40 Anos do Golpe no Chile
Interessante, antes e após a queda do
regime de Pinochet, ditadura cruel e implacável, foi a defesa, por certos
órgãos da mídia internacional e brasileira, do regime chileno como modelo para
o Brasil.
Fora do contexto mais amplo da política dos Estados Unidos para a
América Latina, é difícil compreender o golpe no Chile, 40 anos atrás.
Desde a Independência das colônias espanholas e portuguesa, no início
do século XIX, e da proclamação da Doutrina Monroe, em 1823, os Estados Unidos
consideram, e as potências europeias reconhecem (e muitos latino americanos
aceitam), que a América Latina deve estar necessariamente na sua área de
influência, isto é, sob a sua hegemonia.
Sobre a América Central e o Caribe os Estados Unidos estabeleceram o
seu domínio com a conquista pela força armada de mais da metade do território
do México, em 1848; com as seguidas intervenções e longas ocupações militares
na Nicarágua, no Haiti, na República Dominicana e outros países; com a
conquista de Cuba e de Porto Rico à Espanha; com a promoção da secessão do
Panamá, em 1903, e a construção do Canal, com sua Zona de ocupação militar
permanente, que perdurou até o ano 2000.
Estava criado o Mar Americano, do novo Povo Eleito.
Sobre a América do Sul, os Estados Unidos demorariam a estabelecer sua
hegemonia, em parte devido à maior dimensão dos Estados e em parte devido à
presença financeira, comercial e política inglesa até o fim da Primeira Guerra
Mundial.
Encontraram os americanos sempre, em suas investidas de articulação
política dos países da América do Sul, a oposição argentina, o VI Domínio da
Grã-Bretanha, e a cooperação brasileira, desde o Barão do Rio Branco, na
chamada Aliança não-escrita.
Após a penosa vitória sobre o Império Alemão, em 1918, conseguida,
aliás, somente graças à ajuda econômica e militar americana, começa a se esvair
a presença britânica na América do Sul e a se afirmar a influência política e
econômica dos Estados Unidos.
O Corolário à doutrina Monroe, de autoria de Teodoro Roosevelt,
belicoso tio de Franklin Delano, anunciado em 1904, em que os Estados Unidos se
arrogavam o direito de intervir em qualquer país do Continente que se revelasse
incapaz de manter a ordem (isto é, os interesses americanos) e o êxito em
incluir a Doutrina Monroe entre os princípios do tratado que criou a Liga das
Nações, em 1919, revelam claramente a visão americana da América Latina.
Devido à necessidade de aliciar o apoio dos Estados do Continente
diante da ameaça nazista no horizonte, os Estados Unidos abandonaram a política
do “big stick” e a diplomacia do dólar e lançaram a Política de Boa Vizinhança,
com Zé Carioca e tudo o mais, renunciando retoricamente à sua hegemonia, e
passaram a cultivar ativamente as elites e, muito em especial, os proprietários
dos meios de comunicação na América do Sul.
Após a Segunda Guerra, o extraordinário prestígio americano e sua
determinação de alinhar os regimes sul-americanos na luta contra o comunismo
levou, de um lado, à criação, em 1948, da Organização dos Estados Americanos, a
OEA, organismo regional previsto na Carta das Nações Unidas, e, de outro, à
defesa da livre iniciativa como dínamo do desenvolvimento latino-americano, com
atração do capital estrangeiro, o que significava capital americano, visto o
estado precaríssimo das economias europeias no pós-guerra.
Com a Revolução Cubana, em 1959, tudo muda. A invasão fracassada da
Baía dos Porcos (semelhante à operação que depôs Jocobo Arbenz, na Guatemala,
em 1954); a oposição americana, cada vez mais feroz, a Cuba; a arregimentação
dos regimes latino-americanos contra Cuba; a resistência de certos governos,
entre eles o do Chile, à determinação americana de intervir em Cuba; e a
suposta fragilidade dos governos civis latino-americanos diante da imaginada
influência cubana e comunista, transformariam a política de Boa Vizinhança na
política de instalação de governos militares, na aplicação da teoria da
modernização autoritária, da qual fazia parte a Aliança para o Progresso.
O primeiro regime militar a ser instalado na execução da nova política
foi o do Brasil, em 1964, em que houve ampla participação americana na
preparação do golpe, inclusive na escolha do novo presidente, o general Castelo
Branco, amigo do adido militar americano, Vernon Walters, segundo os documentos
revelados pelos Estados Unidos e mostrados no educativo filme, O Dia que Durou
21 Anos.
Era a política de mudança de governo executada pela CIA, de forma
encoberta (covert action) com ações diretas e de espionagem, hoje fartamente
documentada, e que nos dias atuais se faz de maneira absolutamente aberta, e
até com certa desfaçatez, com a participação de serviços de inteligência e de
ação americanos (special operation forces), de fundações públicas e privadas,
de ONGs. Tudo com a ajuda da tecnologia mais sofisticada de espionagem, da qual
não escapam os aliados (acólitos) mais confiáveis, como a Alemanha de Frau
Angela Merkel e a França de Monsieur François Hollande e aqueles Estados
amigos, como o México, do Señor Peña Nieto, tão longe de Deus, e o Brasil, da
Senhora Dilma Rousseff, surpresa e indignada.
O Chile era, em 1973, um caso de grande importância estratégica para a
política americana na América do Sul.
A ascensão democrática de Salvador Allende, sua disposição de implantar
um regime socialista democrático e nacional no Chile, sua política externa
independente, o receio de que viesse a estimular países latino-americanos a
procurarem novas estratégias de desenvolvimento e a se rebelarem contra as
ditaduras militares já implantadas no Brasil (1964) na Argentina (1966) no
Uruguai (1971), na Bolívia (1971) levaram à determinação americana de organizar
um golpe militar no Chile com a articulação financeira, política e midiática da
direita civil e militar do pais.
Os Estados Unidos articularam a ascensão ao poder de uma das ditaduras
mais cruéis, violentas e implacáveis da América Latina, comandada pelo General
Augusto Pinochet, pelo jornal El Mercúrio e pelo empresariado chileno.
A ditadura do General Augusto Pinochet reverteu a reforma agrária do
Governo Allende e implantou um programa neoliberal de reformas econômicas, sob
o comando dos Chicago Boys , um primeiro resultado do programa de formação de
pessoal nos Estados Unidos, financiado pela Aliança para o Progresso, fenômeno
que se repetiria mais tarde em outros países da América do Sul. A Operação
Condor - a articulação dos governos militares para perseguir, capturar e
executar as lideranças políticas de esquerda - teve como seu inspirador o
Chile, com a famosa DINA, Direção de Inteligência Nacional, cujo chefe era pago
pela CIA.
O apoio brasileiro ao golpe militar chileno foi imediato e prolongado
no tempo assim como o apoio norte americano e dos países europeus.
Com a crescente oposição americana aos regimes militares devido à sua
deriva para uma posição de certa independência em relação aos Estados Unidos,
com projetos em especial na área militar (tais como o projeto Condor de mísseis
na Argentina e os programas brasileiros nas áreas espacial, nuclear e de
informática), e com a nova política americana de direitos humanos, o regime de
Pinochet perderia o apoio americano, dos europeus e dos países da região, mas
somente viria a ser substituído em 1990.
Interessante, antes e após a queda do regime de Pinochet, ditadura
cruel e implacável, foi a defesa, por certos órgãos da mídia internacional e
brasileira, do regime chileno como modelo para o Brasil, e para outros países
latino-americanos, justificando o regime militar como forma necessária de
implantar as reformas econômicas.
Agora, redemocratizada a América do Sul, neoliberalizada pelos
programas de renegociação da dívida e pela aplicação das políticas, definidas
pela academia, Tesouro americano, FMI e Banco Mundial, resumidas no Consenso de
Washington, políticas implantadas por economistas treinados nas melhores
universidades americanas, futuros banqueiros e empresários, tudo parecia
tranquilo para o Império. Mas, como o Continente viu a emergência de movimentos
sociais e de Partidos políticos de diferentes matizes de esquerda, eleitos
democraticamente, presenciamos hoje operações políticas de regime nos diversos
países da América do Sul que não aderiram ao modelo americano de política
econômica, implantado pelos acordos de livre comercio que o Chile, já em 1994,
a Colômbia e o Peru celebraram com os Estados Unidos e que tem como princípios
a privatização, a desregulamentação, a abertura comercial e financeira, o
privilégio ao capital multinacional.
Hoje, os Governos da América do Sul podem realizar programas sociais
(no que terão o apoio da Igreja, antiga defensora dos regimes militares, hoje
convertida), reduzindo a pobreza e estabilizando sociedades em extremo
desiguais, podem construir sua infraestrutura a duras penas e podem ter
veleidades de política externa, até aceitas, pois agradam os movimentos de
esquerda, mas não podem, sob pena de se tornarem alvo de políticas ativas de
regime change, tomarem iniciativas concretas para promover políticas que
abalariam os pilares da dominação imperialista:
• democratizar a mídia
• fazer a auditoria da
dívida pública
• substituir o regime de
metas inflacionárias por um regime de metas de desenvolvimento e emprego
• disciplinar o capital
multinacional
• desenvolver sua
indústria de defesa
Os Estados que respeitarem estes limites, que não tentarem implementar
políticas com tais objetivos, continuarão a crescer a taxas muito baixas, cada
vez mais desiguais ainda que com menos pobres, sem autonomia tecnológica,
vulneráveis política e militarmente, seu Estado endividado, mas, para a
tranquilidade e satisfação de suas classes conservadoras (ainda que sempre
apreensivas) continuarão a ser parceiros confiáveis (reliable partners) dos
Estados Unidos e de sua hegemonia imperial.
* Diplomata, ex-ministro de Assuntos
Estratégicos e professor do Instituto Rio Branco, do Itamaraty
Fonte: CartaMaior, 11/09/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário