CONTEXTUALIZAÇÃO
A Presidenta Dilma Roussef tem sido alvo de ataques
sistemáticos provenientes de políticos da oposição, da grande mídia e de
setores conservadores da sociedade desde o anúncio oficial de sua vitória
no segundo turno das eleições de 2014. No primeiro momento, antes
mesmo que a Presidenta fosse empossada no cargo, a oposição dá início a
uma campanha destinada a espalhar a descrença quanto à confiabilidade da
apuração dos votos e à regularidade do sistema eleitoral informatizado. Em
providência inédita desde a implantação do voto eletrônico (1996), o
Tribunal Superior Eleitoral autoriza a auditoria reclamada pelo candidato
derrotado, ainda que sem demonstração de indício de fraude. Fracassada
essa primeira tentativa de inviabilizar o Governo eleito, o candidato da
oposição, inconformado com a derrota, conclama a população brasileira a
sair às ruas para pedir a renúncia da Presidenta, acusada de abuso das
contas públicas para ganhar as eleições. Os principais movimentos
organizadores dos protestos, autodefinidos “apartidários e espontâneos”, de
orientação política conservadora e financiados por grandes corporações
nacionais e estrangeiras defensoras do livre-mercado, querem o
impeachment. No começo do ano de 2015, a coligação do candidato
derrotado pede à Justiça Eleitoral a impugnação do mandato da Presidenta
e do Vice, alegando abuso de poder político e econômico durante a
campanha (ao final do mesmo ano, a ação é aceita pelo Tribunal Superior
Eleitoral – até agora não julgada).
No decorrer do ano de 2015, os ataques da oposição se
intensificam. É o momento em que a Petrobras torna-se alvo da maior
operação contra a corrupção já realizada no País – o que se fez possível
exatamente em razão das medidas de controle e transparência aprovadas ao
longo dos anos de governo do Partido dos Trabalhadores. A grande mídia
privada promove as ações do juiz Sérgio Moro – encarregado dos processos
instaurados a partir das investigações policiais – como um espetáculo de
massas. Isso se dá por meio de sistemática cobertura seletiva e parcial em
relação aos fatos, acompanhada de comentários depreciativos em relação
ao governo e estigmatizantes em relação aos seus apoiadores. Grandes
grupos de comunicação se dedicam claramente a descontruir um dos lados
da disputa política e a fortalecer o outro, fomentando a ideia de que o
Partido dos Trabalhadores é o responsável pela corrupção estrutural no
Brasil. Reduzem a dimensão das manifestações populares em favor do
governo e ocultam as nuances e a complexidade do momento político,
colocando-se entre os protagonistas da campanha “Fora, Dilma!”.
Ainda em 2015, o Presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha, investigado por envolvimento no esquema de corrupção da
Petrobras e réu em ação penal por recebimento de propina em conta na
Suíça, recebe pedido de impeachment fundado 1) nas chamadas “pedaladas
fiscais” (2015), apresentadas como operações de crédito entre a União e os
bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES), e
2) na edição de seis decretos não numerados responsáveis pela abertura de
créditos suplementares, sem autorização legislativa. Nenhuma das duas
ações, todavia, contempla a exigência constitucional de ofensa à lei
orçamentária a configurar crime de responsabilidade, única situação em
que o ordenamento jurídico brasileiro autoriza a tramitação do processo de
impeachment.
Eduardo Cunha, ainda não afastado pela Comissão de Ética da
Câmara dos Deputados, segue intocado no cargo de Presidente daquela
Casa. Nessa condição, com o apoio da oposição derrotada nas urnas em
2014, está prestes a conduzir a primeira e mais importante fase do processo
de impeachment. Do outro lado, sujeita à cassação, sem qualquer indício,
investigação ou acusação de sonegação de imposto ou de informações de
bens e valores à Receita Federal, encontra-se a Presidenta Dilma Roussef,
que não tem conta no exterior, que não figura em qualquer lista de políticos
envolvidos com a corrupção da Petrobras, que não foi apontada em
qualquer delação premiada por recebimento ou oferecimento de propina,
que não figura como acusada ou investigada em procedimento policial ou
criminal. De um lado, o princípio da presunção de inocência; do outro lado,
a presunção da culpa como regra política do momento. A agravar, a
Comissão Especial do processo de impeachment na Câmara vê-se formada,
em sua maioria, por políticos que, comprovadamente, receberam doações
de campanha por parte de empresas que figuram na investigação dos
desvios na Petrobras. Membros dessa Comissão Especial são políticos
investigados nessa mesma operação policial.
O Brasil vive momento particular de grande apreensão e
sofrimento. Nas ruas e redes sociais, ódios são destilados àqueles que
apelam pela defesa da Democracia ou do Direito. Cidadãos comuns ou
figuras públicas que não participam do “falso consenso” produzido pela
oposição tornaram-se alvo de ataques pessoas estimulados pela mídia
conservadora e dominante, claramente interessada na reversão das urnas. A
Presidenta Dilma é ofendida, inclusive na sua condição de mulher, por
meio de insultos machistas e piadas misóginas. Políticos aliados, por
interesses pessoais ou eleitoreiros, afastam-se da sustentação política do
governo. Desde as eleições, a própria governabilidade vem sendo
ameaçada, inúmeras ações são inviabilizadas pela maioria parlamentar,
para fomentar a crise econômica, social e política que autoriza o discurso
golpista. O Direito tem sido, por muitos juristas ou agentes do sistema de
justiça, usado como instrumento político de reversão do resultado das
urnas, em flagrante abandono de princípios elementares assegurados em
diversas instâncias judiciais.
Nesse cenário, é altamente preocupante a perspectiva de
rompimento da ordem democrática e a violação da soberania popular pela
via do abuso de poder. Ou, em outras palavras, pelo exercício de um poder
que não se submete ao Direito. A ausência de fundamento fático válido
para motivação do impeachment, a utilização de juízos políticos, vagos e
imprecisos, e o descumprimento do princípio constitucional da legalidade
são o instrumental caracterizador do que se pode chamar de “golpe
legislativo”, “golpe branco” ou “golpe encoberto” (a deposição de
Fernando Lugo, Presidente do Paraguai, em 2012, embora não seja caso
isolado na América Latina, é o que mais bem ilustra a aplicação desse juízo
político, para deposição do Chefe do Poder Executivo no sistema
presidencial: “mau desempenho político”). Contudo, no regime
presidencialista, o julgamento acerca do desempenho político do
mandatário é do cidadão, por meio do voto em eleições regulares e diretas,
jamais do Legislativo, sob pena de quebra do Estado Democrático de
A NOVA CAMPANHA DA LEGALIDADE: MANIFESTO
DE JURISTAS EM DEFESA DA CONSTITUIÇÃO E DO
ESTADO DE DIREITO
À Exma. Senhora Presidenta da República, aos Exmos.
Senhores Senadores da República, aos Exmos. Senhores Deputados
Federais, aos Exmos. Senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao
Povo Brasileiro
Defesa da Constituição e do Estado de Direito
A Nova Campanha da Legalidade: Manifesto de Juristas em
Nós, abaixo assinados, juristas, advogadas e advogados,
professores e professoras de Direito de todo o país, vimos por meio desta
1 – Afirmar o Estado Democrático e Constitucional de Direito,
que deve estar submetido às leis e se realizar através da lei, não admitindo
violações de garantias fundamentais estabelecidas nem a instalação de um
Estado de exceção por meio de um processo de impeachment sem
fundamento jurídico;
2 – Defender a imparcialidade da Justiça, que deve operar
segundo os ditames da Constituição e do ordenamento jurídico, não
admitindo a sua partidarização, seu funcionamento seletivo e perseguições
políticas de qualquer natureza;
3 – Sustentar a repressão à corrupção, que deve se realizar de
forma ética, republicana e transparente, por meios pertinentes, sem que
para isto haja qualquer restrição ou flexibilização de direitos ou mesmo a
utilização irresponsável de meios de comunicação para a sustentação
artificiosa e inidônea de procedimentos judiciais. À eliminação da
corrupção não pode corromper os direitos;
4 – Dizer que lutaremos para preservar a estabilidade e o
respeito às instituições políticas o que, especialmente num momento de
crise, vem a ser a posição mais prudente, no sentido de se fazer respeitar a
vontade do povo, manifesta através dos meios definidos pela Constituição,
por meio de eleições diretas regulares e periódicas.
O Brasil vive, no atual momento, grave crise na sua recente
democracia. Durante os anos de ditadura, vários cidadãos sofreram e
sacrificaram-se, para que estejamos hoje em pleno exercício dos nossos
A corrupção não é fato novo, mas se arrasta desde muito
tempo no Brasil, e deve ser fortemente combatida. Mas, a fim de eliminar a
corrupção, não podemos, sob pena de retrocedermos ao patamar das graves
violações aos direitos dos cidadãos brasileiros, havidas durante a ditadura
militar implantada pelo Golpe de 64, permitir: a relativização da presunção
de inocência; expedientes arbitrários como condução coercitiva de
investigados ou pedidos de prisão preventiva, sem o devido embasamento
legal; utilização da prisão temporária, igualmente quando ausentes os
pressupostos previstos na legislação, com o fim de obter delações
premiadas; interceptações telefônicas ilegais que violam as prerrogativas
dos advogados e até mesmo da Presidência da República. Ademais, não
podemos permitir o comprometimento dos princípios democráticos que
regulam o processo, com as operações midiáticas e vazamentos seletivos,
que visam destruir reputações e interferir no debate político, além de
tensionar a opinião pública para apoiar tais operações.
Não podemos aceitar a relativização do princípio democrático
por meio de um procedimento de impeachment sem fundamento jurídico. A
Constituição exige o cometimento, pelo Presidente, de crime de
responsabilidade, a ser previamente definido em lei ordinária. Não se trata,
portanto, de pura e simples decisão política ligada à satisfação ou
insatisfação com a gestão. O voto popular escolhe o Presidente para um
mandato de quatro anos, findo o qual será avaliado. Ainda que se afirme ser
o impeachment uma decisão política, isso não afasta sua juridicidade, ou
seja, seu caráter de decisão jurídica obediente à Constituição. A aprovação
de leis ou a edição de decretos também são decisões políticas, mas nem por
isso podem contrariar a Constituição. Afirmar que o julgamento é político
não pode significar que a Constituição possa ser descumprida.
É requisito de constitucionalidade para o impeachment a prova
da existência de crime de responsabilidade. Mesmo por uma análise
bastante legalista do processo, a conclusão de que não há crime de
responsabilidade se impõe.
A democracia permite a divergência sobre a correção das
decisões políticas, mas a decisão última sobre os erros e acertos, em um
regime democrático, repousa no voto popular. Mesmo aos parlamentares
eleitos pelo povo não é dado pela Constituição o poder de excluir o chefe
do Executivo, também eleito pelo sufrágio, com base em dissensos
políticos, mas apenas na hipótese estrita e excepcional do crime de
responsabilidade.
Nesse sentido, queremos afirmar que a luta para preservar a
estabilidade e o respeito às instituições políticas passa pelo respeito ao
mandato popular adquirido por meio do voto em eleições regulares.
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