Chávez:
o legado e os desafios
Ao gritar nas ruas
de Caracas “Todos somos Chávez!” o povo está lucidamente consciente de que
Chávez houve um só e que a revolução bolivariana vai ter inimigos internos e
externos suficientemente fortes para pôr em causa a intensa vivência
democrática que ele lhes proporcionou durante treze anos.
Boaventura de Sousa Santos
Morreu o líder político democrático mais
carismático das últimas décadas. Quando acontece em democracia, o carisma cria
uma relação política entre governantes e governados particularmente
mobilizadora, porque junta à legitimidade democrática uma identidade de
pertença e uma partilha de objetivos que está muito para além da representação
política. As classes populares, habituadas a serem golpeadas por um poder
distante e opressor (as democracias de baixa intensidade alimentam esse poder)
vivem momentos em que a distância entre representantes e representados quase se
desvanece.
Os opositores falarão de populismo e de
autoritarismo, mas raramente convencem os eleitores. É que, em democracia, o
carisma permite níveis de educação cívico-democráticos dificilmente atingíveis
noutras condições. A difícil química entre carisma e democracia aprofunda
ambos, sobretudo quando se traduz em medidas de redistribuição social da
riqueza. O problema do carisma é que termina com o líder. Para continuar sem
ele, a democracia precisa de ser reforçada por dois ingredientes cuja química é
igualmente difícil, sobretudo num imediato período pós-carismático: a
institucionalidade e a participação popular.
Ao gritar nas ruas de Caracas “Todos somos Chávez!”
o povo está lucidamente consciente de que Chávez houve um só e que a revolução
bolivariana vai ter inimigos internos e externos suficientemente fortes para
pôr em causa a intensa vivência democrática que ele lhes proporcionou durante
treze anos. O Presidente Lula do Brasil também foi um líder carismático. Depois
dele, a Presidenta Dilma aproveitou a forte institucionalidade do Estado e da
democracia brasileiras, mas tem tido dificuldade em complementá-la com a
participação popular. Na Venezuela, a força das instituições é muito menor, ao
passo que o impulso da participação é muito maior. É neste contexto que devemos
analisar o legado de Chávez e os desafios no horizonte.
O legado de
Chávez
1. Redistribuição da riqueza.
Chávez, tal como outros líderes latino-americanos, aproveitou o boom dos
recursos naturais (sobretudo petróleo) para realizar um programa sem
precedentes de políticas sociais, sobretudo nas áreas da educação, saúde, habitação
e infraestruturas que melhoraram substancialmente a vida da esmagadora maioria
da população. A Venezuela saudita deu lugar à Venezuela bolivariana.
2. A integração regional. Chávez
foi o artífice incansável da integração do subcontinente latino-americano. Não
se tratou de um cálculo mesquinho de sobrevivência e de hegemonia. Chávez
acreditava como ninguém na ideia da Pátria Grande de Simón Bolívar. As
diferenças políticas substantivas entre os vários países eram vistas por ele
como discussões no seio de uma grande família. Logo que teve oportunidade,
procurou reatar os laços com o membro da família mais renitente e mais pró-EUA,
a Colômbia. Procurou que as trocas entre os países latino-americanos fossem
muito para além das trocas comerciais e que estas se pautassem por uma lógica
de complementaridade e de reciprocidade, e não por uma lógica capitalista. A
sua solidariedade com Cuba é bem conhecida, mas foi igualmente decisiva com a
Argentina, durante a crise da dívida soberana em 2001-2002, e com os pequenos
países das Caraíbas.
Foi um entusiasta de todas as formas de integração
regional que ajudassem o continente a deixar de ser o (quintal dos EUA. Foi o
impulsionador da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), depois
ALBA-TCP (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América- Tratado de
Comércio dos Povos), mas também quis ser membro do MERCOSUL. CELAC (Comunidade
dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), UNASUL (União de Nações
Sul-Americanas) são outras das instituições de integração a que Chávez deu o
seu impulso.
1. Anti-imperialismo. Nos períodos
mais decisivos do seu governo (incluindo a sua resistência ao golpe de Estado
de que foi vítima em 2002) Chávez confrontou-se com o mais agressivo
unilateralismo dos EUA (George W. Bush) que teve o seu ponto mais destrutivo na
invasão do Iraque. Chávez tinha a convicção de que o que se passava no Oriente Médio
viria um dia a passar-se na América Latina se esta não se preparasse para essa
eventualidade. Dai o seu interesse na integração regional. Mas também estava
convencido de que a única maneira de travar os EUA seria alimentar o multilateralismo,
fortalecendo o que restava da Guerra Fria. Daí, a sua aproximação com a Rússia,
a China e o Irã. Sabia que os EUA (com o apoio da União Europeia) continuariam
a “libertar” todos os países que pudessem contestar Israel ou ser uma ameaça
para o acesso ao petróleo. Daí, a “libertação” da Líbia, seguida da Síria e, em
futuro próximo, do Irã. Daí também o “desinteresse” dos EUA e EU em
“libertarem” o país governado pela mais retrógrada ditadura, a Arábia Saudita.
2. O socialismo do século XXI.
Chávez não conseguiu construir o socialismo do século XXI a que chamou o
socialismo bolivariano. Qual seria o seu modelo de socialismo, sobretudo tendo
em vista que sempre mostrou uma reverência para com a experiência cubana que
muitos consideraram excessiva? Conforta-me saber que em várias ocasiões Chávez
tenha referido com aprovação a minha definição de socialismo: “socialismo é a
democracia sem fim”. É certo que eram discursos, e as práticas seriam
certamente bem mais difíceis e complexas. Quis que o socialismo bolivariano
fosse pacífico, mas armado para não lhe acontecer o mesmo que aconteceu a
Salvador Allende. Nacionalizou empresas, o que causou a ira dos investidores
estrangeiros que se vingaram com uma campanha impressionante de demonização de
Chávez, tanto na Europa (sobretudo na Espanha) como nos EUA. Desarticulou o
capitalismo que existia, mas não o substituiu. Daí, as crises de abastecimento
e de investimento, a inflação e a crescente dependência dos rendimentos do
petróleo. Polarizou a luta de classes e pôs em guarda as velhas e as novas
classes capitalistas, as quais durante muito tempo tiveram quase o monopólio da
comunicação social e sempre mantiveram o controle do capital financeiro. A
polarização caiu na rua e muitos consideraram que o grande aumento da
criminalidade era produto dela (dirão o mesmo do aumento da criminalidade em
São Paulo ou Joanesburgo?).
3. O Estado comunal. Chávez sabia
que a máquina do Estado construída pelas oligarquias que sempre dominaram o
país tudo faria para bloquear o novo processo revolucionário que, ao contrário
dos anteriores, nascia com a democracia e alimentava-se dela. Procurou, por
isso, criar estruturas paralelas. Primeiro foram as misiones e gran misiones,
um extenso programa de políticas governamentais em diferentes setores, cada uma
delas com um nome sugestivo (Por. ex., a Misíon
Barrio Adentro para oferecer serviços de saúde às classes populares), com
participação popular e a ajuda de Cuba.
Depois, foi a institucionalização do poder popular,
um ordenamento do território paralelo ao existente (Estados e municípios),
tendo como célula básica a comuna, como princípio, a propriedade social e como
objetivo, a construção do socialismo. Ao contrário de outras experiências
latino-americanas que têm procurado articular a democracia representativa com a
democracia participativa (o caso do orçamento participativo e dos conselhos
populares setoriais), o Estado comunal assume uma relação de confrontação entre
as duas formas de democracia. Esta será talvez a sua grande debilidade.
Os desafios
para a Venezuela e o continente
4. A união cívico-militar. Chávez assentou
o seu poder em duas bases: a adesão democrática das classes populares e a união
política entre o poder civil e as forças armadas. Esta união foi sempre
problemática no continente e, quando existiu, foi quase sempre de orientação
conservadora e mesmo ditatorial. Chávez, ele próprio um militar, conseguiu uma
união de sentido progressista que deu estabilidade ao regime. Mas para isso
teve de dar poder econômico aos militares, o que, para além de poder ser uma
fonte de corrupção, poderá amanhã virar-se contra a revolução bolivariana ou, o
que dá no mesmo, subverter o seu espírito transformador e democrático.
5. O extrativismo. A revolução
bolivariana aprofundou a dependência do petróleo e dos recursos naturais em
geral, um fenômeno que longe de ser específico da Venezuela, está hoje bem
presente em outros países governados por governos que consideramos
progressistas, sejam eles o Brasil, a Argentina, o Equador ou a Bolívia. A excessiva
dependência dos recursos está a bloquear a diversificação da economia, está a
destruir o meio ambiente e, sobretudo, está a constituir uma agressão constante
às populações indígenas e camponesas onde se encontram os recursos, poluindo as
suas águas, desrespeitando os seus direitos ancestrais, violando o direito
internacional que obriga à consulta das populações, expulsando-as das suas
terras, assassinando os seus líderes comunitários. Ainda na semana passada
assassinaram um grande líder indígena da Sierra de Perijá (Venezuela), Sabino
Romero, uma luta com que sou solidário há muitos anos. Saberão os sucessores de
Chávez enfrentar este problema?
6. O regime político. Mesmo quando
sufragado democraticamente, um regime político à medida de um líder carismático
tende a ser problemático para os seus sucessores. Os desafios são enormes no
caso da Venezuela. Por um lado, a debilidade geral das instituições, por outro,
a criação de uma institucionalidade paralela, o Estado comunal, dominada pelo
partido criado por Chávez, o PSUV (Partido Socialista Unificado da Venezuela).
Se a vertigem do partido único se instaurar, será o fim da revolução
bolivariana. O PSUV é um agregado de várias tendências e a convivência entre
elas tem sido difícil.
Desaparecida a figura agregadora de Chávez, é
preciso encontrar modos de expressar a diversidade interna. Só um exercício de
profunda democracia interna permitirá ao PSUV ser uma das expressões nacionais
do aprofundamento democrático que bloqueará o assalto das forças políticas
interessadas em destruir, ponto por ponto, tudo o que foi conquistado pelas
classes populares nestes anos. Se a corrupção não for controlada e se as
diferenças forem reprimidas por declarações de que todos são chavistas e de que
cada um é mais chavista do que o outro, estará aberto o caminho para os
inimigos da revolução. Uma coisa é certa: se há que seguir o exemplo de Chávez,
então é crucial que não se reprima a crítica. É necessário abandonar de vez o
autoritarismo que tem caracterizado largos setores da esquerda
latino-americana.
O grande desafio das forças progressistas no
continente é saber distinguir entre o estilo polemizante de Chávez, certamente
controverso, e o sentido político substantivo de seu modo de governar,
inequivocamente a favor das classes populares e de uma integração solidária do
subcontinente. As forças conservadoras tudo farão para confundilos. Chávez
contribuiu decisivamente para consolidar a democracia no imaginário social.
Consolidou-a onde ela é mais difícil de ser traída, no coração das classes
populares. E onde também a traição é mais perigosa. Alguém imagina as classes
populares de tantos outros países do mundo verter pela morte de um líder
político democrático as lágrimas amargas com que os venezuelanos inundam as
televisões do mundo?
Este é um patrimônio precioso tanto para os
venezuelanos como para os latino-americanos. Seria um crime desperdiçá-lo.
Coimbra, 6 de Março de 2013
Boaventura de Sousa
Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (Portugal).
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