A
corrupção e a falta de debate sobre o Brasil que queremos
Roberto Amaral*
Enquanto priorizam-se os
escândalos, deixamos de lado as questões centrais para o
País, como a concentração de renda e o desemprego.
A denúncia de corrupção,
sistêmica e endêmica, tem sido uma constante da História republicana, bem mais
presente que o debate sobre os destinos do país, e muitas vezes repercutindo na
vida político-institucional.
Assim, a discussão sobre o
‘Projeto Brasil’, sobre que país queremos, é secundarizada, os graves problemas
estruturais, econômicos e sociais jogados para debaixo do tapete, ignoradas as
questões estratégicas.
Por que as duas ordens de
preocupações não são enfrentadas simultaneamente?
O fato objetivo é que,
enquanto a prioridade é a magnificação dos escândalos, construindo vítimas,
algozes e heróis, ficam de lado as questões centrais do país, aquelas que dizem
respeito ao nosso dia-dia e ao futuro, como a recessão, o desemprego e a
concentração de renda, e todas as sequelas do subdesenvolvimento do qual não
conseguimos nos apartar.
Mesmo a crise das
instituições, a crise da magistratura e a crise do Ministério Público, a crise
de legitimidade e representatividade dos Poderes, desnudadas com a chamada
‘Operação Lava-Jato’, cedem lugar ao espetáculo da fogueira de vaidades que aos
poucos desmoraliza julgados e julgadores, investigadores e investigados,
delatados e delatores, promotores e juízes, todos envolvidos numa só mixórdia.
Dessa pobreza não se livrou,
sequer, o Supremo Tribunal Federal, e dela não se livrará enquanto seu padrão,
técnico e ético, for pautado pelo inefável ministro Gilmar Mendes, advogado de
interesses notórios atuando com a toga de juiz.
A espetacularização da
Justiça, de uma Justiça politizada e partidarizada, a transformação de juízes e
procuradores e delegados em pop-stars que passam a disputar espaços na mídia,
vem ensejando o desrespeito crescente aos ritos processuais.
Em nome de preservar o
direito, ameaçado pelos poderosos, a nova ordem jurídica viola o Direito,
repetindo a ditadura, que, a pretexto de preservar da Constituição e da
democracia, rasgou a Carta Magna e extinguiu a democracia.
A corrupção, cuja presença
nociva ninguém nega, como ninguém nega a necessidade de reduzi-la à menor
proporção possível, mas que não encerra os mais graves problemas brasileiros, é
transformada em instrumento político que tende à alienação das massas,
enganadas, quando se lhes promete salvar o Brasil tão só erradicando a
roubalheira. O golpe de 1964, como sabemos, prometia ‘prender os corruptos’ e
terminou por gestar uma série de Malufs.
Antes, o populismo de Jânio
Quadros prometeu ‘varrer a bandalheira’, e mais recentemente Collor de Mello
anunciou a prisão dos ‘marajás’. Sabemos como terminaram seus governos.
Essa alienação, dirigida,
desviando a atenção das questões cruciais da vida nacional, por força do papel
dos meios de comunicação de massa e a anomia da universidade, é, porém, o tema
que, encantando a mídia, mobiliza a classe-média urbana.
A História registra o risco
desse mote, destruindo os valores da política, desmoralizando os instrumentos
da democracia representativa, desmoralizando os governos e convencendo a
população, e suas lideranças, ‘de que o país está à deriva’, como por várias
vezes já registrou o Comandante do Exército, e suas declarações devem ser lidas
com muito cuidado depois das ameaças, claras, de seu comandado general Mourão.
Quando se coloca o país em
face de um impasse e não se indica a alternativa, que sempre há, se está
aprofundando a crise, real, e suscitando saídas ‘heterodoxas’ sempre pleiteadas
pelas forças reacionárias, as quais, brandindo loas à democracia, na verdade
pleiteiam a emergência de governos autoritários.
Nesses momentos, e vivemos
presentemente um deles, as ‘vivandeiras’, como denunciou o próprio ditador
Castello Branco, rondam os quartéis em romarias, na expectativa de resolver
pela ‘imposição’ militar o que não logram mediante a consulta popular.
A corrupção, sob combate
seletivo é apenas aquela que depende dos meandros do poder público, sugerindo,
à sociedade, que se trata de fenômeno que envolve apenas políticos e
funcionários públicos, mesmo agora quando se flagram grandes empresários
envolvidos, como agentes ativos, no processo de corrupção que nos assola desde
sempre.
A criminosa sonegação de
impostos é tratada como simples instrumento de defesa do capital ante ‘a
voracidade fiscal do Estado’, e assim absolvida pelos valores do capitalismo.
Esta é, certamente, a raiz
explicativa da ausência de qualificação do combate à corrupção, tratada como
fenômeno em si, autônomo, causa e efeito em si mesmo.
Não se discutem suas causas,
e o embate limita-se ao registro de suas consequências mais vistosas, aquelas
que alimentam as manchetes, vendem jornais, garantem audiência.
A manipulação ideológica tem
objetivo claro, e se funda em argumento simples: se a corrupção é algo inerente
e inafastável da política, a única alternativa é a cassação da política. Esse
projeto é semente fértil em terreno adubado pela desmoralização moral e
política do Poder Legislativo, o descrédito do Judiciário e a ilegitimidade do
governo federal.
Desde os primeiros anos da
República, conduzidos pelo debate promovido pelos meios de comunicação, setores
militares assumiram como seu dever a moralização dos costumes políticos.
Nos anos 1960, o marechal
Juarez Távora, figura proeminente do ‘tenentismo’ e ex-candidato à Presidência
da República, percorreu o país comandando o ‘rearmamento moral’, movimento
internacional nascido entre militantes protestantes dos EUA, que se diziam
chamados por Deus a realizar a ‘ressurreição moral dos povos’.
Essa temática tornou-se muito
cara a partir do ‘Tenentismo’, que, vindo à tona em 1922 com o ‘Levante do
Forte de Copacabana’, chegaria, vivo em seus fundamentos, até o golpe de 1º de
abril de 1964, cujo programa se resumia a cassar os comunistas e pôr os
corruptos na cadeia.
Antes de 1964, o projeto
messiânico de salvação nacional mediante o combate à corrupção (a que eram
reduzidos todos os problemas nacionais) seria a justificativa das rebeliões de
1924 (revolta de São Paulo), 1925 (Coluna Prestes) e 1930 (‘revolução’ liderada
por Getúlio Vargas), os golpes de Estado de 1954 (deposição de Vargas, acusado
de corrupção), 1955 (tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck),
1961 (tentativa de impedir a posse de João Goulart, herdeiro politico de
Vargas, e imposição do Parlamentarismo).
Todos esses movimentos, mais
reativos do que propositivos, estavam voltados messianicamente à ‘salvação
moral’ do país. Só a higidez moral e o patriotismo dos militares poderia salvar
o país, dizia-se, e por isso sua intervenção na vida civil foi ora solicitada
por setores da sociedade, ora estimulada por forças políticas e empresariais,
sem escada para alçar-se ao poder.
Ao discurso moralista do
tenentismo, ainda hoje majoritário nas Forças Armadas, associou-se, com a
Guerra Fria, um novo personagem à cena política, mobilizando de fora para
dentro os militares: o anticomunismo. A tarefa dos conservadores é facilitada
pela memória do desastre de 1935.
O anticomunismo caboclo passa
a identificar como tal qualquer política popular, qualquer discurso
desenvolvimentista, qualquer ensaio nacionalista, qualquer pleito de
desenvolvimento autônomo, qualquer ensaio estatizante. Ora, essas seriam as
bandeiras das forças populares e trabalhistas na ‘República de 46’ (1946-1964).
O varguismo torna-se o
inimigo número um, seu enfrentamento reúne todas as forças conservadoras e
termina conquistando as Forças Armadas, o que explica as deposições de Getúlio
Vargas e de João Goulart (1964).
Era o encontro catalizador do
moralismo com o anticomunismo que será o leitmotiv da preeminência da força
militar sobre o poder civil.
O que indicava, para os
militares e para os civis associados, a presença dos comunistas no governo
Jango, era o pleito das ‘Reformas de base’, um conjunto de propostas que
timidamente propunham o fortalecimento do capitalismo: reforma agrária,
extensão da legislação social ao campo, distribuição de renda, reforma do
ensino, alfabetização, política habitacional etc.
Por ironia, muitas destas
políticas seriam adotadas, ainda que com óbvia variação de viés, pelo regime
anticomunista dos militares, nacionalista após Castello Branco, estatizante a
partir de Costa e Silva e operador de uma política externa independente a
partir, principalmente, de Ernesto Geisel.
O lulismo, contra quem se
assentam todas as baterias, atacado por todas as vias como ‘promotor e cúmplice
da corrupção’, tem, independentemente de seus gostos, suas raízes ideológicas
no trabalhismo varguista e no nacionalismo, no compromisso com o
desenvolvimento, na defesa dos salários dos trabalhadores e no exercício de uma
política externa independente.
Eis como se explica sua
eleição como o ‘inimigo publico número 1’ do establishment , e, por isso, a decisão
da Casa Grande de extirpá-lo, seja por que meio for, já que fica cada vez mais
claro que, pelo voto, não pode ser derrotado.
* Jornalista, cientista
social e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
Fonte: blog do Roberto Amaral