sábado, 15 de julho de 2017

O show dos juízes obcecados

27/03/2017 15:37 - Copyleft

O show dos juízes obcecados

O filme A Conexão Francesa mostra como a mídia fabricou um herói de ocasião vendendo a imagem do juiz que 'procura a vitória da Justiça contra o crime'.


Léa Maria Aarão Reis*
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Marselha, 1975. Época de ouro da fascinante cidade que então cintilava com o brilho da droga consumida livremente. A máfia corsa se instalara nas entranhas da sociedade, da polícia e do Ministério Público e o temido padrinho napolitano Gaëtan ‘Tany’ Zampa comandava o esquema milionário do crime com ramificações nos Estados Unidos, o principal cliente. O porto da ‘capital mundial da heroína’ era o entreposto livre que recebia morfina da Turquia, processava a heroína e exportava a carga em containeres destinados ao porto de Nova Iorque sem que ‘Tany’ fosse molestado.
 
É nesse cenário que surge o juiz de instrução Pierre Michel, de 38 anos, vindo da cidade de Metz, antes  um juiz de menores e recém promovido a juiz do crime organizado. 
 
Na cena inicial do filme A Conexão Francesa (La French Connection, de 2014*), inspirado no que se passou na realidade, durante fim da década de 70 e começo dos anos 80 nessa importante escala européia da droga (Marselha era praticamente governada pela máfia), fica claro que o conflito pivô da trama será entre o herói – o juiz - e o criminoso intocável que faz tremer até os investigadores. 
 
“Quem ousaria dizer o nome de Zampa?” diz um agente policial. Duelo um pouco mais sofisticado que a disputa mortal entre mocinho e bandido dos texto_detalhes americanos.
 
Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos de Nixon se iniciava a ‘’guerra total contra as drogas’’ com a DEA, a Drug Enforcement Administration, a pleno vapor trabalhando com a justiça francesa.
 
Em certo momento do filme, um padrinho americano comenta, rindo, com o chefão napolitano, em uma conversa dentro de um carro rodando pelas ruas de Manhattan. ”Aqui, rapaz, todos consomem drogas. Jovens, velhos, marginais, gente honestaestudantes, profissionais, até os policiais. E aos risos: “Depois ospoliciais querem nos prender, ora.”  
 
O juiz Michel chega para desmontar o mega esquema criminoso nesta produção franco-belga inspirada em fatos reais. Logo descobre que os assassinatos e os crimes de roubos, extorsão e chantagem de Zampa são difíceis ou impossíveis de provar. A unidade policial responsável pela investigação do tráfico de heroína, acomodada e liderada pelo capitão Aimé-Blanc nunca apresentava alguma coisa significativa para relatar.
 
Uma das principais figuras que chefia o esquadrão da divisão de narcóticos - Pierre Michel também constata - é o comissário Ange Mariette, líder de um bando de oficiais corsos corruptos que constam da folha de pagamento de Zampa. Sempre o avisam sobre o que rola nas investigações programadas.
 
La French Connection não é um filme empolgante do ponto de vista cinematográfico. A narrativa vai e volta, às vezes anda em círculos com situações já digeridas, clichês, e previsíveis sequências de perseguições, traições, mortes, contravenção. 
 
Ele é precioso para (re)conhecermos a correlação do duelo desfechado por um juiz obcecado por punir e vencer a qualquer custo o mafioso napolitano, quarenta anos atrás, na França, e o que assistimos estarrecidos, na Justiça do  Brasil de hoje.
 
O juiz travestido de herói pela mídia acaba por sofrer um colapso emocional, a mulher o abandona e a sua obsessão – é quando o filme começa a ficar interessante – de deter Zampa o leva a entender que, para obter resultados, deve mudar seus métodos na cruzada contra a figura emblemática. 





 
Zampa passa a ser para ele um desafeto. Vencê-lo se torna imperativo pessoal; não só o fruto da Justiça acionada.
 
À medida que a narrativa vai avançando, até mesmo o aspecto físico dos dois, o do juiz interpretado por Dujardin e o de Gaëtan (o ator Gilles Lellouche) começa a se assemelhar de tal modo sugerindo um jogo de espelhos, de alter egos, entre os dois. O bandido procura sobreviver e escapar da sanha do juiz temerário que ignora sua obrigatória imparcialidade para apanhá-lo através dos seus ‘métodos’: ações e vigilância ilegais.
 
“Prenda a todos. Mesmo que não haja nada contra eles,” ordena o magistrado ao grupo de agentes que saem para uma ação, se referindo aos criminosos.
 
“Não podemos prender com boatos, falatórios, fofocas, com o dizem que,” alertam os amigos. ‘’Você quer transformar Marselha em uma Suíça?’’
 
Durante os interrogatórios de testemunhas detidas para averiguação ele grita: ”Aqui você não temdireitos!”  E quando vai à Nova Iorque é festejado pelos agentes da DEA que o saúdam como o ‘’cowboy francês.”
 
Durante um interrogatório de mafioso a quem procura convencer a delatar o chefe, ele propõe: ”Você terá toda a proteção da Justiça se delatar. Mando você e sua mulher para o Canadá.”
 
Ápice da perseguição, neste ponto o duelo chegara à TV, na época o mais avançado canal de comunicação de massa disponível. A mídia fabricara um herói de ocasião vendendo a imagem do juiz impoluto, aquele que ‘’procura a vitória da Justiça contra o crime. ’’ 
 
Deslumbrado com a súbita notoriedade, Pierre Michel cede à sedução da fama e adota um dos lemas preferidos dos narcisos onipotentes que negam a realidade: “Nada é impossível.”
 
O filme do marselhês Cédric Jimenez contextualiza com mão leve o caso Pierre Michel. Refere-se à primeira vitória eleitoral de François Mitterrand, em 1981. Na sequência, o seu Ministro do Interior, Gastón Deferre, polêmico ex-prefeito de Marselha na ocasião, abrigara, como assessor, no seu gabinete da prefeitura, o irmão de um gangster do bando de Zampa. 
 
Tempos depois, Deferre chegou a ser arrolado como testemunha em uma grande investigação sobre o caso do juiz Pierre Michel. Ao ser nomeado Ministro, ele prometeu ‘’mudanças realizáveis mais profundas’’ na Justiça. Contava com o panegírico da mídia: ”Ministros que não desistem diante de nada.”
 
Na caçada entre o juiz obcecado e o mafioso não houve vencedores. La French Connection finaliza anos antes de Gaëtan Zampa, na vida real, ser encontrado enforcado em sua cela, na prisão onde apodrecia.
 
Esta saga em Marselha do inicio da era da sociedade do espetáculo, como o escritor Guy Debord anteviu de modo brilhante, e por consequência o tempo da midiatização da Justiça e da manipulação da audiência da mídia massificada, das falsas notícias e do show de hipocrisia dos vazamentos dos depoimentos em audiências. A história dos juízes que perdem o contato com a realidade para entrar na dimensão do show. Engolfam-se na própria imagem. Passam a ser o acusador e fazem do poder de arbitrar perigosa caricatura. Perdem a serenidade, a humildade humana e se  investem de onipotência semidivina. São juízes que renegam sua formação que deve ser forçosamente humanista.
 
O apelido do juiz francês era ‘’o justiceiro’’. Como o de Curitiba.



*Jornalista

**O filme está disponível no Now.


Créditos da foto: reprodução

O verdadeiro monstro da primeira página dos jornais

08/12/2015 00:00 - Copyleft

O verdadeiro monstro da primeira página dos jornais

É impressionante como um dos grandes filmes políticos italianos, produzido em 1972, pode muito bem explicar como funciona a mídia brasileira de hoje.


Léa Maria Aarão Reis*
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Há pouco menos de meio século o cineasta italiano Marco Bellochio já dava uma aula cinematográfica incisiva, no seu filme Sbatti il mostro in prima pagina, de 1972, sobre o conluio criminoso e corrosivo criado, em tempos de crise e de decisões democráticas formais (época de eleições, por exemplo) pelos principais poderes reais que afinal regem a vida cotidiana, a sobrevivência dos cidadãos e a política: os grandes grupos econômicos, locais - hoje, também os globalizados -, a magistratura e a mídia corporativa.
 
Bellochio é autor de outra produção de grande repercussão no mundo inteiro, na sua época, e foi exibido no Brasil com alarde, dez anos antes, em 62, intitulado Pugni in Tasca. É um dos cem filmes italianos escolhidos para serem preservados pela Cinemateca de Bolonha, da qual ele é o presidente, e que antecipa os grandes movimentos dos estudantes, em 68. Este Sbatti il  mostro  teria, em tradução livre, o título de Destaque o monstro na primeira página. É um espécime exemplar e corajoso do vigoroso cinema político italiano da época, um cinema direto até hoje incomparável, e ao qual se pode assistir na internet.
 
A produção é estrelada pelo brilhante ator Gian Maria Volonté vivendo o editor-chefe carreirista e manipulador de um poderoso jornal de Milão. Um cão de guarda, chien de garde conforme a feliz expressão cunhada pelos franceses, a propósito dos jornalistas que se transformam em meros porta-vozes dos interesses dos patrões.
 
Ela é marcante na sua semelhança com o difícil momento que o Brasil vive hoje, iniciado com a vitória do Partido dos Trabalhadores, pela quarta vez reeleito, há um ano, e com a campanha deflagrada pelo segundo lugar, para enfraquecê-lo, a qualquer custo, pelo conjunto dos poderes reais regentes inconformados com a derrota nas urnas: poder econômico, policial autoritário, poder midiático e magistratura – a política a reboque.
 
Aprende-se no filme, com toda clareza, como se procede à manipulação escandalosa da informação nos desdobramentos de eventos locais. As famosas suítes jornalísticas produzidas, quando se deseja, para induzir leitores e eleitores a determinadas reações e conduzi-los a posições políticas convenientes e coniventes com os tais interesses antes obscuros, hoje cada vez mais escancarados.
 
O filme é didático, segura um ritmo empolgante, e mistura a narrativa ficcional com sequências de documentários filmados nas ruas da Itália, nos anos 70, nas campanhas apaixonadas da coligação das esquerdas contra grupos fascistas, liberais e monarquistas que procuravam chegar ao poder.
 
A história é esta:  Rizanti é o editor-chefe-cão-de-guarda, fascista falsamente elegante, irônico, sempre vestido num paletó jaquetão/símbolo do novo rico. Dirige o dia-a-dia do Il Giornale (nome de um jornal milanês criado anos depois da estreia do filme), e decide explorar, politicamente, por determinação do engenheiro Morelli, financista que lidera grupos industriais de extrema direita, um fait divers policial – o assassinato com conotações sexuais (um fato verídico; crime que na realidade existiu), de uma garota estudante, filha da alta burguesia, Milena Sutter, ocorrido na mesma época das manifestações políticas. A vítima escolhida é um dos jovens líderes das passeatas. Preso, ele acaba vítima de uma campanha para desqualificar as esquerdas na qual é apresentado, durante semanas seguidas, na primeira página do jornal de Rizanti, como o monstro estuprador da menina. A campanha tem seu efeito e o rapaz é condenado nessa primeira página pela opinião pública. Uma condenação moral do monstro militante que vai desacreditar a candidatura das forças populares.
 
Mas o jovem repórter Roveda, o encarregado de produzir as suítes do caso, a certa altura de suas investigações, avisa Bizanti que o verdadeiro assassino é o zelador da escola da garota. Nada a ver com o líder militante. O jornalista e o financista, no entanto, decidem continuar a farsa até, pelo menos, o resultado das eleições, que estão próximas. Decidem manter o segredo sobre o assunto e depois ver o que fazer com o ‘monstro’ oficial, detido.  


Há diálogos primorosos em Sbatti il mostro. Rizanti dizendo alegremente, por exemplo, nas reuniões de pauta com os editores:  ”Os protagonistas do estado de direito, afinal,  são a justiça, a magistratura, a mídia, a polícia. Os trabalhadores estão fora deste jogo. ” Ou, irritado, para a sua mulher, leitora e telespectadora contumaz: ”Quando as pessoas vão entender a diferença entre aquilo que se pensa e aquilo que se diz ?” E com ironia cínica :” Milão é a capital moral do país.”
 
E a sua mais importante tirada, na discussão com o repórter que procura convencê-lo a parar com a farsa do ‘monstro de esquerda’. Do alto da onipotência devastadora (ela poderia ser colocada na boca de qualquer personagem jornalístico, vendido, atual): “Nós, jornalistas, não somos mais observadores; somos protagonistas; entenda que hoje a luta de classes é uma guerra. Entenda também que as pessoas leem o jornal como se ele fosse o evangelho...”
 





Tristes trópicos, melancólicos tempos para uma profissão e para um país em que um filme como este, de Bellochio, cai como um manto em nós. O seu recado é este: o verdadeiro monstro é Rizanti. Imperturbável monstro agindo nas capas de revistas, nas primeiras páginas e nas chamadas e escaladas, nos telejornais, e produzindo-as, diariamente, sob a máscara de ‘normalidade’. É urgente, assistir este filme. Público e estudantes de comunicação.
 
*Jornalista



O Botão de Pérola: A memória necessária e o silêncio dos midiotas

25/07/2016 00:00 - Copyleft

O Botão de Pérola: A memória necessária e o silêncio dos midiotas

Remexendo no pó da terra e no fundo das águas, o poeta Patricio Guzmán alerta para o perigo que corremos com o esquecimento, o silêncio e com a omissão.


Léa Maria Aarão Reis*
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Quatro anos atrás, numa entrevista a Carta Maior, o documentarista chileno Patricio Guzmán, um dos mais brilhantes cineastas vivos em atividade, falava sobre temas que ganham vida no Brasil de hoje.
 
Guzmán enfatizava a importância e a necessidade da memória “como instrumento político de identidade de um país e de seus indivíduos.” Comentou o papel vital ocupado pelo filme documentário na história de uma nação: “Um país sem documentário é como uma família sem álbum de fotografias.” E lancetou a chaga da comunicação de massa no nosso continente: ”A televisão nasceu como o meio mais importante e pedagógico do século XX, e foi convertido em um terrorismo áudio-visual espantoso; a nossa televisão latino-americana é imoral e insuportável.”
 
Na travessia dramática vivida atualmente pelo Brasil, com uma parcela expressiva da população, os midiotas, vivendo a  “cultura de sofá”, como diz Guzmán,  - “gente que está sentada no divã, assistindo a televisão” -, não só a palavra poética do documentarista, mas também o seu cinema leva à reflexão, convida à ação, e, no caso das imagens dos filmes, deslumbram pela extraordinária beleza. A beleza triste e trágica, importante de ser mostrada e relembrada, da América Latina. 
 
El botón de nácar, Urso de Prata de Melhor Roteiro do Festival de Cinema de Berlim do ano passado, é o doc mais recente do diretor chileno que vive em Paris. Acaba de estrear em um único (!) cinema do Rio de Janeiro. É o duplo, o contraponto do memorável A Nostalgia da Luz, (2010) lançado aqui em 2015, e prolongamento da célebre trilogia de seus filmes políticos. A Batalha do Chile, (1974/1979) considerado pela critica francesa um dos dez mais importantes docs políticos já realizados, O Caso Pinochet (2001) e Salvador Allende, de 2004. 
 
No seu trabalho, Guzmán procura revolver a memória coletiva e individual. “Os países sem memória são anêmicos, conformistas e não se movem. A minha obra é permeada pela tensão entre memória e esquecimento,” ele diz.
 
Esta tensão está viva e mais aguda no Brasil de hoje. De um lado, ela é revelada na memória dos que continuam lutando pelo restabelecimento da democracia plena e a denúncia formal de fatos ocultos durante a ditadura civil-militar há mais de trinta anos. São os mesmos, mais velhos, e os descendentes, que procuram, agora, resistir ao golpe de estado em curso, a reprise maquilada de 64. 
 
Do outro lado se encontram os que emudecem refestelados no silêncio cômodo e preferem esquecer o passado mal resolvido, e que por não ser purgado insiste em assombrar e retornar.
 
A Nostalgia é a saga da memória, das pacientes escavações de mulheres chilenas em busca de pequenos, mínimos vestígios dos  parentes assassinados pela fúria de Pinochet e asseclas. Seus corpos foram jogados na poeira do deserto do Atacama, norte do país, um dos locais mais secos do planeta. Neste O botão de pérola (tradução equivocada do título original - El botón de nácar, ou seja, O botão de madrepérola) Guzmán se desloca para o sul, para as águas que banham a Patagônia e levanta um véu de silêncio que caiu, durante mais de século, sobre o massacre dos índios kawéskar, um dos quatro grupos de indígenas da região. E, mais recente, faz um paralelo sobre o destino dos cadáveres de dissidentes do regime de Pinochet jogados de helicópteros e de aviões no fundo do Pacífico.
 
“O meu objetivo é procurar que se devolvam os corpos,“ disse Guzmán, em uma bela entrevista que deu, na Alemanha, durante o Festival de Berlim, ano passado. ”Para que os mortos terminem de morrer e os vivos sigam com vida.”
 
Na primeira parte da sua narrativa, ele apresenta os indígenas das terras geladas onde os Andes mergulham no mar e se transformam em arquipélago de mil ilhotas, esses “nômades da água” cuja chegada por lá precedeu em milênios o colonizador que os dizimou. 
 
No prefácio do filme no qual é o próprio narrador, o diretor relata: “Eles viajavam pela água. Viviam submetidos à água e em comunhão com o cosmos.”





 
Na segunda metade do doc, faz um paralelo com os dissidentes que eram drogados ou já tinham sido mortos antes de serem atirados dos helicópteros no mar, os corpos amarrados a pesadas barras de trilhos de ferro.
 
O botão de madrepérola é o fio condutor de Guzmán. Visitando o museu de Punta Arenas ele conheceu a macabra história do botão com o qual os colonizadores seduziram um jovem indígena batizado depois como Jemmy Button, para fazer a experiência de levá-lo para a corte espanhola, transformá-lo em cavalheiro europeu e devolvê-lo depois ao seu lugar de origem; ao qual, é claro, nunca mais se adaptou.
 
E no museu Villa Grimaldi, em Santiago, prisão tristemente célebre como local de tortura na época, conheceu a história de um segundo botão de madrepérola. “Vi um daqueles trilhos aos quais os torturadores fascistas amarravam suas vítimas antes de afogá-las, com um botão colado sobre seus corpos. Imediatamente fiz a ligação com o outro botão e o filme se construiu a partir dessa relação.”
 
Um dos aspectos que mais chamaram a nossa atenção, na voz de Guzmán narrando o filme, foi esta observação: “Os chilenos eram um povo silencioso”. Referia-se aos tempos de Allende, que rompeu mais de um século de silêncio sobre o extermínio dos indígenas da Patagônia devolvendo-lhes as terras usurpadas. Apenas 19 dos kaweskar sobreviveram e vivem nelas até hoje. 
 
E, com a ditadura, o silêncio sobre os corpos de dissidentes esquartejados, degolados ou estuprados, queimados com ácidos e drogados, e afogados no mar.
 
Guzmán é protagonista no processo de restabelecer a memória do seu povo que se encontra na poeira e no cascalho do deserto do norte e nas águas profundas do oceano, no sul.
 
No Brasil de agora, como escreveu, há dias, o jornalista e escritor Felipe Pena sobre a doença do silêncio e do esquecimento, “os golpistas contam com a espiral do silêncio causada pelo medo da solidão social. Ele se propaga em espiral. A ameaça de exclusão alimenta a espiral do silêncio. Ela é o vetor totalitário que perpassa a construção de um falso consenso e constrói a ponte para o passado. Ela é o terror das vozes dissonantes. Ela é o atraso.”
 
Revolvendo a memória chilena, e mais: a memória  geral latino-americana, remexendo no pó da terra e no fundo das águas, o poeta Patricio Guzmán alerta para o perigo que  corremos com o esquecimento, o silêncio e  com a omissão, o seu fruto covarde. 
 
Seu filme é imperdível e traz este recado dirigido também para nós,  nestas próximas semanas decisivas.
*Jornalista
Créditos da foto: reprodução

O juiz Jeiza ou a violação do princípio do juiz natural

10/07/2017 14:56 - Copyleft

O juiz Jeiza ou a violação do princípio do juiz natural

Alguns juízes se portam como se Jeiza fossem. Para esses magistrados não há limites de competência ou qualquer outro


Leonardo Isaac Yarochewsky
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Jeiza é o nome da personagem interpretada pela talentosa e bela PAOLLA DE OLIVEIRA na novela das 21:00 horas da Globo “A Força do Querer”. Jeiza é major e participa praticamente de todas as operações policiais na cidade do Rio, local em que se passa a novela. Além de adestrar seu fiel cão Iron, a major Jeiza comanda blitz, efetua prisões, faz apreensões, ouve conversas “grampeadas”, participa de busca a foragidos e, mesmo quando está teoricamente de folga, encontra tempo para proteger travestis e mulheres vítimas da violência. Jeiza já fez até às vezes de “parteira” ajudando no parto de outra personagem que estava dando a luz dentro de um táxi no meio de um tiroteio. Longe do trabalho, a major Jeiza sobe no octógono para as lutas do UfC.
 
A major Jeiza é onipresente, sua competência é “universal”, ela não está restrita a sua área de atuação ou a qualquer circunscrição. A major não conhece as limitações da Constituição da República e do Código de Processo Penal. Mesmo assim, Jeiza foi alçada a condição de heroína no combate ao crime.
 
Alguns juízes se portam como se Jeiza fossem. Para esses magistrados não há limites de competência ou qualquer outro. Eles acreditam ter competência “universal” para julgarem todos e em qualquer lugar, desde que assim lhes convenham. Para os juízes Jeiza não existe o princípio do juiz natural, jurisdição e competência são obras de ficção. Em nome do combate ao crime e sob o lema vil de que “os fins justificam os meios” os juízes Jeiza atropelam os princípios e garantias fundamentais próprios do Estado democrático de direito.
 
O princípio do juiz natural, em sua formulação mais madura, se deve ao pensamento iluminista francês do século XVIII e às declarações revolucionárias de direitos. Surgiu em oposição aos juízes “comissários nomeados” pelo rei para “julgar um cidadão”.[1]
 
Observa o jurista italiano LUIGI FERRAJOLI que a garantia do juiz natural significa três coisas diferentes, ainda que entre si conexas: “a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído post factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais”.[2]
 
O processualista AURY LOPES JUNIOR assevera que:
 
O princípio do juiz natural não é mero atributo do juiz, senão um verdadeiro pressuposto para sua própria existência. Como exemplificamos anteriormente, na esteira de MARCON, o Princípio do Juiz Natural é um princípio universal, fundante do Estado Democrático de Direito. Consiste no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autoridade que irá processá-lo e qual o juiz ou tribunal que irá julgá-lo, caso pratique uma conduta definida como crime no ordenamento jurídico-penal. [3]
 
RUBENS CASARA e ANTONIO MELCHIOR[4] observam que o princípio do juiz natural (do juiz constitucional ou do juiz legal) é um dos “pilares do devido processo legal”. A garantia do juiz natural surgiu, ainda de acordo com os eminentes autores, “para limitar o poder e, em especial, para extremar (e garantir) a separação entre os órgãos encarregados da administração e os órgãos com funções jurisdicionais”. O princípio do juiz natural constitui a um só tempo, uma garantia para o acusado e garantia da própria atividade jurisdicional. 
 
Não é despiciendo destacar que a Constituição da República proclama que:
 
Art. 5º. (…) 
 
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;





 
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
 
O Supremo Tribunal Federal analisando o alcance do princípio do juiz natural decidiu que:
 
O postulado do juiz natural representa garantia constitucional indisponível, assegurada a qualquer réu, em sede de persecução penal, mesmo quando instaurada perante a Justiça Militar da União. (…). O postulado do juiz natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, represente fator de restrição que incide sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal (HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004).
 
É em razão do princípio do juiz natural – com competência clara e pré-determinada por lei anterior ao fato a ser julgado – que se evita os males causados pelo “juiz de encomenda”. Como observam, uma vez mais CASARA e MELCHIOR, “a definição do órgão jurisdicional competente é obra do legislador e, para se dar concretude ao princípio do juiz natural, essa declaração legal deve ocorrer antes do fato a ser julgado”.[5]
 
No Brasil de “tempos sombrios”, chama a atenção as arbitrariedades que são empreendidas no âmbito da chamada “Operação Lava-Jato” em nome de um fantasmagórico poder punitivista e do combate à corrupção. Tem causado espécie nos juristas, verdadeiramente comprometidos com a legalidade democrática, o modo como tem sido conduzido pelos procuradores da República da “Força Tarefa” e pelo juiz Federal Titular da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba-PR os processo que dizem respeito à famigerada operação.
 
No que se refere à violação do princípio do juiz natural e a incompetência do juiz Titular da 13ª Vara Federal de Curitiba-PR, MARIA LÚCIA KARAM é categórica ao dizer que:
 
Todos os totalitários desvirtuamentos do processo penal brasileiro, registrados de forma especialmente eloquente nos procedimentos relativos às ações penais de naturezas cautelar e condenatória, reunidas sob a midiática denominação de ‘operação lava-jato’, vêm sendo conduzidos, em primeiro grau, por juízo incompetente. Valendo-se de uma inexistente prevenção, quando nem abstratamente sua competência poderia ser identificada, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, menosprezando o princípio do juiz natural, voluntariosamente se transformou em uma espécie de ‘juízo universal’ messianicamente destinado a pôr fim à corrupção no Brasil.[6] 
 
Mais adiante, MARIA LÚCIA KARAM conclui: 
 
Talvez esteja aqui a ‘mãe’ de todas as violações cotidianamente explicitadas na midiática ‘operação lava-jato’. O juiz que age ilegitimamente, rompendo as amarras impostas pelo princípio do juiz natural, não terá pruridos em seguir avançando no menosprezo a outros princípios e garantias inscritos em normas constitucionais e em declarações internacionais de direitos humanos. [7]
 
O juiz Jeiza – de “encomenda” ou “incompetente” – afronta o próprio Estado democrático de direito. Magistrados Jeiza tribunais de exceção são compatíveis apenas e tão somente com os estados fascistas, com os regimes autoritários e de exceção em que prevalece a vontade do homem em detrimento da vontade da lei.
 
Com precisão cirúrgica RUBENS CASARA destaca que: “O Estado Constitucional é Estado de Direito, mas é também e sobretudo Estado democrático. Isso significa que o poder, além de limitado, deve exercer-se de forma democrática e direcionada à concretização do projeto constitucional (leia-se: voltado à realização dos direitos fundamentais de todos)”.[8]
 
Assim e por tudo, que somente nas novelas (obras de ficção) tem lugar para Jeizas, no campo do direito e, portanto da realidade, nem mesmo a bela e talentosa atriz PAOLLA DE OLIVEIRA acredita nos superpoderes de sua personagem. Na vida real, do soldado ao general, do juiz de piso ao ministro do STF, todos, sem exceção, devem se guiar pelo respeito à Constituição da República, doa a quem doer.
 
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Inverno de 2017.
 
 
Notas e Referências:
 
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantistmo penal. 4ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 544.
 
[2] FERRAJOLI, op. cit. p. 543.
 
[3] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade consitucional. Vol. I. 5ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 430.
 
[4] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica vol I. Lumen Juris, 2013, p. 136 e segs.
 
[5] Idem, p. 138
 
[6]Disponívelem:<http://emporiododireito.com.br/a-midiatica-operacao-lava-jato-e-a-totalitaria realidade-do-processo-penal-brasileiro/
 
[7] Idem, ibidem.
 
[8] CASARA, Rubens. Jurisdição penal autoritária in Brasil em Fúria: democracia, política e direito. Giane Ambrósio Alves et al. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2017.