agências regulatórias que "complementam" o trabalho da OMS e, portanto, podem lançar vacinas sem a aprovação do órgão.

No entanto, no mundo em desenvolvimento, muitos países contam com a OMS para fazer a devida diligência, acrescenta Mihigo.

Essa garantia de qualidade tem um impacto direto na vontade das pessoas de tomar vacinas. Um estudo conduzido pelo CDC africano e pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres no último trimestre de 2020 descobriu que a maioria dos africanos — quatro em cada cinco — estaria disposta a tomar uma vacina para covid-19 "se ela fosse considerada segura e eficaz".

Vários países, entretanto, lançaram vacinas que ainda não foram aprovadas pela OMS.

"Nossa recomendação é que os países confiem não apenas na pré-qualificação do órgão, mas também em qualquer outra entidade reguladora competente", diz Mihigo.

Seychelles, Marrocos e Egito estão administrando a vacina chinesa Sinopharm e a Guiné, a russa Sputnik V.

O diretor do CDC africano, John Nkengasong, disse que não há negociações em andamento para a compra dessas duas vacinas, mas que o órgão regional está "em negociações" com os países produtores.

Mais e mais nações africanas estão demonstrando interesse por essas duas vacinas, enquanto a espera pelas que estão sendo administradas no Ocidente continua.

Um membro da equipe médica do Departamento de Saúde da África do Sul obtém uma amostra nasal de um passageiro em uma unidade móvel de teste no Aeroporto Internacional O.R. Tambo em Ekurhuleni em 30 de dezembro de 2020, onde os passageiros que apresentam sintomas de COVID-19 na chegada são testados
África do Sul tem o maior número de infecções na África

Lições 'não aprendidas'

A BBC não conseguiu obter uma data específica do funcionário envolvido sobre quando as vacinas Covax poderiam ser entregues no continente. A estimativa mais otimista seria fevereiro, mas o prazo pode se estender até o fim de março para as remessas iniciais da instalação de Covax.

"Queremos distribuir as primeiras doses o mais rápido possível", diz Schreiber, da Unicef.

As 270 milhões de doses garantidas diretamente pela União Africana devem ser entregues a partir de abril.

Nenhuma dose das vacinas aprovadas pela OMS está atualmente disponível para distribuição no continente.

"Essa lição (do tratamento anti-retroviral do HIV) ainda não foi aprendida", diz Byanyima, da UNAids.

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Variantes do coronavírus: os perigos das mutações ao combate da pandemia de covid-19

 


Variantes do coronavírus: os perigos das mutações ao combate da pandemia de covid-19

Richard Gray - BBC Future
·12 minuto de leitura
Teste de covid-19
Os cientistas estão começando a notar padrões nas mutações do vírus causador da covid-19 em todo o mundo

Por mais de três meses, o paciente lutou contra a covid-19. Seu sistema imunológico já estava em péssimo estado quando ele pegou o vírus — em meio a um tratamento para combater um linfoma, tipo de câncer do sangue, que exauriu algumas de suas células imunológicas.

Com ele estava com poucas das defesas habituais do organismo contra infecções, o vírus foi capaz de se espalhar relativamente sem controle pelo seu corpo.

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Enquanto os médicos tentavam ajudar o paciente idoso a lutar contra a covid-19, deram a ele plasma sanguíneo coletado de pessoas que já haviam se recuperado da doença. Contidos nesse líquido marrom-leitoso — também conhecido como plasma convalescente —, estavam anticorpos contra o vírus que poderiam ajudar a neutralizá-lo.

Ao longo de 101 dias de tratamento, os médicos do Addenbrookes Hospital em Cambridge, no Reino Unido, coletaram 23 amostras com swab (haste semelhante a cotonete). Cada amostra foi enviada para um laboratório próximo para ser analisada.

Mas quando os virologistas examinaram o material genético do vírus nas amostras, notaram algo surpreendente — o vírus causador da covid-19 estava evoluindo diante de seus olhos.

"Vimos algumas mudanças notáveis ​​no vírus ao longo desse tempo", diz Ravindra Gupta, especialista em doenças infecciosas do hospital e microbiologista clínico da Universidade de Cambridge, que analisou as amostras do paciente.

"Vimos mutações que pareciam sugerir que o vírus estava dando sinais de adaptação para evitar os anticorpos do tratamento de plasma convalescente. Foi a primeira vez que vimos algo assim acontecendo em uma pessoa em tempo real."

Quase um ano após o início da pandemia de covid-19, a questão das mutações ganhou força. Novas variantes capazes de se espalhar mais rapidamente estão surgindo e levando a questionamentos inevitáveis ​​sobre até que ponto podem tornar as vacinas recém-aprovadas menos eficazes.

Até o momento, há poucas evidências de que isso possa acontecer, mas os cientistas já estão começando a analisar como o vírus sofrerá mutação no futuro — e se poderão ser capazes de evitar isso.

Vejamos o que eles aprenderam até agora.

Teste em laboratório
O esforço mundial para testar e sequenciar amostras do vírus da covid-19 está ajudando a revelar novas variantes à medida que surgem

Entre as mutações que Gupta e seus colegas identificaram, estava a eliminação de dois aminoácidos — conhecidos como H69 e V70 — na proteína spike, localizada na parte externa do vírus causador da covid-19. Esta proteína desempenha um papel fundamental na capacidade do coronavírus de infectar as células.

A cápsula oleosa que envolve a maior parte do vírus é cravejada com essas espécies de espinhos (spikes) projetados para fora, fazendo com que pareça uma coroa quando observado por meio de um microscópio eletrônico. É essa aparência que dá nome à família dos coronavírus — corona significa "coroa" em latim.

E os spikes são a principal maneira pela qual a covid-19 reconhece as células que pode infectar, eles ajudam o vírus a penetrá-las.

Quando Gupta e sua equipe examinaram mais de perto a exclusão na proteína spike que haviam identificado, os resultados se mostraram preocupantes.

"Fizemos alguns experimentos de infecção usando vírus artificiais, e eles revelaram que a mutação H69/V70 aumenta a infecciosidade em duas vezes", diz Gupta.

Isso levou os pesquisadores a vasculhar os bancos de dados genéticos internacionais de covid-19. Foi quando descobriram que algo mais alarmante estava acontecendo.

"Queríamos ver o que estava acontecendo em todo o mundo e nos deparamos com esse grande grupo de sequências em expansão [H69 / V70] no Reino Unido", conta o especialista.

"Quando olhamos mais de perto, descobrimos que havia uma nova variante causando um grande surto."

Quando fizeram essa descoberta no início de dezembro do ano passado, especialistas em doenças infecciosas em outras partes da Inglaterra estavam se esforçando para entender o rápido aumento do número de casos em Londres e no sudeste da Inglaterra, apesar do lockdown nacional.

Eles começaram a notar algo estranho nos resultados dos testes de covid-19.

A principal ferramenta de diagnóstico da doença são os testes PCR (sigla para reação em cadeia da polimerase), que buscam traços do material genético do vírus nas amostras coletadas.

Normalmente, ele foca em três partes do vírus para confirmar a presença de uma infecção.

Mas um desses alvos estava ficando cada vez mais negativo em amostras de regiões da Inglaterra onde o número de casos estava em rápida expansão, enquanto os outros dois alvos continuavam a funcionar nos testes.

Vírus de covid-19
As proteínas spike (em vermelho) ajudam o vírus a entrar nas células, mas também são os alvos dos anticorpos

"Não perdemos casos, mas é incomum ver duas (partes) dos testes funcionando, mas uma terceira não", afirmou Wendy Barclay, virologista do Imperial College London e membro do grupo de conselheiros científicos sobre vírus respiratórios novos e emergentes do Reino Unido ao programa Today, da BBC, em 22 de dezembro.

O fragmento do vírus que esta parte do teste PCR visava era uma sequência da proteína spike. Quando os cientistas investigaram mais a fundo, descobriram que o vírus nessas amostras havia sofrido uma mutação — a mesma H69/V70 identificada por Gupta —, o que significava que o teste PCR, às vezes, não conseguia detectá-lo.

Junto com essa mudança genética, eles também encontraram 16 outras mutações que alteraram as proteínas virais que haviam codificado, incluindo várias na proteína spike. O que eles descobriram foi uma nova linhagem do vírus da covid-19 que sofreu várias mutações em um período de tempo relativamente curto.

E chamaram a nova linhagem de B117 — a variante britânica da covid-19, também conhecida como VOC 202012/01 no fantástico mundo das nomenclaturas do coronavírus. Ela deixou um rastro por todo o Reino Unido e se espalhou para 50 outros países em meados de janeiro.

O surgimento dessa nova variante — que se estima ser 50%-75% mais transmissível do que a versão original do vírus — junto a outras que estão sendo detectadas agora, como as variantes sul-africana e brasileira, revelou como o coronavírus está sofrendo mutações à medida que a pandemia avança.

Também levantou preocupações sobre como pode continuar mudando no futuro, à medida que tentamos combatê-lo com vacinas.

"Para mim, isso parece um vislumbre do futuro, onde estaremos em uma corrida armamentista contra esse vírus, assim como estamos com a gripe", afirma Michael Worobey, biólogo evolucionista viral da Universidade do Arizona, nos EUA.

A cada ano, a vacina contra a gripe precisa ser atualizada conforme seu vírus sofre mutações e se adapta para driblar a imunidade já presente na população, explica Worobey. Se o coronavírus demonstrar habilidades semelhantes, pode ser que teremos que adotar táticas parecidas para mantê-lo longe, atualizando regularmente as vacinas.

Muitos acreditam que as empresas farmacêuticas já deveriam estar atualizando suas vacinas para atacar as versões mutantes da proteína spike do vírus.

Mas será que os padrões de mutação que os cientistas estão vendo surgir ao redor do mundo podem oferecer uma pista sobre como o vírus continuará a evoluir?

"É difícil especular, mas é interessante que, de repente, parece haver muitas mutações surgindo que podem estar associadas ao escape imunológico ou reconhecimento imunológico", diz Brendan Larsen, estudante de doutorado que trabalha com Worobey.

Recentemente, ele identificou uma nova variante do vírus da covid-19 circulando no Arizona que tem a mutação H69 / V70 observada em várias outras versões do vírus. Embora ainda esteja se espalhando em um nível relativamente baixo lá e em outros estados americanos, isso sugere que essa mutação em particular está ocorrendo de forma independente ao redor do mundo, diz Larsen.

Essa ocorrência repetida da mesma mutação em diferentes variantes dá algumas pistas sobre o que está acontecendo — como o vírus se espalhou por milhões de pessoas, ele pode estar enfrentando pressões evolutivas semelhantes que o estão levando a mudar de maneiras específicas.

Aplicação de vacina
Existe a preocupação de que, conforme o vírus da covid-19 continue a sofrer mutações, ele possa se adaptar de forma a tornar as vacinas atuais menos eficazes

"Por si só, elas provavelmente terão um impacto menor no geral", diz Larson. "Mas, juntas, todas essas mutações diferentes podem tornar mais difícil para o sistema imunológico reconhecer o vírus."

Isso pode fazer com que mais pacientes contraiam a doença duas vezes — e talvez também signifique que as vacinas precisem ser alteradas.

"Mesmo uma quantidade relativamente pequena de escape imunológico pode tornar mais difícil alcançar a imunidade coletiva", acrescenta Worobey.

Pesquisadores em Illinois, nos EUA, também identificaram recentemente outra nova variante, chamada 20C-US, que tem uma série de mutações únicas e específicas que podem alterar a capacidade do vírus de se replicar uma vez dentro das células humanas.

E também apresenta uma mutação perto de uma região da proteína spike que acredita-se ter sido crucial para permitir que o vírus saltasse entre espécies, chegando aos humanos no fim de 2019.

Essa região, conhecida como local de clivagem, permitiu ao vírus sequestrar uma importante enzima que opera no corpo humano. A enzima corta a proteína spike neste ponto, fazendo com que ela se abra e revele sequências ocultas que a ajudam a se ligar mais fortemente às células do trato respiratório humano, entre outras.

De acordo com os cientistas, uma mutação próxima a essa região pode alterar ainda mais esse comportamento.

Os pesquisadores por trás do estudo afirmam que a linhagem 20C-US está se espalhando rapidamente pelos EUA desde junho — e preveem que poderá se tornar em breve a variante dominante do vírus no país.

Recentemente, cientistas da Universidade de Manitoba, em Winnipeg, no Canadá, também identificaram o surgimento de duas variantes que se espalharam pelo mundo e estão associadas a "altas taxas de mortalidade" em comparação com o vírus anterior.

Uma apresenta uma mutação chamada V1176F na proteína spike, que ocorre junto com outra mutação denominada D614G.

A primeira letra dos nomes dessas mutações indica o aminoácido que foi substituído, o número é sua localização na proteína, e a última letra é o novo aminoácido que apareceu naquele local.

A mutação D614G sozinha apareceu relativamente no início da pandemia na Europa e causou um aumento drástico na carga viral compartilhada pelos pacientes infectados, o que ajudou o vírus a se espalhar mais rapidamente.

O acréscimo da mutação V1176F pode alterar esse comportamento ainda mais, dizem os pesquisadores canadenses, e ela apareceu em vários países de forma independente, sugerindo que oferece uma vantagem ao vírus.

A outra variante que eles identificaram apareceu rapidamente na Austrália e carrega a mutação S477N, que parece ter aumentado a capacidade do vírus de se ligar a células humanas.

Amostras de esgoto sendo coletada em Belo Horizonte
Os esforços para detectar o mais cedo possível novas variantes incluem o teste de amostras de esgoto em cidades como Belo Horizonte

Os pesquisadores alertam que essas duas novas mutações "podem representar problemas de saúde pública no futuro" se continuarem a se espalhar e proporcionar uma vantagem ao vírus.

Eles acrescentam que a covid-19 parece "estar evoluindo de forma não aleatória, e os hospedeiros humanos modelam as novas variantes com aptidão positiva para poder facilmente se espalhar pela população".

Esses sinais de adaptação do vírus não são totalmente surpreendentes para os cientistas. Na maioria dos vírus e bactérias causadores de doenças, o uso de tratamentos e vacinas faz com que desenvolvam maneiras de escapar deles para que possam continuar a se espalhar.

Aqueles que desenvolvem resistência a um tratamento ou conseguem se esconder do sistema imunológico sobreviverão por mais tempo para se replicar e, assim, disseminar seu material genético.

"Não vejo razão para que esse processo seletivo evolutivo seja diferente em uma pandemia como a de Sars-CoV-2 [o vírus causador da covid-19], em comparação com uma epidemia geograficamente localizada", diz Carolyn Williamson, chefe do departamento de virologia da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e uma das pesquisadoras que identificou a variante sul-africana de rápida propagação em dezembro.

"Pode-se especular que o vírus sendo exposto a diferentes pressões seletivas em diferentes regiões do mundo, junto a sua rápida disseminação, poderia fazer essas propriedades mais favoráveis ​​surgirem mais rapidamente, mas nós realmente não sabemos."

É claro que pode haver outras versões preocupantes da covid-19 circulando em populações onde o sequenciamento genético necessário para detectá-las não é facilmente acessível. Uma das razões pelas quais o Reino Unido identificou a variante B117 logo foi pelo fato de ser líder mundial em testes e sequenciamento.

"Se novas variantes surgirem em um país onde não há muito sequenciamento de genoma, pode ser um problema real", diz Larson.

Um grupo de cientistas chineses usou vírus artificiais para testar mutações na proteína spike que poderiam levar o vírus a se tornar resistente a anticorpos retirados de pacientes que se recuperaram da covid-19.

Eles descobriram cinco mutações que fizeram isso, mas uma em particular — N234Q — aumentou drasticamente o nível de resistência a anticorpos. Mas isso ainda não foi visto em nenhuma das variantes que despertam preocupação circulando ao redor do mundo.

O estudo dele, no entanto, também oferece alguma esperança, uma vez que a identificação dessas mudanças pode ser útil no desenvolvimento de futuras vacinas.

Mas, à medida que os cientistas observarem mudanças no vírus nos próximos meses, eles também estarão perfeitamente cientes das inúmeras tragédias pessoais que estão por trás dos bancos de dados de genomas de vírus e gráficos que mostram sua disseminação. Mais de dois milhões de pessoas perderam a vida em decorrência da covid-19 até agora.

Entre elas, está o homem idoso que tinha um linfoma e foi tratado pelos colegas de Gupta no Addenbrookes Hospital, em Cambridge.

"Ele recebeu um diagnóstico de câncer terminal, mas conseguiu sobreviver por 10 anos até a covid-19 aparecer", diz Gupta.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

Bolsonaro quer um cheque em branco

 

Bolsonaro quer um cheque em branco


Nesta semana, as redes sociais foram inundadas por memes sobre os R$ 15 milhões gastos em leite condensado pelo poder Executivo federal em 2020, revelados em reportagem do portal Metrópoles sobre as despesas do governo com alimentação. No Twitter, jornalistas discutiram a reportagem, a contextualização dos dados - e a falta dela. Parlamentares formalizaram representações pedindo que o TCU investigue as compras do Executivo. O jornal britânico The Guardian repercutiu a história. O Portal da Transparência ficou horas fora do ar. Segundo a CGU, por conta de um volume de acessos “fora do habitual”. Ontem, o Ministro do órgão disse que os números que estão no Painel de Compras, que basearam a reportagem do Metrópoles, não refletem a realidade.

A grandeza dos números assusta, e as pessoas têm o direito de conhecer e compreender os gastos do poder Executivo. No Twitter, o Inesc - Instituto de Estudos Socioeconômicos - ressaltou a importância de investigar as compras do governo, mas sem perder de vista outros montantes que deveriam causar igual espanto, como os 29 bilhões que sobraram dos recursos separados para o auxílio emergencial em 2020. 

Enquanto cidadãos estarrecidos buscavam o Portal da Transparência para entender os gastos do governo, a Fiquem Sabendo revelou que o Tribunal de Contas da União não vai mais receber denúncias de descumprimento à Lei de Acesso à Informação. Caso a LAI não seja cumprida, será necessário recorrer ao Poder Judiciário para garantir que órgãos públicos cumpram seu dever de serem transparentes - o que torna o processo de conseguir informações mais lento, custoso, difícil e menos transparente.

Em nossa newsletter dos Aliados desta semana - exclusiva para os apoiadores da Pública - o editor Thiago Domenici contou que uma das dificuldades que enfrentamos na produção das reportagens do especial Amazônia Irrespirável, que mostra os efeitos da sobreposição entre a Covid-19 e as queimadas, foi a falta de transparência do governo federal. Apesar da dificuldade para acessar dados do Ministério da Saúde, fundamentais para as reportagens, encontramos outras saídas e investigamos mesmo assim.

Aglomerado em uma churrascaria com diversas pessoas sem máscara, enquanto o país tem 220 mil mortos por Covid-19 e há uma semana registra mais de mil mortes por dia, Jair Bolsonaro falou sobre os gastos com leite condensado em mais uma de suas repugnantes e violentas reações, repleta de ataques à imprensa. A quebra de decoro e os ataques aos jornalistas não são novidade, sabemos bem. Mas é importante que não nos acostumemos com eles. Nem com o profundo descaso do presidente e seu governo com os mais 220 mil mortos por Covid-19. 

Bolsonaro quer um cheque em branco. Quer que, tal qual os aglomerados na churrascaria, assistamos rindo e aplaudindo enquanto o oxigênio falta, as mortes aumentam, o auxílio acaba, a fome volta, a floresta vai abaixo e o governo fica cada vez menos transparente. Mas não vamos pagar essa conta: vamos seguir investigando e denunciando a falta de transparência.

Marina Dias, coordenadora de comunicação da Agência Pública



Pauta Pública.
 Nosso podcast recebe a editora chefe do Portal Drauzio Varella, Mariana Varella, para falar como é produzir jornalismo sobre saúde pública durante a maior pandemia do século, e anuncia o começo de uma grande parceria com a Rádio Guarda-ChuvaOuça agora na sua plataforma de streaming favorita. 

O que você perdeu na semana


Céu das crianças. Organizada pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) e pelo Museu do Índio (MI), a exposição virtual “Os céus dos povos originários” traz 30 imagens e histórias sobre céus e terras, contadas por crianças e adolescentes de idade entre 5 e 15 anos. Os participantes são membros de doze povos indígenas, e que residem em 9 estados brasileiros. Visite aqui.

Covid no Amazonas. A crise de saúde em Manaus continua: segundo a Amazônia Real, fila de pacientes no interior do Amazonas à espera de uma transferência por UTI aérea para Manaus ou outros centros do país só cresce. Ao menos 34 doentes de Covid-19 estavam nessa situação até a última quinta-feira (21). 

Palmito de agrofloresta indígena. Por dar origem ao tipo de palmito mais saboroso, a juçara, árvore nativa da Mata Atlântica, foi consumida no Brasil ao limite da extinção. Para reverter a perda, indígenas Guarani do litoral paulista estão plantando juçaras por meio do sistema agroflorestal  já são mais de 100 mil pés desde 1998. 

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