CARTA DE LULA AOS LÍDERES MUNDIAIS
São Paulo, 25 de agosto de
2016.
Caro Presidente,
Dirijo-me ao senhor para informá-lo da
gravíssima situação política e institucional que vive o Brasil, país que tive a
honra de presidir de 2003 a 2010.
Tomo a liberdade de escrever-lhe em nome
do respeito e da amizade que existe entre nós, pelos quais sou muito grato.
Orgulho-me de ter conseguido, apesar da
complexidade inerente às grandes democracias e dos problemas crônicos do
Brasil, unir o meu país em torno de um projeto de desenvolvimento econômico com
inclusão social, que nos fez dar um verdadeiro salto histórico em termos de
crescimento produtivo, geração de empregos, distribuição de renda, combate à
pobreza e ampliação das oportunidades educacionais.
Por
meios pacíficos e democráticos, fomos capazes de tirar o Brasil do mapa da fome
no mundo elaborado pela ONU, libertamos da miséria mais de 35 milhões de
pessoas, que viviam em condições desumanas, e elevamos outras 40 milhões a
patamares médios de renda e consumo, no maior processo de mobilidade social da
nossa história.
Em 2010, como se sabe, fui sucedido pela
Presidenta Dilma Rousseff, também do Partido dos Trabalhadores, que havia
dedicado sua vida à luta contra a ditadura militar, pela democracia e pelos direitos da população pobre do nosso
país.
Mesmo enfrentando um cenário econômico
internacional adverso, a Presidenta Dilma conseguiu manter o país no rumo do
desenvolvimento e consolidar os programas sociais emancipadores, prosseguindo
na redução das enormes desigualdades materiais e culturais ainda existentes na
sociedade brasileira.
Em 2014, a Presidenta Dilma foi reeleita
com mais de 54 milhões de votos, derrotando uma poderosa coalizão de partidos,
empresas e meios de comunicação que pregava o retrocesso histórico do país, com
a redução de importantes programas de inclusão social, a supressão de direitos
básicos das classes populares e a alienação do patrimônio público construído
com o sacrifício de inúmeras gerações de brasileiros.
A coalizão adversária, vencida nas urnas
em 2002, 2006, 2010 e 2014, não se conformou com a derrota e desde a
proclamação do resultado procurou impugná-lo por todos os meios legais, sem
alcançar nenhum êxito.
Esgotados os recursos legais, no
entanto, em vez de acatar a decisão soberana do eleitorado, retomando o seu
legítimo trabalho de oposição e preparando-se para disputar o próximo pleito
presidencial – como o PT sempre fez nas eleições que perdeu –, os partidos
derrotados e os grandes grupos de mídia insurgiram-se contra as próprias regras
do regime democrático, passando a sabotar o governo e a conspirar para
apossar-se do poder por meios ilegítimos.
Ao longo de todo o ano de 2015,
torpedearam de modo sistemático os esforços do governo para redefinir a
política econômica no sentido de resistir ao crescente impacto da crise
internacional e recuperar o crescimento sustentável. Criaram um clima
artificial de impasse político e institucional, com efeitos profundamente
danosos sobre a vida do país, contaminando o ambiente de negócios, deixando
inseguros produtores e consumidores, constrangendo as decisões de investimento.
No afã de inviabilizar o governo, apostaram contra o país, chegando até mesmo a
aprovar no parlamento um conjunto de medidas perdulárias e irresponsáveis
destinadas a comprometer a estabilidade fiscal.
E, finalmente, não hesitaram em
deflagrar um processo de impeachment inconstitucional e completamente
arbitrário contra a Presidenta da República.
Dilma Rousseff é uma mulher íntegra,
cuja honestidade pessoal e pública é reconhecida até pelos seus adversários
mais ferrenhos. Nunca foi nem está sendo acusada de nenhum ato de corrupção.
Nada em sua ação governamental pode justificar, sequer remotamente, um processo
de cassação do mandato que o povo brasileiro livremente lhe conferiu.
A Constituição brasileira é categórica a
esse respeito: sem a existência de crime de responsabilidade, não pode haver
impeachment. E não há nenhum – absolutamente nenhum – ato da Presidenta Dilma
que possa ser caracterizado como crime de responsabilidade. Os procedimentos
contábeis utilizados como pretexto para a destituição da Presidenta são
idênticos aos adotados por todos os governos anteriores e pelo próprio
vice-presidente Michel Temer nas ocasiões em que este substituiu a Presidenta
por razão de viagem. E nunca foram motivo de punição aos governantes, muito
menos justificativa para derrubá-los. Trata-se, portanto, de um processo
estritamente político, o que fere frontalmente a Constituição e as regras do
sistema presidencialista, no qual é o povo que escolhe diretamente o Chefe de
Estado e de Governo a cada quatro anos.
As forças conservadoras querem obter por
meios escusos aquilo que não conseguiram democraticamente: impedir a
continuidade e o avanço do projeto de desenvolvimento e inclusão social
liderado pelo PT, impondo ao país o programa político e econômico derrotado nas
urnas. Querem a todo custo comandar o Estado para apossar-se do patrimônio
nacional – como já começa a acontecer com as reservas petrolíferas em águas
profundas – e desmontar a rede
de proteção aos trabalhadores e aos pobres que foi ampliada e consolidada nos últimos treze anos.
As mesmas forças que tentam
arbitrariamente derrubar a Presidenta Dilma, e implantar a sua agenda
antipopular, querem também criminalizar os movimentos sociais e, sobretudo, um
dos maiores partidos de esquerda democrática da América Latina, que é o PT. E
não se trata de mera retórica autoritária: o PSDB, principal partido de
oposição, já apresentou formalmente uma proposta de cancelamento do registro do
PT, com vistas a proibi-lo de existir. Temem que, em 2018, em eleições livres,
o povo brasileiro volte a me eleger Presidente da República, para resgatar o
projeto democrático e popular.
A luta contra a corrupção, que é uma
mazela secular do Brasil e de tantos outros países, e deve ser combatida de
modo permanente por todos os governos, foi distorcida e transformada em uma
implacável perseguição midiática e política ao PT. Denúncias contra líderes de partidos
conservadores são sistematicamente abafadas e arquivadas enquanto acusações
semelhantes a qualquer personalidade do PT tornam-se de imediato, à revelia do
devido processo legal, condenação irrevogável na maior parte dos meios de
comunicação.
A verdade é que o combate à corrupção no
Brasil passou a ser muito mais vigoroso e eficaz a partir dos governos do PT,
com o respeito, que antes não existia, à plena autonomia do Ministério Público
e da Polícia Federal no exercício de suas atribuições; a ampliação do
orçamento, do quadro de funcionários e a modernização tecnológica dessas
instituições e dos demais órgãos de controle; a nova lei de acesso à informação
e a divulgação das contas públicas na internet; os acordos de cooperação
internacional no enfrentamento da corrupção; e o estabelecimento de punições
muito mais rigorosas para corruptos e membros de organizações criminosas.
Todos nós, democratas, interessados no
aperfeiçoamento institucional do país, apoiamos o combate à corrupção. As
pessoas que comprovadamente tiverem cometido crimes devem pagar por eles,
dentro da lei. Mas os juízes, promotores e policiais também estão obrigados a
cumprir a lei e não podem abusar do seu poder contra os direitos dos cidadãos.
As pessoas não podem ser publicamente condenadas (e terem a sua reputação
destruída) antes da conclusão do devido processo legal, e menos ainda por meio
do vazamento deliberado de informações praticado pelas próprias autoridades com
fins políticos. Uma justiça discriminatória e partidarizada será fatalmente uma
justiça injusta.
Eu, pessoalmente, não temo nenhuma
investigação. Desde que iniciei a minha trajetória política e, particularmente
nos últimos dois anos, tive toda a minha vida pública e familiar devassada –
viagens, telefonemas, sigilo fiscal e bancário –, fui alvo de todo o tipo de
insinuações, mentiras e ataques publicados como verdade absoluta pela grande
mídia, sem que tenha sido encontrado qualquer desvio na minha conduta ou prova
de envolvimento em qualquer ato irregular.
Se a justiça for imparcial, as acusações contra mim jamais prosperarão.
O que não posso aceitar são os atos de flagrante ilegalidade e parcialidade
praticados contra mim e meus familiares por autoridades policiais e
judiciárias. É inadmissível a divulgação na TV de conversas telefônicas sem
nenhum conteúdo político, a coação de presos para fazerem denúncias mentirosas
contra mim em troca da liberdade, ou a condução forçada, completamente ilegal,
ocorrida em março último, para prestar depoimento do qual eu sequer tinha sido
notificado.
Por isso, meus advogados entraram com
uma representação no Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, relatando os
abusos cometidos por algumas autoridades judiciais que querem a todo custo me
eliminar da vida política do país.
A minha trajetória de mais de 40 anos de
militância democrática, que começou na resistência sindical durante os anos
sombrios da ditadura, prosseguiu no esforço cotidiano de conscientizar e
organizar a sociedade brasileira pela base, até ser eleito como o primeiro
Presidente da República de origem operária, é o meu maior patrimônio e a ele
ninguém me fará renunciar. Os vínculos de fraternidade que construí com os
brasileiros e brasileiras na cidade e no campo, nas favelas e nas fábricas, nas
igrejas, nas escolas e universidades, e que levaram a maioria do nosso povo a
apoiar o vitorioso projeto de inclusão social e promoção da dignidade humana,
não serão cancelados por nenhum tipo de arbitrariedade. Da mesma forma, nada me
fará abrir mão, como sabem as lideranças de todo o mundo com as quais trabalhei
em harmonia e estreita cooperação — antes, durante e depois dos meus mandatos
presidenciais – do compromisso de vida com a construção de um mundo sem
guerras, sem fome, com mais prosperidade e justiça para todos.
Agradeço desde já a generosa atenção que
o senhor dedicou a esta mensagem e coloco-me à disposição, como sempre estive,
para qualquer esclarecimento ou reflexão de interesse comum.
Reiterando o meu respeito e amizade,
despeço-me fraternalmente.
Luiz
Inácio Lula da Silva
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