quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Austeridade no Brasil: passos em direção ao abismo

01/11/2016 18:23 - Copyleft

Austeridade no Brasil: passos em direção ao abismo

Em 2015, o Brasil começou a implementar uma política fiscal baseada na austeridade, seguindo o caminho de muitos países europeus


Norberto Martins, Social Europe
Divulgação
Em 2015, o Brasil começou a implementar uma política fiscal baseada na austeridade, seguindo, com alguns anos de atraso, o caminho que muitos países europeus, como a Grécia, Portugal e Espanha, entraram logo após a crise financeira internacional de 2008.

Na Europa, os resultados da dessa escolha política são bem conhecidos. Como resumido por Joseph Stiglitz, em uma entrevista recente, quando a Troika 'começou a insistir por mais e mais austeridade, as economias se fragilizaram, as receitas tributárias diminuíram, e anos depois a posição fiscal desses países e a sustentabilidade da dívida são ainda piores do que quando começaram'.

A Europa pode ter fornecido uma experiência pedagógica para outros países, mas os legisladores brasileiros esqueceram todas as lições que a crise da zona do euro ensinaram sobre austeridade e suas consequências. Depois de nove quadrimestres de depressão econômica, a nova administração brasileira de Michel Temer está reforçando a austeridade como “O” remédio para tratar a crise econômica brasileira.

Os paralelos com a experiência européia são muitos, do diagnóstico ao remédio – e a retórica é idêntica. Um artigo recente de Otaviano Canuto, diretor executivo do Banco Mundial, entitulado “A Saída para o Brasil”, estabelece o diagnóstico que o desregramento fiscal e o crescimento anêmico da produtividade são há as vulnerabilidades econômicas do Brasil de há muito tempo. Ele argumenta que a única opção real para restaurar o crescimento econômico é enfrentar essas fragilidades 'estruturais'. Ele também afirma: “políticas anti-cíclicas não são uma opção; simplesmente não há espaço monetário ou fiscal suficiente”.






Ao analisar essa retórica, três questões vêem em mente. Políticas anti-cíclicas não são uma opção mas a austeridade fiscal é uma opção real para restaurar o crescimento econômico? Não há espaço 'monetário disponível' ao Banco Central brasileiro? Se a depressão perdurar, como a produtividade irá crescer?

Sobre as políticas de austeridade, o argumento de Canuto reproduz a visão convencional de que a restrições fiscais irão reviver o crescimento econômico. Em um nível empírico, a experiência européia mostra claramente que a austeridade fiscal é uma descida para o abismo da recessão/depressão econômica. No front teórico, trabalhos macroeconômicos recentes estão desafiando abertamente essa visão – e não estamos falando sobre trabalhos de economistas heterodoxos.

Os membros do Fundo Monetário Internacional, Ostry, Lungani e Furceri, salientam em um artigo recente que as “políticas de austeridade não somente geram custos substanciais de bem estar devido a canais no lado da oferta, mas também prejudicam a demanda – piorando o emprego e desemprego”.

Então, se políticas fiscais restritivas têm efeitos prejudiciais na produção e no emprego, como a austeridade irá restaurar o crescimento econômico? Na prática, como a experiência brasileira e a européia mostram, só piora as coisas. A tentativa da ex-presidente, Dilma Rousseff, em promover uma restrição fiscal no início do seu segundo mandato somente contribuiu para a deterioração da posição fiscal do governo brasileiro e dos níveis de atividade econômica.

Além disso, um ajuste fiscal que vem com uma reforma da previdência certamente irá aumentar a vulnerabilidade da população sem nenhum benefício previsto de crescimento. Os benefícios da seguridade social são relevantes não somente na lógica econômica, mas também em estabelecer os padrões de vida das pessoas, ajudando a diminuir a pobreza e a aumentar a mobilidade social.

Nossa segunda questão é mais simples: como não há espaço monetário em uma economia que está constantemente no topo da classificação mundial de taxas de juros nominais (e reais)? Enquanto os EUA e a Europa estão flertando com zero taxas de juros e outros países estão atravessando a fronteira do zero e, mesmo, experimentando taxas negativas, o Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil continua com uma taxa nominal de 14% por ano (cerca de 5% em termos reais).

O PIB do Brasil está caindo (-4.9% ano após ano), o desemprego está subindo (mais de 11%) e o Banco Central insiste em uma política excessivamente conservadora, não fornecendo 'apoio monetário' para a economia. “Mas a inflação está alta”, podem dizer. Sim, o índice de preços do consumidor está agora em cerca de 8.5%, considerados os últimos 12 meses. Contudo, não há sutentação que fundamente uma inflação de demanda em uma economia em recessão, na qual o PIB se contraiu nos últimos seis quadrimestres. A inflação no Brasil é uma mistura de mecanismos de indexação com inflação de custos, portanto pode-se dizer que há espaço para reduzir a taxa de juros.

Taxas de juros menores podem ajudar a reavivar o crescimento de demanda agregada, mesmo que seus efeitos sejam mais relevantes em outros aspectos: pode resultar numa trajetória mais suave da dívida pública, melhorando o quadro fiscal do governo brasileiro, e as empresas brasileiras poderiam se beneficiar de melhor condição financeira, permitindo que sejam restaurados seus “colchões de segurança” em termos mais favoráveis.

Em terceiro lugar, é muito difícil ver como a produtividade irá crescer sem a restauração da demanda agregada e do crescimento econômico. Muitos economistas brasileiros defendem 'reformas estruturais' afim de promover ganhos na produtividade, mas as evidências mostram que a produtividade está conectada ao crescimento econômico. Quando a economia brasileira estava melhor, a produtividade cresceu muito. Quando a atividade econômica desacelerou, a produtividade começou a cair, da mesma forma.

Enquanto a retórica da austeridade ganha terreno, o Financial Times salienta que “o Brasil foi de pária global entre os investidores a favorito do mercado emergente em menos de 12 meses”. Os preços dos bens brasileiros aumentaram mas, como dizem os analistas do mercado financeiro, quem está aumentando os preços é a política e não a economia. Em outras palavras, investidores estão endossando a orientação de alinhamento ao mercado e os planos de austeridade de Temer.

Nossa história econômica tem muitos exemplos mostrando que o Brasil caiu de queridinho para rejeitado dos investidores e vice-versa. A euforia neoliberal de meados dos anos 90 levou a uma crise na moeda em 1998. O entusiasmo recente dos investidores pelo Brasil pode estar sujeito a mudanças violentas como resultado de retrocessos políticos e fraco desempenho econômico– a austeridade, em particular, se relaciona com o último.

Em uma situação de crescimento anêmico de demanda, o Congresso brasileiro está prestes a aprovar uma proposta de emenda constitucional que congela os gastos do governo por 20 anos. A proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados; o Senado irá votar em novembro. Reformas da previdência e do mercado de trabalho vêem em seguida.

Por último, mas não menos importantes, essas medidas surgem em um contexto no qual o novo braço executivo brasileiro não tem a legitimidade eleitoral para implementá-las. Não estamos somente olhando para o abismo, estamos também andando em direção a ele.


Créditos da foto: Divulgação




Eduardo Fagnani: 'Estamos vivendo o fim de um ciclo de conquistas sociais'

01/11/2016 18:11 - Copyleft

Eduardo Fagnani: 'Estamos vivendo o fim de um ciclo de conquistas sociais'

A primeira votação da PEC 55 acontece no próximo dia 29 de novembro. A segunda e derradeira em 13 de dezembro, mesmo dia que em 1968 baixaram o AI-5.


Tatiana Carlotti
reprodução
A PEC 241 mudou de numeração. Agora, a proposta de congelamento dos investimentos públicos durante vinte anos, passando por cima de direitos e garantias constitucionais, será tramitada como PEC 55 em dois turnos no Senado. 
 
A pressa dos golpistas em promover a mordaça ao Estado social é notória. A primeira votação acontece no próximo dia 29 de novembro. A segunda e derradeira em 13 de dezembro, uma macabra coincidência histórica: quem não se lembra de 13 de dezembro de 1968, quando baixaram o AI-5 no país?
 
Não espanta a pressa, tampouco a recusa de um efetivo debate junto à sociedade sobre a PEC do Fim do Mundo, afinal, eles sabem: o Estado mínimo que vem sendo imposto jamais seria aprovado nas urnas. Aliás, ele vinha sendo rechaçado sistematicamente.
 
É justamente sobre esse Estado mínimo a análise do economista Eduardo Fagnani, em mais uma entrevista sobre o desmonte do Estado publicada pela Carta Maior - leia também: Pedro Rossi: PEC 241 é o desmonte do Estado social.





 
Professor da Unicamp, Fagnani está à frente da Plataforma Política Social, que reúne artigos de ponta sobre o desenvolvimento do país.  Ele também participou da elaboração do documento Austeridade e Retrocesso, que denuncia o retrocesso da política fiscal do governo, apresentando alternativas à crise.
 
Nesta entrevista, ele explica como a asfixia financeira irá drenar qualquer possibilidade de investimento social. E alerta: “estamos vivendo o fim de um ciclo de conquistas sociais, iniciado em 1988”. Acompanhem:
 
 
Qual sua avaliação da PEC 55?
 
Eduardo Fagnani - Essa investida é o fundamento do projeto ultraliberal que há quarenta anos eles tentam implementar no Brasil. O golpe foi uma oportunidade para fazerem isso. Provavelmente, entre 2017 e 2018, nós estaremos vivendo o fim de um ciclo de conquistas sociais iniciado em 1988.
 
O ano de 1988 foi um momento “fora da curva” no capitalismo brasileiro. Pela primeira vez, em 500 anos, o país conviveu com democracia e com alguma base de construção da cidadania social. A investida dos golpistas, agora, tem como objetivo recolocar o país na sua trajetória original, corrigindo o “equívoco” que, para eles, foi 1988.
 
Eles estão aprofundando a reforma liberal do Estado e concluindo o que não foi feito nos anos 1990. A diferença é que, agora, incluíram a privatização da infraestrutura social – educação, saúde etc. 
 
Naquele período eles tentaram fazer isso, mas sempre houve resistência. Dessa vez, a ordem é mercantilizar não só o que restou, mas aprofundar a privatização da estrutura social.
 
O que isso significa, na prática?
 
Eduardo Fagnani - Em termos de direitos trabalhistas, significa retroceder um século pelo menos. Em termos sociais é acabar com o Estado social de 1988 e implementar o Estado mínimo. Isso está sendo feito, basicamente, pela asfixia financeira que torna letra morta o capítulo da ordem social da Constituição. Não haverá base financeira para a sustentação dos direitos garantidos na Carta Magna.
 
Como se dá essa asfixia?
 
Eduardo Fagnani – Primeiro, pela Desvinculação das Receitas da União (DRU). A DRU foi criada em 1994 pelo Fernando Henrique. Até agora, ela capturava 20% dos recursos constitucionais vinculados à área social para ser usado pela área econômica. Eles ampliaram esse limite: passou de 20% para 30%. Só com isso, a seguridade social perdeu R$ 60 bilhões no ano passado, só por causa da DRU. E agora será R$ 110 bilhões. É mais do que o gasto da previdência rural. E eles dizem que é o suposto déficit.
 
A segunda forma de asfixia é o novo regime fiscal, a PEC 55, antes PEC 241, que asfixia de duas maneiras: ela acaba com as vinculações de recursos para educação e para a saúde; e restringe, ao colocar um teto do gasto, o patamar de gastos a quase duas décadas. Não vai ter recursos, vai faltar esparadrapo.
 
A terceira forma de asfixia é a reforma da Previdência. Eles vão apresentar agora, mas esse debate vai acontecer em 2017. A proposta deles é fazer com que o trabalhador rural brasileiro, homem e mulher, tenha as mesmas regras de previdência do que a Suécia, com idade mínima e tempo de contribuição rural semelhante a países que têm uma renda per capta dez vezes melhor do que o Brasil. E como se as condições fossem iguais. 
 
Será, portanto, uma reforma da Previdência meramente fiscalista que não leva em conta o fato de que a Previdência é o maior sistema de proteção social no Brasil, capaz de proteger mais da metade da população brasileira. 
 
E em relação ao desemprego?
 
Eduardo Fagnani – Em três anos o desemprego vai voltar aos padrões do início da década passada, de 2000. O mais irônico é que para esses economistas do mercado isso é bom. Eles, inclusive, escreveram que o desemprego é a única forma de termos inflação dentro da meta. 
 
Essa restrição proposta por eles é muito funcional para a implantação do projeto ultraliberal. Funcional porque rebaixa os custos trabalhistas e aumenta o desemprego, permitindo inflação dentro da meta.
 
Funcional porque alimenta – e aí o erro da Dilma – ações golpistas. Em três anos será possível desmontar o legado petista; criminalizar qualquer política redistributiva, já chamadas de “populistas e bolivarianas” e, por consequência, criminalizar todos os partidos de esquerda. 
 
É funcional, também, porque para destruir o Estado social a única alternativa é acabar com a Constituição de 88. É esse o quadro que estamos vivendo, o fim de um ciclo de conquistas sociais. 
 
Como você avalia a velocidade desse desmonte?
 
Eduardo Fagnani - A ideia é implantar o ultraliberalismo no Brasil até 2018. Eles não estão preocupados com o curto prazo, mas em criar uma arquitetura institucional que sirva como uma camisa de força para os próximos presidentes da República, sejam eles de direita ou de esquerda, principalmente os de esquerda.
 
Você poderá ter o Che Guevara na Presidência do Brasil, que ele não conseguirá fazer nada. Ainda mais se tiver um Parlamento conservador e, tudo indica, ele será ainda mais fisiológico e conservador a partir de 2018. 
 
Leia também: “Pedro Rossi: PEC 241 é o desmonte do Estado social”.


Créditos da foto: reprodução

Leituras de um brasileiro: 'Os sexos da literatura'

01/11/2016 11:51 - Copyleft

Leituras de um brasileiro: 'Os sexos da literatura'

Houve, no mínimo, 52 escritoras no Brasil do século XIX: por que só ouvimos falar de homens poetas e prosadores deste período?


Antonio Vicente Seraphim Pietroforte - Professor de Semiótica do Departamento de Linguística da FFLCH-USP
Ilustração sobre a representação das mulheres no mundo das artes
Do mesmo modo que no artigo passado discutimos o racismo por meio da Literatura Negra feita no Brasil, no texto de hoje nosso tema é a Literatura Feminina e o combate aos valores deploráveis do machismo e do patriarcado. Na virada do século XX para o século XXI, tive contato com a Literatura Feminina ao ler dois romances – “Lésbia” (1890), de Maria Benedita Bormann, e “A Silverinha” (1913), de Júlia Lopes de Almeida – e a antologia “Escritoras brasileiras do século XIX” (1999), de Zahidé L. Muzart, todos da Editora Mulheres, estado de Santa Catarina.
 
Cada uma das obras contribui para compreender cada vez mais o papel da mulher na Literatura Brasileira, inclusive, para buscar entender por que não foram incluídas no cânone literário, uma vez que são, literariamente, tão boas e, muitas vezes, bem melhores do que poetas medíocres como Casimiro de Abreu ou prosadores decepcionantes como Joaquim Manuel de Macedo. 
 
Em “Lésbia” é narrada a história de Arabela, uma escritora no Brasil do século XIX. Isso faz de “Lésbia”, além de obra literária, documento excelente para verificar, com mais precisão, como se comportavam as mulheres no Brasil daquela época; no mínimo, o livro coloca em xeque a ideia estabelecida de que não havia escritoras brasileiras antes do modernismo. Arabela relaciona-se com vários homens e em situações sociais bem distintas das mulheres dos romances românticos, revelando, portanto, o quanto sua postura está distante da estupidez de Carolina, a moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, destinada ao casamento e às prendas do lar.
 
Em “A Silverinha”, entre vários aspectos interessantes da obra, Júlia Lopes de Almeida escreve a respeito de um fenômeno social praticamente ausente nas obras de escritores contemporâneos a ela, como Aluísio de Azevedo, Machado de Assis ou José de Alencar: as reuniões feitas apenas por mulheres, que, em seu romance, aparecem descritas do ponto de vista de outra mulher. 





 
Nos romances feitos por homens, há reuniões de família, nas quais os chefes de família burgueses abriam suas portas para receber convidados em suas residências, e há, nas casas de comércio, os encontros entre os homens. No romance de Julia Lopes de Almeida, porém, apresenta-se outra realidade social, que dá voz a um rito ausente na prosa masculina, justamente por tais reuniões serem frequentadas apenas por mulheres. Isso significa, portanto, a existência dessas reuniões, mas também significa que, em uma literatura predominantemente masculina, elas não mereceram a devida atenção, dadas a elas pelas mulheres.
 
O livro “Escritoras brasileiras do século XIX”, de Zahidé L. Muzart, fornece, no mínimo, um dado numérico interessante: há na antologia 52 escritoras. Houve, no mínimo, 52 escritoras no Brasil do século XIX; cabe indagar, portanto por que só ouvimos falar de homens poetas e prosadores. Estaríamos diante da famosa damnatio memoriae, prática política espúria, em que se tenta deliberadamente apagar discursos e fatos históricos?
 
Ao que tudo indica, a resposta é sim. Dá-se com as mulheres o mesmo que se dá com negros e outras minorias; na literatura não há escritores negros e escritoras porque quem faz o cânone são homens brancos. Nessa literatura machista, as poucas mulheres aprovadas são aquelas que ratificam a cultura patriarcal, afirmando o papel de mulher sensível e sonhadora, como Cecília Meireles, ou enaltecendo, explicitamente, a cultura das donas de casa, como Adélia Prado.
 
Os estudos de Zahidé L. Muzart e as publicações da Editora Mulheres são do final dos anos 90 do século XX. De lá até hoje, quase nada mudou nos cursos de Literatura Brasileira no ensino médio e no ensino superior; professores continuam insistindo nos mesmos autores de sempre, como se o cânone literário fosse metafísico, e não, histórico.
 
Nada muda, mesmo que pesquisadoras como Z. L Muzart demonstrem o quanto as formações da Literatura Brasileira eminentemente masculinas, propostas por autores como Antonio Cândido e Alfredo Bosi, estão desatualizadas. Em sua “Formação da Literatura Brasileira”, Antonio Cândido – cuja primeira edição é de 1957 – não cita sequer uma mulher – os dados da antologia de Z. L. Muzart mostram o quanto essa formação precisa ser revista –; em sua “História Concisa da Literatura Brasileira”, revista e atualizada pelo autor em 1994, Alfredo Bosi menciona apenas quatro mulheres: Francisca Júlia, Raquel de Queirós, Cecília Meireles e Clarice Lispector.
 
A presença de escritoras brasileiras não se esgota no século XIX, período no qual se concentram as publicações da Editora Mulheres. No século XX, vale a pena mencionar a recuperação dos escritos de Patrícia Galvão, levada a cabo por Augusto de Campos; a organização da obra completa de Hilda Hilst, trabalho de Alcir Pécora; a obra completa de Leila Míccolis, editada e organizada por mim.
 
Apesar do silêncio da maioria dos livros didáticos ou históricos da Literatura Brasileira, a luta continua. Longe de ser pretensioso, não quero apresentar um estudo sobre a Literatura Brasileira contemporânea feita por mulheres como é o trabalho de Z. L Muzart sobre o século XIX – fruto de pesquisa –, mas gostaria de finalizar falando de algumas escritoras bastante atuantes em nossa literatura. Penso em sugerir, pelo menos, boas leituras. 
 
Na poesia, vale a pena lembrar Susanna Busato, Gabriela Marcondes, Adriana Zapparoli, Claudia Roquette-Pinto, Lia Testa, Andreia Carvalho Gavita, Virna Teixeira, Marília Garcia, Ana Rüsche, Jussara Salazar, Andrea Del Fuego; ainda na poesia, a coleção Marianas Edições, publicada pela Bolsa Nacional do Livro, de Curitiba, uma iniciativa do coletivo feminista As Marianas; na prosa, a literatura de confronto, da Marcia Denser; nos Cadernos Negros do movimento Quilombhoje, articulando feminismo e combate ao racismo, quero lembrar as escritoras Celinha, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Miriam Alves, Sônia Fátima da Conceição e Teresinha Tadeu; na editora alternativa Patuá, praticamente metade do catálogo, com mais de 400 livros, são de escritoras: Micheliny Verunschk, Carolina de Bonis, Adri Aleixo, Ellen Maria, Lubi Prates, etc. 
 
Elas sempre estiveram aí, é só prestar atenção.
 
No nosso próximo encontro, pretendo escrever sobre as Literaturas Homoeróticas: o Brasil é um país gay? 


Créditos da foto: Ilustração sobre a representação das mulheres no mundo das artes

Dia 9/11: cereja do bolo ou gota d'água?

01/11/2016 11:40 - Copyleft

Dia 9/11: cereja do bolo ou gota d'água?

O STF, que tem se mostrado extremamente ágil para julgar questões trabalhistas, vai colocar em pauta a questão da ampliação ilimitada da terceirização.


Jorge Luiz Souto Maior
Beto Barata / PR
Já lhe dei meu corpo, minha alegria 
Já estanquei meu sangue quando fervia 
Olha a voz que me resta 
Olha a veia que salta 
Olha a gota que falta pro desfecho da festa 
Por favor 
Deixe em paz meu coração 




Que ele é um pote até aqui de mágoa 
E qualquer desatenção, faça não 
Pode ser a gota d'água 
(Gota d’água - Chico Buarque)
 
 
No próximo dia 09 de novembro, o STF, que tem se mostrado extremamente ágil para julgar questões trabalhistas no ano 2016, vai colocar em pauta a questão da ampliação ilimitada da terceirização. A classe trabalhadora, os profissionais ligados ao Direito do Trabalho precisam participar ativamente desse momento, pois até dias atrás a questão estava nas ruas e é essencial que o julgamento reflita, minimamente, a perspectiva de todos os segmentos sociais, com prioridade, claro, para os interesses dos trabalhadores, visto que se estará cuidando, em última análise, da eficácia do art. 7º da CF, cujo objetivo indisfarçável é o da melhoria da condição social dos trabalhadores, conforme consta da norma, expressamente.
 
A situação para a classe trabalhadora, de todo modo, é bastante preocupante, pois desde 2009, mas de forma intensificada no ano de 2016, o STF tem realizado uma autêntica “reforma trabalhista” prejudicial aos trabalhadores. 
 
A retração de direitos trabalhistas, imposta pelo STF, pode ser constatada nas seguintes decisões: 
 
a) ADI 3934, maio de 2009, relator Ministro Ricardo Lewandowski: o STF declarou a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 60 e do inciso I, do artigo 83, ambos da Lei de Recuperação Judicial (Lei n. 11.101/05), que, respectivamente, nega a sucessão trabalhista na hipótese de alienação promovida em sede de recuperação judicial; e limita o privilégio do crédito trabalhista em 150 salários.
 
b) ADC 16, novembro de 2010, relator Ministro César Peluso: o STF declarou a constitucionalidade do art. 71, da Lei n. 8.666/93, que diz que o ente público não é responsável, nem subsidiário, pelos direitos trabalhistas dos empregados que lhes presta serviços.
 
c) RE 586.453 e RE 583.050, fevereiro de 2013, relatores, Ministro Joaquim Barbosa e Ministro Cesar Peluso, de autoria da Fundação Petrobrás de Seguridade Social (Petros) e do Banco Santander Banespa S/A, respectivamente: o STF atribuiu à Justiça Comum a competência julgar os conflitos envolvendo a complementação de aposentadoria dos ex-empregados dessas entidades, contrariando posicionamento firme do TST no sentido de declarar competente a Justiça do Trabalho para o julgamento de tal questão vez que envolve garantia jurídica fixada em norma trabalhista (convenção ou acordo coletivo, ou regulamento de empresa). Essa decisão representou uma grande perda para os trabalhadores também pelo aspecto de que o processo do trabalho, como se sabe, é extremamente mais célere que o processo comum.
 
d) RE 589.998/PI, março de 2013, Relator Ministro Ricardo Lewandowski: o STF negou o direito à estabilidade, prevista no art. 41 da CF, aos empregados de empresa pública e de sociedade de economia mista.
 
e) ARE 709.212, 13 de novembro de 2014, relator Ministro Gilmar Mendes: o STF declarou que a prescrição para cobrar depósitos do FGTS é de cinco anos, até o limite de dois anos após o término do contrato de trabalho, contrariando o entendimento prevalecente no TST, fixado em súmula (Súmula 95, reforçada em 2003, pela Súmula 362), vigente desde 1980, que fixava em trinta anos essa mesma prescrição.
 
f) RE 658.312, 27 de novembro de 2014, relator Ministro Dias Tofoli: o STF declarou que o art. 384, da CLT, que prevê um intervalo de 15 minutos para as empregadas antes de iniciado o trabalho em horas extras, foi recepcionado pela Constituição de 1988. A decisão foi positiva para as trabalhadoras, mas foi anulada, posteriormente, por suposto vício processual. Voltou a julgamento no dia 14 de setembro, mas foi retirada de pauta, em virtude do pedido de vista do Min. Gilmar Mendes, ficando a indicação de que a decisão anterior será revista.
 
g) RE AI 664.335, 9 de dezembro de 2014, relator Ministro Luiz Fux: o STF definiu que o segurado não tem direito à aposentadoria especial, por atividade insalubre em razão de ruído, caso lhe seja fornecido EPI.
 
h) ADI 5209, 23 de dezembro de 2014, Ministro Ricardo Lewandowisk: em decisão monocrática, acolhe pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), à qual estão associadas grandes construtoras, como a Andrade Gutierrez, Odebrecht, Brookfield Incorporações, Cyrela, MRV Engenharia, suspendeu a vigência da Portaria n. 2, de 2011, referente à lista do trabalho escravo. A decisão do Supremo Tribunal Federal baseou-se na ideia de inexistência de “uma prévia norma legítima e constitucional que permita tal conduta da Administração Pública”. Na decisão, o Ministro do STF se expressou no sentido de que “Embora se mostre louvável a intenção em criar o cadastro de empregadores, verifico a inexistência de lei formal que respalde a edição da Portaria nº 2 pelos ministros de Estado”
 
i) ADI 1923, 15 de abril de 2015, relator Ministro Fux: o STF declarou constitucional a Lei n. 9.637/98, que autoriza os entes públicos a firmarem convênios com Organizações Sociais, para administração dos serviços públicos nas áreas da saúde (CF, art. 199, caput), educação (CF, art. 209,caput), cultura (CF, art. 215), desporto e lazer (CF, art. 217), ciência e tecnologia (CF, art. 218) e meio ambiente (CF, art. 225).
 
j) RE 590.415, 30 de abril de 2015, relator Ministro Roberto Barroso: o STF acolheu a tese do recorrente, Banco do Brasil S/A, tendo como Amicus Curae, a empresa Volkswagen do Brasil Indústria de Veículos Automotores Ltda., no sentido de conferir validade à quitação ampla fixada em cláusula de adesão ao PDV, recusando, por conseguinte, a incidência, na hipótese, do art. 477, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, que restringe a eficácia liberatória da quitação aos valores e às parcelas discriminadas no termo de rescisão exclusivamente.
 
l) RE 895.759 (1159), 8 de setembro de 2016, decisão monocrática do Ministro Teori Zavascki: seguiu na mesma linha da decisão do RE 590.415 e acolheu a validade de norma coletiva que fixa o limite máximo de horas “in itinere”, fazendo, inclusive, uma apologia do negociado sobre o legislado.
 
m) ADIN 4842, 14 de setembro de 2016, relator Ministro Celso de Melo: o STF declarou constitucional o art. 5º da Lei n. 11.901/09, que fixa em 12 horas a jornada de trabalho dos bombeiros civis, seguida por 36 horas de descanso e com limitação a 36 horas semanais.
 
n) Reclamação 24.597, 07 de outubro de 2016, decisão monocrática do Ministro Dias Tofoli, que negou a existência do direito de greve aos servidores da saúde em geral e do Judiciário.
 
o) Medida Cautelar para Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 323, 14 de outubro de 2016, decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes, que determinou “a suspensão de todos os processos em curso e dos efeitos de decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho que versem sobre a aplicação da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, sem prejuízo do término de sua fase instrutória, bem como das execuções já iniciadas”.
 
p) RE 381.367, Relator Ministro Marco Aurélio; RE 661.256, com repercussão geral, e RE 827.833, ambos de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, 26 de outubro de 2016: por ausência de previsão legal, a desaposentação foi declarada inconstitucional, vetando-se, pois, a possibilidade de aposentados pedirem a revisão do benefício quando voltarem a trabalhar e a contribuir para a Previdência Social.
 
q) RE 693.456, 27 de outubro de 2016: autorização do desconto dos dias paralisados em função do exercício do direito de greve, apresentada, “por definição”, como “uma opção de risco”, conforme foi expresso no voto do Ministro Dias Tofoli.
 
Além disso, na sessão realizada no dia 14/09/16, restaram alguns indícios do que pode acontecer na ADI 1625: fixar uma modulação, de modo a conferir validade à denúncia feita pelo governo FHC, em 1996, à Convenção 158, mesmo declarando que a denúncia foi inconstitucional – ou seja, pode-se expressar um entendimento que somente valerá da data do julgamento para frente.
 
Ainda restam questões importantes, como, por exemplo, a das dispensas coletivas (ARE 647.561), mas a conclusão da obra destruidora pode vir já no próximo dia 09 de novembro, quando se colocou em pauta o julgamento da ARE 958.252, que trata da ampliação ilimitada da terceirização, cujo resultado, a considerar o caminho trilhado, já se sabe qual será.
 
Resta saber apenas se, chegando a esse ponto extremo, que representa, praticamente, a destruição do sindicalismo e, por consequência, dos direitos trabalhistas, se terá colocado a cereja no bolo, para festejo pleno do segmento econômico dominante e de seus aliados, ou se terá feito transbordar o copo.
 
A resposta não será dada pelo vento!
Créditos da foto: Beto Barata / PR

O recado das urnas no Rio e o comportamento da Esquerda

01/11/2016 11:26 - Copyleft

O recado das urnas no Rio e o comportamento da Esquerda

Devemos reconhecer a lição que saiu das urnas e seguir apoiando e incentivando a juventude em luta nas periferias, nas escolas e universidades ocupadas.


Jandira Feghali
Facebook da Jandira Feghali
A política se expressa de muitas formas e, neste momento pós eleições municipais do Rio, vale uma pequena reflexão. As urnas falam e falam bem alto. Porém os gestos também falam alto, pois refletem uma visão de presente e de futuro, direcionam estratégias, determinam aliados, a relação com eles e compromissos reais com o povo.
 
A vitória da negação da política e o comando da prefeitura do Rio em mãos conservadoras são um retrocesso. Lamento sinceramente a derrota de Marcelo Freixo, candidato apoiado por nós do PCdoB e demais forças de esquerda no segundo turno.
 
O palanque de Marcelo Crivella mostrou uma unidade de centro-direita, com lideranças religiosas e a expressão de uma visão atrasada de como "cuidar das pessoas", por meio da negação da diversidade e pluralidade, características muito fortes na sociedade carioca.
 
O processo eleitoral ocorreu debaixo de um golpe institucional, da violação da nossa Constituição, da criminalização da política, com foco na eliminação da esquerda que governou o Brasil e em consequência dos direitos por ela garantidos.





 
Sinais de fascismo e Estado de exceção com envolvimento de agentes públicos dos três Poderes marcaram os últimos meses, contando com amplificação e consolidação da criminalização da política pela Grande Mídia, particularmente pelo sistema Globo de televisão, rádio, jornais e revistas semanais. Ao analisar este cenário, não concordo com os que acham que os erros da Esquerda foram a razão do golpe e da desesperança do povo, mesmo admitindo que existiram muitos erros.
 
Tudo isso tem exigido de nós uma demarcação clara de campo, a inserção da cidade que queremos neste contexto e o máximo de unidade possível do campo mais avançado e da Esquerda em particular. Todos sabíamos que no primeiro turno, o voto útil unificaria a opção do eleitorado à esquerda. Ficou claro que minha candidatura foi atingida por este movimento.
 
No segundo turno, porém, a unidade e a ampliação seriam fundamentais para enfrentar no Rio a onda conservadora que varreu o Brasil. Ainda que não ganhássemos a eleição, teríamos dado um grande passo em direção a uma perspectiva futura de unidade das esquerdas e do campo progressista. A soma não é apenas matemática, mas de forte simbolismo político.
 
No entanto, não dar visibilidade ao apoio do PT, da REDE e do PCdoB foi uma opção nítida da campanha de Marcelo Freixo, e a única alternativa que nos restou foi respeitar uma estratégia onde não cabíamos. Falando por minha candidatura, reafirmo meu compromisso no segundo turno, quando declarei apoio à candidatura do PSOL antes mesmo de terminada a apuração dos votos do primeiro turno.
 
Fizemos outras declarações públicas durante o processo, com vídeos, presença em atos na Cinelândia – como o de mulheres – com nossa tradicional militância presente na rua durante todo o tempo e de forma muito bonita. Mas é necessário dizer à sociedade que, se mais não fizemos foi porque entendemos o recado e respeitamos a decisão da candidatura de Freixo, que não buscou a nossa opinião, muito menos a nossa presença em demais atividades, imagens, TV e redes sociais.
 
Ao emitir uma "Carta aos Cariocas" para, tardiamente, atrair o eleitor de classe média mais ao centro, equivocou-se. Na minha opinião, seu conteúdo reforçou um movimento de "despolitização da política" fortemente presente no país, que acabou marcando as duas campanhas neste segundo turno e que pode ter contribuído para o altíssimo índice de abstenções. Isso foi visto, sintomaticamente, em maior grau na Zona Sul e bairros de classe média do que nos territórios populares.
 
A história já diz. As vitórias eleitorais da Esquerda no Rio sempre estiveram respaldadas no voto popular, e grandes votações nas zonas norte e oeste. Foi assim nas eleições de Brizola para governador em 1982 e em 1990. Lula, por exemplo, sempre teve votações expressivas no Rio de Janeiro, desde a sua primeira campanha em 1989. Em 2002 e em 2006, teve média de 70% dos votos nas zonas norte e oeste, performance repetida por Dilma em 2010.
 
O PSOL, que optou por não receber o apoio de Lula em sua campanha, nunca conseguiu chegar perto deste patamar nas regiões populares desta cidade. Faltou povo no seu eleitorado, porque talvez falte construir pontes com os setores da esquerda que construíram lastro e raízes históricas junto aos setores populares. Como escreveu Sidney Rezende em seu portal, "ajudar a Direita a desconstruir os demais partidos de Esquerda, principalmente o PT, pode abrir estradas ao PSOL, mas pode afastar delas quem ainda acredita que a esquerda mais unida, ainda que com divergências, seja indispensável para merecer seu voto".
 
E a segunda lição das urnas para o PSOL é que a ofensiva anti-PT e anti-esquerda desencadeada nestas eleições municipais atinge também o próprio PSOL. O partido perdeu as 3 eleições que disputou nesse segundo turno, e vai governar apenas 2 pequenos municípios em todo o país. Pau que bate em Chico, bate em Francisco.
 
O mapa da votação na cidade é eloquente e fala por si. Esquerda sem povo e sem ampliação não vai muito longe, como a história das batalhas eleitorais do Rio nos ensina.
 
A responsabilidade agora é de todos nós.
 
Olhar para o futuro e repensar o papel da Esquerda, dos movimentos sociais em conteúdo, gestos e forma de relação com a sociedade, particularmente o povo trabalhador e menos aquinhoado. No centro do nosso projeto deve estar a recuperação democrática, os direitos e o desenvolvimento do nosso país.
 
Os desafios são muitos e devemos trabalhar em unidade e frentes amplas que nos permitam recuperar nossa referência. Devemos reconhecer a lição que saiu das urnas e seguir apoiando e incentivando a juventude em luta nas periferias, nas escolas e universidades ocupadas, os trabalhadores e mulheres guerreiras, os artistas que se expuseram com riscos reais para suas carreiras.
 
Há muito que fazer para superar os nossos limites e visões que dificultam composições mais amplas no campo da Esquerda e dos setores progressistas. É preciso permitir acumular forças entre os que defendem, como nós, um futuro de politização, ampliação da democracia e vitória do nosso povo contra a dramática agenda de Estado mínimo em implantação por este governo ilegítimo.


Créditos da foto: Facebook da Jandira Feghali