Na
contramão da história
1º/06/2012
Lúcio Flávio Pinto
A União criou a Companhia Vale do Rio Doce, em 1º de junho de 1942, com
o objetivo de extrair e remeter minério de ferro para os países aliados que
combatiam as nações do Eixo na Segunda Guerra Mundial, mantendo seu controle
acionário até o dia 7 de maio de 1997, 55 anos depois.
O leilão de privatização realizado nesse dia foi vencido pelo Consórcio
Brasil, liderado pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), responsável pelo
lance que lhe deu a posse de 53,9% das ações ordinárias da estatal, de
propriedade da União, que haviam sido colocadas à venda.
Pessoas físicas e entidades propuseram ações populares em localidades
diversas do país. O Ministério Público Federal, por sua vez, ajuizou ações
civis públicas contra a venda.
A primeira ação popular questionando a desestatização da Companhia Vale
do Rio Doce, na verdade, surgiu antes mesmo do leilão, em 26 de outubro de
1995, proposta por Mario David Prado Sá e Ilson José Corrêa Pedroso, perante a
justiça federal no Pará. Mas se incorporou às demais por falta de decisão.
As ações populares tiveram dois objetivos distintos. O primeiro foi
obter declaração judicial de nulidade do leilão do controle acionário da Vale,
por causa de diversos ilícitos formais do processo licitatório. O segundo foi o
de reconstituir o fundo público previsto no decreto-lei 4.352, de 1942, em
favor do tesouro nacional.
Os valores desse fundo público não só representariam uma indenização
pré-fixada da agressão ambiental inerente à atividade de extração mineral, mas
também constituiriam patrimônio econômico do erário nacional, fora do controle
da companhia.
O dinheiro dos estados
O juiz da 12ª vara federal Rio de Janeiro mandou intimar os Estados de
Minas Gerais e Espírito Santo a manifestarem seu interesse na questão. Ela
dizia respeito ao destino de lucros líquidos sonegados ao fundo de
desenvolvimento regional, que, pelas normas originais, seriam superiores a R$
40 bilhões.
O artigo 6º, § 7º do decreto-lei de 1º de junho de 1942, que criou a
Vale, estabeleceu:
“O dividendo máximo a ser distribuído não ultrapassará de 15% e o que
restar dos lucros líquidos constituirá um fundo de melhoramentos e
desenvolvimento do Vale do Rio Doce, executados conforme projeto elaborado por
acordo entre os Governos dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo,
aprovados pelo Presidente da República”.
É óbvio que esses dois Estados foram contemplados na lei criadora por
serem os únicos onde a Vale atuava, na época. Depois ela se instalou em pelo
menos mais 10 unidades, com destaque para Bahia, Maranhão, Pará, Mato Grosso do
Sul, Rio de Janeiro, Sergipe e Tocantins.
O modelo de “privatização” substituiu a obrigação de 85% dos lucros
líquidos se destinarem ao fundo de desenvolvimento por uma doação única de R$
85,9 milhões, efetuada logo depois do leilão, em 1997. Todos os Estados
passariam a ter suas necessidades atendidas com essa verba, “doada” pelos
vencedores do leilão de 1997 e complementada com recursos do BNDES, o
“principal agente de execução da política de investimentos do Governo Federal”.
A Vale agravou da decisão, para que o Tribunal Regional Federal da 2ª
Região impedisse o ato do juiz. Pará, Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Rio
de Janeiro, Sergipe e Tocantins também poderiam se manifestar para receber boa
parte dos lucros líquidos da Vale.
Alegou a empresa que os Estados só teriam interesse econômico, mas não
teriam interesse jurídico para justificar sua participação no processo. O
advogado dos autores populares contraditou essa tese. Segundo ele, a
Constituição Federal diz que a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios têm competência comum para “zelar” pela guarda das leis e
“conservar” o patrimônio público.
Eles têm “não só o direito, mas até mesmo o dever de lutar por esse
patrimônio, independente das conveniências de política partidária dos seus
governantes. Além disso, a lei 9.469/1997 (por sinal, sancionada pelo
ex-presidente FHC), determina que os Estados não precisam provar interesse
jurídico para intervir em processos judiciais cuja decisão possa ter reflexos,
ainda que indiretos, apenas de natureza econômica”.
Os vícios na venda
Em praticamente todas as ações, os autores populares e o MPF indicaram
irregularidades formais no procedimento de alienação. Denunciaram também a
subavaliação do patrimônio e dos direitos de titularidade da empresa, que
resultaram em um preço por ação inferior ao preço mínimo real da companhia e
expressivos prejuízos aos cofres públicos.
O fundamento dessa conclusão foi um laudo produzido por especialistas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, contratados pela Comissão Externa da
Câmara dos Deputados para a apuração da venda. Segundo o laudo, as empresas
contratadas pelo BNDES produziram uma avaliação incorreta, ao partir de
premissas equivocadas, que não permitiram uma avaliação confiável.
Na avaliação feita para a venda da empresa não foi computada a
existência de urânio, outros minerais radioativos e reservas que na época ainda
não haviam sido devidamente mensuradas, como as de cobre, além de uma jazida de
ouro possivelmente de 900 toneladas, excluída com o argumento de que, “enquanto
não chega à boca da mina” (critério mine gate de
avaliação), o metal precioso nada vale.
De volta ao leilão
Em 26 de outubro de 2005 a desembargadora federal Selene Maria de Almeida
(da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília/DF), deu
extenso voto no julgamento conjunto de dezenas de ações populares. Acolhendo o
parecer do Ministério Público Federal, determinou a anulação das sentenças de
primeiro grau favoráveis à venda em 1997, o reexame do mérito das ações
populares extintas e outra avaliação do patrimônio da mineradora, das quais foi
relatora
Seu voto foi acolhido pela maioria dos integrantes da turma. A
divergência parcial foi apenas em relação à possibilidade ou não de
reconhecimento da situação de fato consolidada da privatização. Prevaleceu o
entendimento de que a anulação deveria ser integral, vencida a relatora, que
considerou a situação de fato consolidada.
O TRF determinou o retorno dos autos ao juízo de origem para ser apurado
se houve, de fato, vícios formais no edital e no procedimento de alienação. A
apuração teria que verificar também se ocorreu subavaliação e/ou exclusão de
avaliação de bens ou direitos de titularidade da companhia. Em caso positivo,
perícia teria que ser feita para discriminar os valores.
A complexidade da causa impôs a perícia, em razão de a CVRD ser uma das
maiores produtoras e exportadoras de minérios do mundo, desempenhando, ainda,
outras atividades relacionadas à navegação, transporte ferroviário e logística.
Ficou estabelecido que o laudo deveria demonstrar os métodos utilizados
quando da avaliação do patrimônio da empresa e compará-los com outros métodos,
apurando os valores que eventualmente não tivessem sido computados. Assim
poderia respaldar o juízo, inclusive com a finalidade de estipular eventual
responsabilidade por ressarcimento de prejuízos que tenham sido causados ao
erário.
Em pelo menos um dos processos ajuizados no Pará em 1997 foi requerido,
como providência cautelar, o deposito judicial dos dividendos correspondentes
às ações de controle acionário da CVRD, apurados depois do leilão. O pedido foi
apresentado por não haver garantia de devolução dos valores bilionários
recebidos pelos compradores. Esses valores passariam a ser indevidos, na
hipótese de julgamentos finais favoráveis aos autores populares, que
denunciaram as irregularidades na época própria, antes de consumada a venda de
ações da companhia.
Advertências sobre risco
Quatro dias antes da venda, aliás, o ministro Demócrito Reinaldo. do
Superior Tribunal de Justiça, em entrevista à Folha de
S. Paulo, em 2 de maio de 1997, advertiu as autoridades sobre a temeridade de
forçar o leilão da Vale havendo tantas ações populares cujo mérito ainda
exigiria muito tempo para ser julgado.
Esse mérito poderia implicar rever a inconstitucionalidade e ilegalidade
da venda da estatal, como viria a ser decidido por maioria nos acórdãos do
TRF-1ª Região, contra o voto do relatora, que só viu irregularidade na
avaliação prévia e não na venda subsequente.
No caso das ações populares propostas pelo grupo patrocinado por Eloá
dos Santos Cruz, advogado com escritório no Rio de Janeiro, houve recurso de
apelação voluntária pelo menos num processo, no qual foi lembrada a necessidade
do imprescindível reexame imposto pela lei. Isso beneficiou a todos os autores
populares.
Se os procedimentos administrativos (enquadramento da Vale no Programa
Nacional de Desestatização, editais e avaliação) e o próprio leilão de ações
forem declarados nulos em decisão final, a justiça teria de proferir decisão
com efeito retroativo, voltando a prevalecer o controle acionário da Vale como
estava no dia do leilão, em 6 de maio de 1997.
Nesse caso, quem devolveria ao tesouro nacional os lucros líquidos
bilionários que foram e continuam a ser recebidos pelos atuais controladores da
Vale?
Em petições à 5ª Turma do TRF-1ª Região, Eloá pediu providência
cautelar, no sentido de se ordenar o depósito judicial desses valores, de
acordo com a Lei 9.703/98 (FHC), até que sejam decididas de vez as ações
populares.
As frentes de luta
Definida pela justiça a competência original da 1ª Vara Federal de Belém
para processar todas as ações propostas contra a venda (cuja intenção seria
deslocar o litígio para longe dos centros decisórios do país), numa primeira
frente, autores e réus das ações populares opuseram seus recursos, através de
embargos de declaração.
Alguns, a fim de esclarecer se as decisões de 2005, no TRF-1ª Região são
majoritárias ou unânimes, e até que ponto seria possível conciliar a tese da
“sanatória do nulo em homenagem à boa-fé”, sustentada pela desembargadora
federal Selene Maria de Almeida, com os princípios constitucionais da
legalidade e da moralidade administrativa. Para o grupo patrocinado pelo advogado
Eloá, a tese da “sanatória” seria como um nihil
obstat (nada a opor em latim), “que prenuncia anarquia e descontrole no âmbito
da Administração Pública. Ou pior ainda: chancela privilégio odioso a
especuladores da Coisa Pública”.
Na segunda frente, centrada em ação popular na 12ª vara federal do Rio
de Janeiro, discute-se a vigência, ou não, do dispositivo que limitou os
dividendos dos acionistas da Vale a 15% dos lucros líquidos, destinando “o que
restar” a um fundo público.
Na contestação apresentada por seus advogados, o ex-presidente FHC
declarou quais eram os efeitos desejados com o leilão:
“Essa transformação que sofreu a CVRD, deixando o domínio estatal para
ingressar na livre iniciativa, fez com que todas as normas legislativas
editadas por seu anterior acionista controlador (União) perdessem imediatamente
a eficácia, ressalvadas as disposições comuns a todas as empresas, relativas à
regulação do Estado do processo econômico.
A partir desse momento, a companhia se tornou livre para efetuar suas
transações econômicas com quaisquer pessoas, não tendo mais a obrigação de
prestar suas contas ao Tribunal de Contas da União”.
Sobre esse enunciado, Eloá fez as seguintes observações em 2006:
“Que transações são essas, que não podem ser conhecidas pelo Tribunal de
Contas da União? O que sabe o Tribunal de Contas da União sobre os montantes
recolhidos, ou não, ao fundo público desde o resultado financeiro positivo em
1954 até maio de 1997? Qual a inconveniência para o Interesse Público se o
‘anterior acionista controlador (União)’ recebesse a maior parte dos dividendos
(quase R$ 9 bilhões, somente em 2005)? Qual a vantagem para o Povo Brasileiro
de trocar esse ‘anterior acionista controlador (União)’ pelos investidores da
Bolsa de Valores de Nova Iorque? Pior, ainda: por que não se informa a esses
investidores o contencioso popular em curso no Brasil?”. As perguntas
permanecem no ar até hoje.
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