Dilma, para
devolver ao povo o que é do povo: a escolha do futuro
A
resistência ao golpe precisa construir uma pauta de Nação que agregue à luta
pela legalidade uma dimensão mudancista.
Saul Leblon
Qualquer observador realista sabe que a
ruptura representada por um golpe militar ou constitucional abre trincas
duradouras na vida da sociedade.
Atravessado o Rubicão, dificilmente se
retorna ao ponto original, ainda que os golpistas sejam derrotados.
O golpe de 12 de maio evidenciou uma
beligerância conservadora que soube construir as condições necessárias ao
assalto ao poder, num esforço de convencimento, e autoconvencimento, ao longo
de quatro derrotas em escrutínios presidenciais.
Estamos falando de um jogo de tentativa
e erro de desestabilização de 14 anos.
Talvez até mais antigo.
O economista Eduardo Fagnani, da Unicamp
acredita que ‘as elites financeiras jamais aceitaram que o movimento social dos
anos 70 e 80 introduzisse direitos sociais na Constituição de 1988.
‘Esses direitos capturam cerca de 10% do
PIB’, estima Fagnani.
O golpe incluiria, assim, interesses
longamente sedimentados na busca da oportunidade para arrombar a Carta Cidadã e
retirar dali o que acreditam lhes pertencer.
‘É uma disputa por recursos públicos: o
capital quer de volta os 10% do PIB da seguridade social’, reafirma o professor
da Unicamp.
Talvez seja até mais que isso também.
Uma ação feroz se pôs em marcha nos
últimos anos diante da encruzilhada do desenvolvimento brasileiro.
Insista-se nesse divisor: um ciclo de
crescimento se esgotou, antecipado pelos esforços para mitigar o impacto da
crise mundial no país; outro precisa ser pactuado.
A sociedade terá que fazer escolhas
nessa travessia.
A opção por maior igualdade, direitos e
cidadania exigirá deslocar o eixo fiscal na direção de maior justiça
tributária.
A riqueza financeira terá que pagar
mais.
Hoje ela paga pouco em proporção à sua
fatia no bolo –dividendos são isentos; bancos recolhem menos que assalariados;
o capital estrangeiro não é tributado quando investe em títulos públicos para
lucrar com a arbitragem global de juros.Etc.
O golpe é a resposta de uma elite que
optou por jogar a sociedade nas mãos da escória política com a tarefa de tornar
a inclusão social tão rígida quanto o eletrocardiograma de um morto.
Os que hoje se avocam em depuradores da Nação
entendem desse açougue.
Eles sangraram Getúlio em 54; sangraram
a reforma agrária em 1964; sangraram a Petrobras em 1997; sangraram a Vale do
Rio Doce; sangraram o salário mínimo por décadas; sangraram o BNDES; sangraram
a Lei de Remessa de Lucros; sangraram a CPMF em 2006; sangrariam Lula em 2005
(se ele não reagisse)...
Sangram até hoje a Constituição de 1988
no capítulo das comunicações - artigo 220, parágrafo 5º, onde se diz que os
meios de informação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio
ou oligopólio.
Agora prometem travar as mandíbulas na
jugular do povo brasileiro instaurando a longa noite da supressão dos direitos
sociais.
‘Querem 10% do PIB’, como diz o
professor da Unicamp; talvez para reforçar os 9% já alocados ao pagamento de
juros aos rentistas da dívida pública.
Essa é a mensagem contida no enunciado
geral dos interventores da área econômica.
Não há qualquer disposição de repactuar
o destino da sociedade e a destinação do seu desenvolvimento.
O mercado decide.
E essa supremacia, no caso do SUS e das aposentadorias, por exemplo,
resume a violência antissocial nisso que se instalou no poder em 12 de maio.
O conjunto, se subsistir, dificilmente
poderá se dissociar de uma espiral repressiva como a que empurrou 1964 para
1969.
Consolidada a quaresma, as bases do
desenvolvimento estarão comprometidas por anos, possivelmente, décadas. Não se
falade crescimento, mas da destinação da riqueza.
A resistência ao golpe, porém, não saiu
do sofá ou das periferias apenas para devolver a Nação ao lugar em que estava
antes de ser abalroada pelos guardiões do mercado.
Ao contrário.
A demanda que está no ar requer profunda
revisão na política econômica adotada em janeiro de 2015, quando o governo
apostou sua cabeça na aliança com personagens, setores e forças que a cortariam
sem pudor 16 meses depois.
Entre os algozes figuram o
vice-presidente da República, o presidente da Câmara, o Supremo Tribunal
Federal, a mídia e o Exército, ademais do empresariado engasgado em subsídios
oficiais.
Esse retrospecto não endossa projetos
exclamativos que descartam a negociação (entre interesses contrapostos, por
definição) na longa marcha para se construir uma verdadeira democracia social
no país.
Ao contrário.
É a capacidade de liderar essa travessia
que está em jogo nos dias que correm.
Ela inclui requisitos não contemplados
anteriormente.
O economista IanisVaroufakis,
ex-ministro das Finanças da Grécia, que experimentou na carne as feridas de uma
negociação com o capital globalizado, extraiu desse convívio uma lição oportuna
para o Brasil.
‘Só tem algo a negociar quem está
preparado para romper’.
O PT e o governo legítimo da Nação não
se prepararam. E por essa capacitação não se entenda um curso de retórica.
Desdenhou-se do principal: ferramentas
organizativas e de comunicação indispensáveis à prerrogativa da sociedade sobre
o seu futuroe o seu desenvolvimento.
O preço da imprevidência está sendo
cobrado em espécie, em libras peso de carne do próprio pescoço, mas também da
identidade e da alma.
Imaginar que é possível obter
indulgência dos capitais, para ‘sanar’ as inconsistências de um ciclo de
desenvolvimento em direção a outro, é quase acreditar na mão invisível dos
mercados.
A ambiguidade atordoa e joga a sociedade
nas cordas, de onde não consegue mais se erguer. Quando o faz, não sabe para
onde ir, recaindo em prostração.
Foi o que ocorreu após a guinada
ortodoxa do governo reeleito em 2014.
Lição inestimável: o apelo às ruas agora
não pode se tornar um adereço ornamental como ocorreu nas campanhas
presidenciais depois de 2002.
Evitá-lo exige que a resistência inicial
quase espontânea ao golpe dê um salto capaz de formular uma pauta de Nação.
Outro nome para isso seria agenda de
repactuação do desenvolvimento.
É preciso esboçá-la desde já para
aglutinar a forças capazes de reverter golpe.
Uma nova eleição presidencial, associada
a uma Constituinte específica para a reforma política, pode ser uma versão
institucional desse mutirão.
Mas é apenas uma forma - insuficiente se
não se fizer acompanhar de alternativas substantivas à encruzilhada atual.
O pós-golpe, repita-se, jamais será o
retorno ao país anterior a 12 de maio.
Aquele Brasil não existe mais.
Embora os desafios sejam
qualitativamente os mesmos debatidos na eleição de 2014, a intensidade mudou a
qualidade.
Para se retomar o crescimento é necessária
uma reordenação negociada do poder e da economia, que magnetize a Nação
adicionando uma dimensão mudancista à luta contra o golpe.
Não faz parte dessa pavimentação iludir a sociedade com a possibilidade de
amplos consensos entre interesses antagônicos, nem de hegemonias retóricas
desprovidas de contrapartida na correlação de forças.
Faz parte da resistência resgatar o
papel pedagógico da democracia na mediação dos confrontos do desenvolvimento.
Apesar do alarido massacrante do jogral
conservador por soluções ‘definitivas’ para a disputa pela riqueza –agora
deslocada para a esfera fiscal- ainda é disso que se trata.
De metas, salvaguardas e concessões
politicamente negociadas em grandes câmaras setoriais.
De compromissos para preços e salários;
para o emprego e o investimento.
De metas para o juro e o equilíbrio
fiscal; para a produtividade e o PIB.
De acordos e parâmetros de curto, médio
e longo prazo para a retomada do investimento em obras de infraestrutura.
Enfim, da socialização de macrodecisões
entre o capital, o Estado e a sociedade, de modo a assegurar um fôlego
persistente à caldeira do investimento, da produtividade, da renda, do emprego,
dos direitos e da cidadania plena.
Sobretudo, é preciso dizer à rua que não
há alternativa para o país na ‘ciência econômica’ vendida pelos charlatões do
mercado.
A economia brasileira não tem problemas
insolúveis –exceto se quiser ‘sanear’ os conflitos do desenvolvimento com
calculadoras, à margem da democracia.
O país dispõe de alavancas potenciais
como o mercado interno poderoso, a força do Pré-sal, o agronegócio, uma larga fronteira
de infraestrutura por construir e o câmbio agora estimulante para rejuvenescer
o investimento fabril.
Falta dar a isso um arcabouço de
reordenação pactuada, alternativa à receita golpista.
Uma parte da resposta está nas ruas.
A resistência democrática em todo o país
é um bem-vindo desmentido à tese de que o ‘ciclo lulopetista’ – segundo este
ponto de vista, um misto de clientelismo e conciliação- teria corroído de forma
letal a capacidade criativa da sociedade em defesa de seus direitos.
Mas é exatamente esse desmentido que
realça o flanco do qual muitos já se ressentiam, desde a crise do mensalão, em
2005/06
Carece a Nação de uma agenda debatida e
pactuada para transformar os avanços dos últimos anos no chão firme de um novo
estirão de crescimento.
Preencher essa lacuna é o cerne da luta
pela legalidade.
É o que dará sentido renovado à volta da
legítima detentora da cadeira presidencial usurpada no Palácio do Planalto
Não como a condutora de uma viagem ao
passado.
Mas como a portadora de um mandato
renovado contra o arrocho.
E, sobretudo, como a fiadora da ponte
que devolverá ao povo o que é do povo: as escolhas do futuro brasileiro.
www.cartamaior.com.br
07/06/2016
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