domingo, 21 de julho de 2013

Leitura indispensável


Mercosul, a nova Alca e a China

 

por Samuel Pinheiro Guimarães [*]

Resistir – Portugal

18/07/2013

 

1.     Todo o noticiário sobre Mercosul, Aliança do Pacífico, Parceria Transpacífica e China tem a ver com um embate ideológico entre duas concepções de política de desenvolvimento econômico e social.



2. A primeira dessas concepções afirma que o principal obstáculo ao crescimento e ao desenvolvimento é a ação do Estado na economia.



3. A ação direta do Estado na economia, através de empresas estatais, como a Petrobrás, ou indireta, através de políticas tributárias e creditícias para estimular empresas consideradas estratégicas, como a ação de financiamento do BNDES, distorceria as forças de mercado e prejudicaria a alocação eficiente de recursos.



4. Nesta visão privatista e individualista, uma política de eliminação dos obstáculos ao comércio e à circulação de capitais; de não discriminação entre empresas nacionais e estrangeiras; de eliminação de reservas de mercado; de mínima regulamentação da atividade empresarial, inclusive financeira; e de privatização de empresas estatais conduziria a uma eficiente divisão internacional do trabalho em que todas as sociedades participariam de forma equânime e atingiriam os mais elevados níveis de crescimento e desenvolvimento.



5. Esta visão da economia se fundamenta em premissas equivocadas. Primeiro, de que todos os Estados partem de um mesmo nível de desenvolvimento, de que não há Estados mais e menos desenvolvidos. Segundo, de que as empresas são todas iguais ou pelo menos muito semelhantes em dimensão de produção, de capacidade financeira e tecnológica e de que não são capazes de influir sobre os preços. Terceiro, de que há plena liberdade de movimento da mão-de-obra entre os Estados. Quarto, de que há pleno acesso à tecnologia que pode ser adquirida livremente no mercado. Quinto, de que todos os Estados, inclusive aqueles mais desenvolvidos, seguem hoje e teriam seguido no passado esse tipo de políticas.



6. Como é óbvio, estas premissas não correspondem nem à realidade da economia mundial, que é muito, muito mais complexa, nem ao desenvolvimento histórico do capitalismo.



7. Historicamente, as nações hoje altamente desenvolvidas utilizaram uma gama de instrumentos de política econômica que permitiram o fortalecimento de suas empresas, de suas economias e de seus Estados nacionais. Isto ocorreu mesmo na Inglaterra, que foi a nação líder do desenvolvimento capitalista industrial, com a Lei de Navegação, que obrigava o transporte em navios ingleses de todo o seu comércio de importação e exportação; com a política de restrição às exportações de lã em bruto e às importações de tecidos de lã; com as restrições à exportação de máquinas e à imigração de "técnicos".



8. Políticas semelhantes utilizaram a França, a Alemanha, os Estados Unidos e o Japão. Países que não o fizeram naquela época, tais como Portugal e Espanha, não se desenvolveram industrialmente e, portanto, não se desenvolveram.



9. Se assim foi historicamente, a realidade da economia atual é a de mercados financeiros e industriais oligopolizados em nível global por megaempresas multinacionais, cujas sedes se encontram nos países altamente desenvolvidos. A lista das maiores empresas do mundo, publicada pela revista Forbes, apresenta dados sobre essas empresas cujo faturamento é superior ao PIB de muitos países. Das 500 maiores empresas, 400 se encontram operando na China. Os países altamente desenvolvidos protegem da competição estrangeira setores de sua economia como a agricultura e outros de alta tecnologia. Através de seus gigantescos orçamentos de defesa, todos, inclusive a Alemanha e o Japão, que não poderiam legalmente ter forças armadas, subsidiam as suas empresas e estimulam o desenvolvimento cientifico e tecnológico. Com os programas do tipo "Buy American" e outros semelhantes, privilegiam as empresas nacionais de seus países; através da legislação e de acordos cada vez mais restritivos de proteção à propriedade intelectual, dificultam e até impedem a difusão do conhecimento tecnológico. Através de agressivas políticas de "abertura de mercados" obtém acesso aos recursos naturais (petróleo, minérios etc) e aos mercados dos países periféricos, em troca de uma falsa reciprocidade, e conseguem garantir para suas megaempresas um tratamento privilegiado em relação às empresas locais, inclusive no campo jurídico, com os acordos de proteção e promoção de investimentos, pelos quais obtém a extraterritorialidade. Como é sabido, protegem seus mercados de trabalho através de todo tipo de restrição à imigração, favorecendo, porém, a de pessoal altamente qualificado, atraindo cientistas e engenheiros, colhendo as melhores "flores" dos jardins periféricos.



10. A segunda concepção de desenvolvimento econômico e social afirma que, dada a realidade da economia mundial e de sua dinâmica, e a realidade das economias subdesenvolvidas, é essencial a ação do Estado para superar os três desafios que tem de enfrentar os países periféricos, ex-colônias, algumas mais outras menos recentes, mas todas vítimas da exploração colonial direta ou indireta. Esses desafios são a redução das disparidades sociais, a eliminação das vulnerabilidades externas e o pleno desenvolvimento de seu potencial de recursos naturais, de sua mão de obra e de seu capital.



11. As extremas disparidades sociais, as graves vulnerabilidades externas, o potencial não desenvolvido caracterizam o Brasil, mas também todas as economias sulamericanas. A superação desses desafios não poderá ocorrer sem a ação do Estado, pela simples aplicação ingênua dos princípios do neoliberalismo, de liberdade absoluta para as empresas as quais, aliás, levaram o mundo à maior crise econômica e social de sua História: a crise de 2007. E agora, Estados europeus, pela política de austeridade (naturalmente, não para os bancos) que ressuscita o neoliberalismo, atacam vigorosamente a legislação social, propagam o desemprego e agravam as disparidades de renda e de riqueza. Mas isto é tema para outro artigo.



12. Assim, neste embate entre duas visões, concepções, de política econômica, a aplicação da primeira política, a do neoliberalismo, levou à ampliação da diferença de renda entre os países da América do Sul e os países altamente desenvolvidos nos últimos vinte anos até a crise de 2007. Por outro lado, é a aplicação de políticas econômicas semelhantes, que preveem explicitamente a ação do Estado, que permitiu à China crescer à taxa média de 10% a/a desde 1979 e que farão que a China venha a ultrapassar os EUA até 2020. Ainda assim, há aqueles que na periferia não querem ver, por interesse ou ideologia, a verdadeira natureza da economia internacional e a necessidade da ação do Estado para promover o desenvolvimento. Nesta economia internacional real, e não mitológica, é preciso considerar a ação da maior Potência.



13. A política econômica externa dos Estados Unidos, a partir do momento em que o país se tornou a principal potência industrial do mundo no final do século XIX e em especial a partir de 1945, com a vitória na Segunda Guerra Mundial, e confiante na enorme superioridade de suas empresas, tem tido como principal objetivo liberalizar o comércio internacional de bens e promover a livre circulação de capitais, de investimento ou financeiro, através de acordos multilaterais como o GATT, mais tarde OMC, e o FMI; de acordos regionais, como era a proposta da ALCA e de acordos bilaterais, como são os tratados de livre comércio com a Colômbia, o Chile, o Peru, a América Central e com outros países como a Coréia do Sul. E agora as negociações, altamente reservadas, da chamada Trans-Pacific Partnership - TPP, a Parceria Transpacífica, iniciativa americana extremamente ambiciosa, que envolve a Austrália, Brunei, Chile, Malásia, Nova Zelândia, Peru, Singapura, Vietnã, e eventualmente Canadá, México e Japão, e que, nas palavras de Bernard Gordon, Professor Emérito de Ciência Política, da Universidade de New Hampshire, "adicionaria milhares de milhões de dólares à economia americana e consolidaria o compromisso político, financeiro e militar dos Estados Unidos no Pacifico por décadas". O compromisso, a presença, a influência dos Estados Unidos no Pacifico isto é, na Ásia, no contexto de sua disputa com a China. A TPP merece um artigo à parte.



14. Através daqueles acordos bilaterais, procuram os EUA consagrar juridicamente a abertura de mercados e obter o compromisso dos países de não utilizar políticas de desenvolvimento industrial e de proteção do capital nacional. Não desejam os Estados Unidos ver o desenvolvimento de economias nacionais, com fortes empresas, capazes de competir com as megaempresas americanas, por razões óbvias, entre elas a consequente redução das remessas de lucros das regiões periféricas para a economia americana. Os lucros no exterior são cerca de 20% do total anual dos lucros das empresas americanas!



15. Nas Américas, a política econômica dos Estados Unidos teve sempre como objetivo a formação de uma área continental integrada à economia americana e liderada pelos Estados Unidos que, inclusive, contribuísse para o alinhamento político de cada Estado da região com a política externa americana em seus eventuais embates com outros centros de poder, como a União Européia, a Rússia e hoje a China.



16. Assim, já no século XIX, em 1889, no mesmo ano em que Deodoro da Fonseca proclamou a República, na Conferência Internacional Americana, em Washington, os Estados Unidos propuseram a criação de uma união aduaneira continental. Esta proposta, que recebeu acolhida favorável do Brasil, no entusiasmo pan-americano da recém-nascida república, foi rejeitada pela Argentina e outros países.



17. Com a I Guerra Mundial, a Grande Depressão, a ascensão do nazismo e a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos procuraram estreitar seus laços econômicos com a América Latina, aproveitando, inclusive, a derrota alemã e o retraimento francês e inglês, influências históricas tradicionais.



18. Em 1948, na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, propuseram novamente a negociação de uma área de livre comércio nas Américas; mais tarde, em 1988, negociaram o acordo de livre comércio com o Canadá, que seria transformado em Nafta com a inclusão do México, em 1994; e propuseram a negociação de uma Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA, em 1994.



19. A negociação da ALCA fracassou em parte pela oposição do Brasil e da Argentina, a partir da eleição de Lula, em 2002 e de Kirchner, em 2003 e, em parte, devido à recusa americana de negociar os temas de agricultura e de defesa comercial, o que permitiu enviar os temas de propriedade intelectual, compras governamentais e investimentos para a esfera da OMC, o que esvaziou as negociações.

20. O objetivo estratégico americano, todavia, passou a ser executado, agora com redobrada ênfase, através da negociação de tratados bilaterais de livre comércio, que concluíram com o Chile, a Colômbia, o Peru, a América Central e República Dominicana, só não conseguindo o mesmo com o Equador e a Venezuela devido à eleição de Rafael Correa e de Hugo Chávez e à resistência do Mercosul às investidas feitas junto ao Uruguai.

21. Assim, a estratégia americana tem tido como resultado, senão como objetivo expresso, impedir a integração da América do Sul e desintegrar o Mercosul através da negociação de acordos bilaterais, incorporando Estado por Estado na área econômica americana, sem barreiras às exportações e capitais americanos e com a consolidação legal de políticas econômicas internas, em cada país, nas áreas de propriedade intelectual, compras governamentais, defesa comercial, investimentos, em geral com dispositivos chamados de OMC – Plus, mais favoráveis aos Estados Unidos do que aqueles que conseguiram incluir na OMC, que, sob o manto de ilusória reciprocidade, beneficiam as megaempresas americanas, em especial neste momento de crise e de início da competição sino-americana na América Latina.



22. Na execução deste objetivo, de alinhar econômica, e por consequência politicamente, toda a América Latina sob a sua bandeira contam com o auxílio dos grupos internos de interesse em cada país que, tendo apoiado a ALCA no passado, agora apoiam a negociação de acordos bilaterais ou a aproximação com associações de países, tais como a Aliança do Pacífico, que reúne países sul-americanos e mais o México, que celebraram acordos de livre comércio com os EUA.



23. Hoje, o embate político, econômico e ideológico na América do Sul se trava entre os Estados Unidos da América, a maior potência econômica, política, militar, tecnológica, cultural e de mídia do mundo; a crescente presença chinesa, com suas investidas para garantir acesso a recursos naturais, ao suprimento de alimentos e de suas exportações de manufaturas e que, para isto, procuram seduzir os países da América do Sul e em especial do Mercosul com propostas de acordos de livre comércio; e as políticas dos países do Mercosul, Argentina, Brasil, Venezuela, Uruguai e Paraguai que ainda entretém aspirações de desenvolvimento soberano, pretendem atingir níveis de desenvolvimento social elevado e que sabem que, para alcançar estes objetivos, a ação do Estado, i.e. da coletividade organizada, é essencial, é indispensável.

 

 

Estados Unidos, Venezuela e Paraguai

— 26 notas para compreender a batalha actual

por Samuel Pinheiro Guimarães [*]

1.     Não há como entender as peripécias da política sul-americana sem levar em conta a política dos Estados Unidos para a América do Sul. Os Estados Unidos ainda são o principal ator político na América do Sul e pela descrição de seus objetivos devemos começar.



2. Na América do Sul, o objetivo estratégico central dos Estados Unidos, que apesar do seu enfraquecimento continuam sendo a maior potência política, militar, econômica e cultural do mundo, é incorporar todos os países da região à sua economia. Esta incorporação econômica leva, necessariamente, a um alinhamento político dos países mais fracos com os Estados Unidos nas negociações e nas crises internacionais.



3. O instrumento tático norte-americano para atingir este objetivo consiste em promover a adoção legal pelos países da América do Sul de normas de liberalização a mais ampla do comércio, das finanças e investimentos, dos serviços e de "proteção" à propriedade intelectual através da negociação de acordos em nível regional e bilateral.



4. Este é um objetivo estratégico histórico e permanente. Uma de suas primeiras manifestações ocorreu em 1889 na I Conferência Internacional Americana, que se realizou em Washington, quando os EUA, já então a primeira potência industrial do mundo, propuseram a negociação de um acordo de livre comércio nas Américas e a adoção, por todos os países da região, de uma mesma moeda, o dólar.


5. Outros momentos desta estratégia foram o acordo de livre comércio EUA-Canadá; o NAFTA (Área de Livre Comércio da América do Norte, incluindo além do Canadá, o México); a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio das Américas – ALCA e, finalmente, os acordos bilaterais com o Chile, Peru, Colômbia e com os países da América Central.



6. Neste contexto hemisférico, o principal objetivo norte-americano é incorporar o Brasil e a Argentina, que são as duas principais economias industriais da América do Sul, a este grande "conjunto" de áreas de livre comércio bilaterais, onde as regras relativas ao movimento de capitais, aos investimentos estrangeiros, aos serviços, às compras governamentais, à propriedade intelectual, à defesa comercial, às relações entre investidores estrangeiros e Estados seriam não somente as mesmas como permitiriam a plena liberdade de ação para as megaempresas multinacionais e reduziria ao mínimo a capacidade dos Estados nacionais para promover o desenvolvimento, ainda que capitalista, de suas sociedades e de proteger e desenvolver suas empresas (e capitais nacionais) e sua força de trabalho.



7. A existência do Mercosul, cuja premissa é a preferência em seus mercados às empresas (nacionais ou estrangeiras) instaladas nos territórios da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai em relação às empresas que se encontram fora desse território e que procura se expandir na tentativa de construir uma área econômica comum, é incompatível com objetivo norte-americano de liberalização geral do comércio de bens, de serviços, de capitais etc que beneficia as suas megaempresas, naturalmente muitíssimo mais poderosas do que as empresas sul-americanas.



8. De outro lado, um objetivo (político e econômico) vital para os Estados Unidos é assegurar o suprimento de energia para sua economia, pois importam 11 milhões de barris diários de petróleo sendo que 20% provêm do Golfo Pérsico, área de extraordinária instabilidade, turbulência e conflito.



9. As empresas americanas foram responsáveis pelo desenvolvimento do setor petrolífero na Venezuela a partir da década de 1920. De um lado, a Venezuela tradicionalmente fornecia petróleo aos Estados Unidos e, de outro lado, importava os equipamentos para a indústria de petróleo e os bens de consumo para sua população, inclusive alimentos.

10. Com a eleição de Hugo Chávez, em 1998, suas decisões de reorientar a política externa (econômica e política) da Venezuela em direção à América do Sul (i.e. principal, mas não exclusivamente ao Brasil), assim como de construir a infraestrutura e diversificar a economia agrícola e industrial do país viriam a romper a profunda dependência da Venezuela em relação aos Estados Unidos.



11. Esta decisão venezuelana, que atingiu frontalmente o objetivo estratégico da política exterior americana de garantir o acesso a fontes de energia, próximas e seguras, se tornou ainda mais importante no momento em que a Venezuela passou a ser o maior país do mundo em reservas de petróleo e em que a situação do Oriente Próximo é cada vez mais volátil.



12. Desde então desencadeou-se uma campanha mundial e regional de mídia contra o Presidente Chávez e a Venezuela, procurando demonizá-lo e caracterizá-lo como ditador, autoritário, inimigo da liberdade de imprensa, populista, demagogo etc. A Venezuela, segundo a mídia, não seria uma democracia e para isto criaram uma "teoria" segundo a qual ainda que um presidente tenha sido eleito democraticamente, ele, ao não "governar democraticamente", seria um ditador e, portanto, poderia ser derrubado. Aliás, o golpe já havia sido tentado em 2002 e os primeiros lideres a reconhecer o "governo" que emergiu desse golpe na Venezuela foram George Walker Bush e José María Aznar.



13. À medida que o Presidente Chávez começou a diversificar suas exportações de petróleo, notadamente para a China, substituiu a Rússia no suprimento energético de Cuba e passou a apoiar governos progressistas eleitos democraticamente, como os da Bolívia e do Equador, empenhados em enfrentar as oligarquias da riqueza e do poder, os ataques redobraram orquestrados em toda a mídia da região (e do mundo).



14. Isto apesar de não haver dúvida sobre a legitimidade democrática do Presidente Chávez que, desde 1998, disputou doze eleições, que foram todas consideradas livres e legítimas por observadores internacionais, inclusive o Centro Carter, a ONU e a OEA.



15. Em 2001, a Venezuela apresentou, pela primeira vez, sua candidatura ao Mercosul. Em 2006, após o término das negociações técnicas, o Protocolo de adesão da Venezuela foi assinado pelos Presidentes Chávez, Lula, Kirchner, Tabaré e Nicanor Duarte, do Paraguai, membro do Partido Colorado. Começou então o processo de aprovação do ingresso da Venezuela pelos Congressos dos quatro países, sob cerrada campanha da imprensa conservadora, agora preocupada com o "futuro" do Mercosul que, sob a influência de Chávez, poderia, segundo ela, "prejudicar" as negociações internacionais do bloco etc. Aquela mesma imprensa que rotineiramente criticava o Mercosul e que advogava a celebração de acordos de livre comércio com os Estados Unidos, com a União Européia etc, se possível até de forma bilateral, e que considerava a existência do Mercosul um entrave à plena inserção dos países do bloco na economia mundial, passou a se preocupar com a "sobrevivência" do bloco.



16. Aprovado pelos Congressos da Argentina, do Brasil, do Uruguai e da Venezuela, o ingresso da Venezuela passou a depender da aprovação do Senado paraguaio, dominado pelos partidos conservadores representantes das oligarquias rurais e do "comércio informal", que passou a exercer um poder de veto, influenciado em parte pela sua oposição permanente ao Presidente Fernando Lugo, contra quem tentou 23 processos de "impeachment" desde a sua posse em 2008.



17. O ingresso da Venezuela no Mercosul teria quatro consequências: dificultar a "remoção" do Presidente Chávez através de um golpe de Estado; impedir a eventual reincorporação da Venezuela e de seu enorme potencial econômico e energético à economia americana; fortalecer o Mercosul e torná-lo ainda mais atraente à adesão dos demais países da América do Sul; dificultar o projeto americano permanente de criação de uma área de livre comércio na América Latina, agora pela eventual "fusão" dos acordos bilaterais de comércio, de que o acordo da Aliança do Pacifico é um exemplo.



18. Assim, a recusa do Senado paraguaio em aprovar o ingresso da Venezuela no Mercosul tornou-se questão estratégica fundamental para a política norte americana na América do Sul.



19. Os líderes políticos do Partido Colorado, que esteve no poder no Paraguai durante sessenta anos, até a eleição de Lugo, e os do Partido Liberal, que participava do governo Lugo, certamente avaliaram que as sanções contra o Paraguai em decorrência do impedimento de Lugo, seriam principalmente políticas, e não econômicas, limitando-se a não poder o Paraguai participar de reuniões de Presidentes e de Ministros do bloco. Feita esta avaliação, desfecharam o golpe. Primeiro, o Partido Liberal deixou o governo e aliou-se aos Colorados e à União Nacional dos Cidadãos Éticos – UNACE e aprovaram, a toque de caixa, em uma sessão, uma resolução que consagrou um rito super-sumário de "impeachment". Assim, ignoraram o Artigo 17 da Constituição paraguaia que determina que "no processo penal, ou em qualquer outro do qual possa derivar pena ou sanção, toda pessoa tem direito a dispor das cópias, meios e prazos indispensáveis para apresentação de sua defesa, e a poder oferecer, praticar, controlar e impugnar provas", e o artigo 16 que afirma que o direito de defesa das pessoas é inviolável.



20. Em 2003, o processo de impedimento contra o Presidente Macchi, que não foi aprovado, levou cerca de três meses enquanto o processo contra Fernando Lugo foi iniciado e encerrado em cerca de 36 horas. O pedido de revisão de constitucionalidade apresentado pelo Presidente Lugo junto à Corte Suprema de Justiça do Paraguai sequer foi examinado, tendo sido rejeitado in limine.

21. O processo de impedimento do Presidente Fernando Lugo foi considerado golpe por todos os Estados da América do Sul e de acordo com o Compromisso Democrático do Mercosul o Paraguai foi suspenso da Unasur e do Mercosul, sem que os neogolpistas manifestassem qualquer consideração pelas gestões dos Chanceleres da UNASUR, que receberam, aliás, com arrogância.



22. Em consequência da suspensão paraguaia, foi possível e legal para os governos da Argentina, do Brasil e do Uruguai aprovarem o ingresso da Venezuela no Mercosul a partir de 31 de julho próximo. Acontecimento que nem os neogolpistas nem seus admiradores mais fervorosos – EUA, Espanha, Vaticano, Alemanha, os primeiros a reconhecer o governo ilegal de Franco – parecem ter previsto.



23. Diante desta evolução inesperada, toda a imprensa conservadora dos três países, e a do Paraguai, e os líderes e partidos conservadores da região, partiram em socorro dos neogolpistas com toda sorte de argumentos, proclamando a ilegalidade da suspensão do Paraguai (e, portanto, afirmando a legalidade do golpe) e a inclusão da Venezuela, já que a suspensão do Paraguai teria sido ilegal.



24. Agora, o Paraguai procura obter uma decisão do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul sobre a legalidade de sua suspensão do Mercosul enquanto, no Brasil, o líder do PSDB anuncia que recorrerá à justiça brasileira sobre a legalidade da suspensão do Paraguai e do ingresso da Venezuela.



25. A política externa norte-americana na América do Sul sofreu as consequências totalmente inesperadas da pressa dos neogolpistas paraguaios em assumir o poder, com tamanha voracidade que não podiam aguardar até abril de 2013, quando serão realizadas as eleições, e agora articula todos os seus aliados para fazer reverter a decisão de ingresso da Venezuela.

26. Na realidade, a questão do Paraguai é a questão da Venezuela, da disputa por influência econômica e política na América do Sul e de seu futuro como região soberana e desenvolvida.

 

*Samuel Pinheiro Guimarães Neto (Rio de Janeiro, 1939) é um diplomata brasileiro.Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1963, ingressou no Itamaraty nesse mesmo ano.1 É mestre em economia pela Boston University (1969).Foi secretário-geral das Relações Exteriores do Ministério das Relações Exteriores de 9 de janeiro de 2003 até 20 de outubro de 2009, tendo sucedido Osmar Vladimir Chohfi. Foi então empossado como ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE).3 Deixou o cargo em 31 de dezembro de 2010, no final do Governo Lula. Em 19 de janeiro de 2011, o embaixador foi designado Alto-Representante Geral do Mercosul tendo como funções a articulação política, formulação de propostas e representação das posições comuns do bloco 4 . Na função, Samuel Pinheiro coordenava a implementação das metas previstas no Plano de Ação para um Estatuto da Cidadania do Mercosul, aprovado em Foz do Iguaçu em 16 de dezembro de 2010. Renunciou ao cargo, contudo, em 28 de junho de 2012.Foi professor da Universidade de Brasília (UnB), entre 1977 e 1979. Atualmente, é professor do Instituto Rio Branco (IRBr/MRE), onde leciona a disciplina "Política Internacional e Política Externa Brasileira" aos diplomatas recém-ingressados na carreira.

 

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