quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Como as "democracias" "tratam" a dívida


África, 1987: “O discurso da dívida”
29/7/1987, Thomas Sankara (então presidente revolucionário de Burkina Faso[1])
Na Conferência da Organização da Unidade Africana, Addis Abeba, Etiópia 
http://www.youtube.com/watch?v=jvYM6cGuBo8&feature=related





Ver também
18/2/2012, "Paralelismos: Sankara, o herói que desafiou os credores"
http://redecastorphoto.blogspot.com/2012/02/1622012-leonidas-oikonomakis-roarmag.html



Não podemos pagar a dívida. E com isso não quero dizer que somos contra a moral, a dignidade e o dever de cumprir nossa palavra. Quero dizer que a moral, a dignidade e o dever de cumprir nossa palavra não são a mesma coisa entre os ricos e os pobres. A Bíblia, o Corão, não podem servir do mesmo modo aos que exploram os pobres e aos explorados. É preciso que haja duas edições da Bíblia e duas edições do Corão.


Não podemos aceitar que nos deem lições de dignidade. Que elogiem os que pagam as dívidas, e desqualifiquem os que não pagam, que nos digam que os que não pagam não merecem confiança. Ao contrário disso, devemos dizer que, hoje, os maiores assaltantes são os mais ricos, e que isso é visto como normal. Porque um pobre, quando rouba, comete pequeno crime, um pecadilho. Trata-se de sobreviver, de necessidade. Mas os ricos, quando roubam, têm autoridade fiscal, ou roubam na Alfândega. São os que exploram o povo.

Senhor presidente, minha ideia aqui não é provocar, nem fazer espetáculo. Apenas digo aqui o que todos nós pensamos e desejamos. Quem aqui não deseja que essa dívida seja simplesmente cancelada? Quem não desejar que essa dívida seja cancelada, que tome seu avião é vá pagá-la imediatamente, ao Banco Mundial!

Tampouco desejo que pensem que a proposta de Burkina Faso é ideia saída da cabeça de jovens inexperientes e imaturos, ou que a ideia de não pagar a dívida seja ideia só dos revolucionários. Digo que a proposta de não pagarmos a dívida é proposta objetiva, e é nossa obrigação. E posso citar muitos exemplos de outros que também disseram que não paguemos a dívida, revolucionários e não revolucionários, jovens e velhos.

Cito, por exemplo, Fidel Castro, que já disse que não paguemos. É revolucionário, como eu; e mais velho que eu. Mas posso citar também François Mitterand, que também disse que os países africanos, os países pobres, não podem pagar a dívida. Posso citar a senhora primeira-ministra. Não sei quantos anos tem e não perguntarei, mas é mais um exemplo. Posso citar também o presidente Felix Houphoüet-Boigny, que não é tão jovem e declarou, oficialmente, publicamente, pelo menos em relação ao seu próprio país, que a Costa do Marfim não pode pagar a dívida. Ora, a Costa do Marfim classifica-se entre os países mais ricos da África, ou pelo menos da África ‘francófona’. Por isso também, a Costa do Marfim paga contribuição maior aqui [risos].

Mas, senhor presidente, não falo para provocar. É preciso que os senhores nos ofereçam melhores soluções. Gostaria que nossa conferência adotasse como resolução muito necessária, uma declaração de que não podemos pagar a dívida. E que seja resolução conjunta, não declarações individuais.

É importante que assim seja, para que não nos exponhamos a ser assassinados. Se Burkina Faso permanecer sozinha, como único país que se recusa a pagar a dívida, eu não estarei aqui, na nossa próxima Conferência. Mas se, ao contrário, obtivermos aqui o apoio de todos, de que eu tanto preciso, conseguiremos não ser obrigados a pagar.

Se conseguirmos não pagar essa dívida, poderemos aplicar nossos pequenos recursos ao nosso próprio desenvolvimento.

Para terminar, quero dizer que cada vez que um país africano compra uma arma, é arma que será usada contra outro africano. Não será usada contra europeu nem contra país asiático. Será usada contra africanos. Portanto, temos de tirar vantagem da questão da dívida, para lançar, para encaminhar alguma solução para o problema das armas. Sou militar e ando armado. Mas, senhor presidente, sei que o desarmamento é questão inadiável. Eu ando armado, com a única arma que tenho. E muitos têm um arsenal escondido em casa. Assim, queridos irmãos, com o apoio de todos, conseguiremos ter paz em casa.

Também conseguiremos usar as imensas potencialidades da África para desenvolver a África. Nosso solo é rico. Nosso subsolo é rico. Temos braços e temos um vasto mercado, do norte ao sul e de leste a oeste. Temos capacidades intelectuais para criar ou, no mínimo, para usar todas as tecnologias e ciências, onde quer que as encontremos.

Senhor presidente, façamos dessa Conferência de Addis Abeba uma frente unida contra o pagamento da dívida. Façamos dessa Conferência de Addis Abeba uma frente unida para limitar o comércio de armas entre os países pobres e fracos. Os porretes e facões que se compram por toda parte são inúteis.

Façamos também dessa Conferência uma frente a favor do mercado africano, a favor do mercado para os africanos. Produzir na África, transformar na África e consumir na África. Vamos produzir o que nos falta, e consumir nossa produção, em vez de importar tudo.

Burkina Faso aqui está para apresentar os tecidos de algodão que nós mesmos estamos produzindo. Algodão plantado em Burkina Faso, tecido em Burkina Faso, modelado e costurado em Burkina Faso, para vestir os burkinabeses. Minha delegação e eu aqui estamos, vestidos por nossos tecelões  camponeses. Não há aqui um único fio importado da Europa ou dos EUA. Mas não estou aqui para apresentar desfile de modas. Queria dizer apenas que temos de aprender a viver à africana, porque não há outro meio para vivermos livres e com dignidade.

Agradeço a atenção, senhor presidente. Pátria ou morte! Venceremos!




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[1] Thomas Sankara [1949-1987] foi assassinado três meses depois desse discurso. Lê-se sobre ele, em Mathaba.net: “Thomas Sankara liderou, entre 1983 e 1987, uma das revoluções mais radicais e criativas que a África produziu em décadas. Sankara inaugurou uma trilha que outros países africanos poderiam seguir, genuína alternativa à modernização conservadora do continente. Como outros líderes africanos radicais, Sankara foi assassinado. O homem que o matou continua no poder, há 24 anos, sempre apoiado pelo ocidente” (em http://www.mathaba.net/www/black/sankara.shtml [traduzido]).



Fonte; 3 Setor

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