Libra: por que não a Petrobras?
Brasil é tecnicamente capaz de explorar maior reserva petrolífera do Ocidente. Por trás da licitação, pressões financeiras e lógica imediatista
23/09/2013
André Garcez Ghirardi
Em 18 de setembro, começou a tramitar no Senado Federal um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 203/2013) que suspende a realização do primeiro leilão para exploração de reservatórios de petróleo do pré-sal, previsto para 21 de outubro próximo. Formalmente, um decreto legislativo regula matérias de competência exclusiva do Congresso, entre elas sustar atos normativos da Presidente da República. No caso, o projeto pretende sustar as resoluções 4 e 5 de 2013 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), e um Edital de Licitação da Agência Nacional de Petróleo (ANP). Que está em jogo?
O leilão de Libra é diferente dos outros que já ocorreram, envolvendo o petróleo brasileiro –inclusive os realizados ou previstos, sem sobressaltos, em maio (11ª Rodada), ou para novembro (12ª Rodada). No leilão de Libra será oferecida pela primeira vez uma área do pré-sal, a formação geológica descoberta pela Petrobras em 2007, que contém a maior acumulação conhecida de petróleo no hemisfério ocidental. A oferta pública será feita sob uma nova modalidade de contrato: partilha de produção. É diferente da concessão, utilizada nos outros leilões.
Devido às características físicas dos reservatórios, a extração de toda essa riqueza apresenta risco muito baixo para a companhia vencedora. Nas descobertas já feitas pela Petrobras, no pré-sal da Bacia de Santos, houve sucesso em 10 dos 10 poços perfurados (100%); no pré-sal como um todo, houve sucesso em 41 de 47 poços perfurados (87%). É taxa altíssima, em comparação à média mundial da indústria, em torno de 20%.
Além disso, os volumes existentes são colossais: conforme consta da Justificativa do PDL 203, já se tem confirmada a existência de 60 bilhões de barris de petróleo nas áreas investigadas. O volume corresponde a quatro vezes as reservas provadas do Brasil, neste momento; seria suficiente para abastecer o país por mais de 80 anos, aos níveis atuais de consumo.
A riqueza a ser gerada é também gigantesca: conforme o PDL 203, o valor estimado do petróleo recuperável em Libra é de R$ 1,6 trilhões – ou seja, 64% do valor de mercado de todas as empresas listadas na Bolsa de Valores de São Paulo. Baixo risco, grandes volumes e alto valor: são esses os motivos pelos quais foi instituído o novo regime de contratação – a partilha de produção. Nele, a participação do Estado nas receitas é maior. Além disso, o petróleo produzido é de propriedade do Estado, que tem autoridade sobre a comercialização do que for produzido. No contrato de concessão, o petróleo era de propriedade da empresa concessionária, que tinha total liberdade para comercializar seu produto. É por isso que o leilão das áreas do pré-sal é diferente de todos os que ocorreram até agora.
Mas a razão central da controvérsia não é o tipo de contrato: é o leilão em si. O que se questiona é se deve ou não haver licitação. As normas legais abrem espaço para optar. A lei 12.351/2010, que rege exploração de petróleo pelo regime de partilha, diz, no caput do Artigo 8º: “A União, por intermédio do Ministério de Minas e Energia, celebrará os contratos de partilha de produção: I - diretamente com a Petrobras, dispensada a licitação; ou II - mediante licitação na modalidade leilão”.
Está explicitamente prevista, portanto, a possibilidade de contratação direta da Petrobras, tratada em seção específica (1). É neste último artigo que se apoia a justificativa do decreto legislativo 203/2013. Ele afirma que o bloco de Libra “é uma área de energia do mais alto interesse estratégico para o País, e, em conformidade com o art. 12 da Lei 12.351/10, a ANP deveria negociar um contrato de partilha com a Petrobras ... mantendo essa riqueza no País para o bem do povo brasileiro”. Não há, na lei vigente, nenhuma disposição que obrigue a oferta em leilão. O Brasil o fará se quiser.
Quem propôs o leilão e por que? A proposta é da competência do CNPE, órgão criado pela Lei do Petróleo (lei 9.478/97) e vinculado diretamente à presidência da República – que pode acatar ou rejeitar a sugestão do CNPE. No caso de Libra, o CNPE propôs e a Presidente da República acatou a realização do leilão. Por que não contratar diretamente a Petrobras? Pelo Artigo 12 citado acima, a contratação direta é feita segundo dois critérios: “preservação do interesse nacional” e “atendimento dos demais objetivos da política energética”.
O leilão de Libra preserva o “interesse nacional”? O conceito é obviamente amplo e admite muitas interpretações diversas. Contrariamente ao que prevaleceu no CNPE, a objeção apresentada no Senado considera que o interesse nacional estará mais bem atendido se a produção do petróleo de Libra for contratada diretamente com a Petrobras. Se tomarmos por referência a história da indústria do petróleo, o principal atributo do interesse nacional, neste caso, é a chamada “segurança energética”, entendida como a garantia de suprimento de petróleo para o funcionamento da economia doméstica em caso de restrição de abastecimento no mercado mundial. É esse o movente principal de todos os Estados nacionais com respeito a petróleo. Além desse argumento, por si decisivo, também poderiam ser citados a favor do entendimento do PDL 203 outros objetivos de política energética (e seus respectivos números de ordem, na Lei do Petróleo): promover o desenvolvimento (II), proteger os interesses do consumidor (III), promover a conservação de energia (IV), garantir o fornecimento de derivados de petróleo (V). Sob essa perspectiva histórica, meu entendimento é que o interesse nacional (segurança de abastecimento) estaria mais protegido se a exploração de Libra fosse contratada diretamente com a Petrobras.
A favor da proposta do CNPE poderia ser alegado principalmente o objetivo de atrair investimentos na produção de energia (X). É certo que, com a participação de diversas empresas, obteremos imediatamente um volume de investimento e produção maior do que seria possível apenas com a Petrobras. Não é tão certo, porém, que esse seja um objetivo importante para a exploração do pré-sal. A atração de investimento é importante nos empreendimentos de alto risco – que não é o caso do pré-sal. A licitação de Libra atrairá petroleiras, principalmente as internacionais de grande porte, que vêm no petróleo do mega-campo uma grande oportunidade de negócios de baixo risco e altamente rentáveis.
Mas elas agregarão relativamente pouco, em termos de compartilhamento de risco. A participação dessas empresas foi e continua sendo importante na exploração de áreas relativamente desconhecidas, nas quais ainda é alto o risco de insucesso. No caso do pré-sal, interessa atrair investimentos não das petroleiras, e sim das companhias com produtos de tecnologia de ponta, que prestam serviços de apoio à produção de petróleo. Trata-se de empresas que já estão se instalando no Brasil e que estarão presentes de toda maneira.
Além de contribuir pouco para reduzir o “risco” de Libra, existe a desconfiança de que a atração de grandes petroleiras estrangeiras para o leilão seja motivada por objetivos imediatos de política econômica, conflitantes com os objetivos de política de petróleo. Ao fazer a licitação, o governo federal terá uma receita imediata com o “bônus de assinatura” dos contratos, fixado em R$ 15 bilhões. É um desembolso imediato gigantesco, que a Petrobras não poderia suportar, conforme disse a presidente da companhia, Graça Foster. A dimensão fica mais clara se considerarmos que o lucro total da companhia, em todo o primeiro semestre de 2013, foi de R$ 14 bilhões o lucro da companhia. Graça afirmou, em audiência no Senado (19/9/2013), que é exclusivamente de ordem financeira a restrição que impede a Petrobras de empreender, sem sócios, o desenvolvimento de Libra. Esclareceu que a Petrobras teria plenas condições técnicas e operacionais para explorar 100% do campo. Mas admitiu que a realidade financeira atual não permite que a empresa banque sozinha o alto “bônus de assinatura” exigido pelo governo brasileiro.
É contundente a comparação feita na Justificativa do PDL 203/13: o valor que a empresa brasileira será obrigada a desembolsar para o governo, a título de bônus de assinatura pela participação de 30% na exploração do campo, é equivalente ao custo total de uma unidade flutuante completa, que poderia ser usada para produção. Coincidência ou não, o leilão de Libra, se ocorrer, virá num momento em que o governo federal se vê obrigado a contingenciar despesas para equilibrar seu orçamento, e em que a saída de divisas deprecia a moeda brasileira. Essa conjunção de fatos dá margem à suspeita de que a decisão de licitar Libra, em vez de contratar diretamente a Petrobras, possa ter sido determinada por objetivos de curto prazo na política fiscal e na política monetária. Se isso de fato aconteceu, haverá muito a lamentar.
Deixo para um próximo momento outras supostas irregularidades no edital de licitação e no modelo de contrato que, segundo o PLD 203/2013, justificariam o cancelamento da licitação prevista para 21 de outubro. Irregularidades tais como definir taxas variáveis de remuneração para a União, ou incluir entre os custos reembolsáveis, pelas empresas vencedoras, as despesas com bônus de assinatura. Apesar de serem também relevantes, esses pontos parecem menos importantes do ponto de vista estratégico. Mas vale debater, desde já, dois temas: a possível comunicação entre os campos de Libra e Franco e a espionagem norte-americana, que causou o cancelamento da visita oficial que a presidente da República faria aos EUA, dois dias após o leilão de Libra.
Entre os argumentos apresentados contra a realização do leilão, o PDL 203/2013 afirma que a Petrobras já teria pagado por Libra. Isto porque este campo manteria comunicação com o de Franco, adquirido pela empresa brasileira no processo de capitalização concluído em setembro de 2010. Não existe, até o momento, nenhum dado documentado que sustente essa afirmação. Embora sejam de fato adjacentes, os campos ocupam áreas muito extensas, cujas características geológicas não são ainda totalmente conhecidas. Dada sua proximidade dos campos, é até possível que se venha a descobrir alguma ligação entre eles mas, neste momento, isso é apenas uma hipótese. Nada mais.
Por fim, a argumentação do projeto legislativo traz, como agravante de todas as razões contra a realização do leilão, o fato da Petrobras ter sido mencionada como alvo, nas denúncias de espionagem do governo americano no Brasil. A presidente da Petrobras considera pouco provável que tenha ocorrido qualquer vazamento significativo de informação técnica sensível. Graça Foster avalia que a extensão e complexidade dos processos envolvidos no trabalho da companhia tornam praticamente impossível que uma atividade de espionagem se aproprie do conhecimento da Petrobras sobre Libra (Folha 19/9/2013). Mas, mesmo que não tenha ocorrido dano real, houve sim dano simbólico. Será inevitável o questionamento do resultado em 21 de outubro, caso alguma empresa norte-americana faça parte do grupo vencedor.
Em 18 de setembro, a Presidência do Senado encaminhou o PDL 203/2013 à Comissão de Constituição e Justiça. O projeto deverá também ser examinado pela Comissão de Assuntos Econômicos e pela Comissão de Assuntos de Infraestrutura, antes de ir a plenário para votação. É impossível prever se chegará a voto antes do leilão e, caso chegue, se será ou não aprovado pelo Congresso. A pouco mais de um mês da data prevista, é ainda cedo para saber se de fato acontecerá a licitação Libra.
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1. Seção V, Artigo 12º: “O CNPE proporá ao Presidente da República os casos em que, visando à preservação do interesse nacional e ao atendimento dos demais objetivos da política energética, a Petrobras será contratada diretamente pela União para a exploração e produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos sob o regime de partilha de produção”
André Garcez Ghirardi é professor licenciado da UFBa.
Publicado originalmente no blog Outras Palavras.
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