terça-feira, 8 de novembro de 2016

Fechamento da CGFOME sinaliza que a cooperação Sul-Sul já não é mais uma prioridade.

07/11/2016 18:29 - Copyleft

Fechamento da CGFOME sinaliza que a cooperação Sul-Sul já não é mais uma prioridade.


Juliano Fiori - opendemocracy.net
reprodução
Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro de 2003, o Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva descreveu a erradicação da fome como uma "mudança civilizadora", deixando claro para seus pares que, enquanto deveria ser uma prioridade doméstica para o Partido dos Trabalhadores (PT), seria também um "imperativo moral e político". Agora objeto de denúncias controversas de corrupção, Lula deixou o cargo no final de 2010 com um índice de aprovação, inédito, de 83 por cento. Entre as principais razões da satisfação popular estavam o êxito em reduzir a fome dos brasileiros pobres e a expansão da influência brasileira no exterior.
 
A Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome (CGFOME), do Itamaraty, foi estabelecida em 2004 para coordenar esses dois de políticas públicas. Com base na experiência brasileira, a CGFOME exportou metodologias testadas e expertise de tecnologias sociais em erradicação da fome, posicionando o Brasil como líder mundial em segurança alimentar e nutricional. Nos últimos 12 anos, o Brasil jogou um papel importante, do ponto de vista substantivo e simbólico, no desenvolvimento de uma política externa baseada na projeção da capacidade brasileira, ao mesmo tempo em que promovia a soberania, o multilateralismo e a solidariedade.
 
Em 13 de setembro do corrente ano, o novo governo brasileiro fechou a CGFOME – um movimento indicativo da alteração das novas prioridades estratégicas, que terá consequências no papel do Brasil no mundo, assim como para o desenvolvimento da cooperação internacional e das relações Sul-Sul. A imprensa ocidental não publicou uma palavra sequer sobre o assunto.
 
Em 2013, sentado em um enorme salão de conferências, em um hotel funcional no deserto distrito de negócios de Istambul, eu ouvi, com calorosa admiração, Milton Rondó Filho, o ministro que dirigiu a CGFOME desde a criação, dirigir-se a um pequeno grupo internacional de formuladores de política e diplomatas humanitários. Com autoridade didática, adoçada por humildade de quem vê o mundo não a partir do centro, ele colocou questões sobre o papel da ação humanitária e discutiu "a visão brasileira". Deixando de lado o discurso gerencial e paternalista sobre o desenvolvimento, falou de "cooperação, não assistência" e "parceiros, não doadores", locuções que, embora refrescantes, devem ter transmitido interessante idealismo libertário ou, mais, dúplice mudança, não fosse pelo fiar de que o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) seguira na década anterior estratégia que enfatizara precisamente a cooperação horizontal, principalmente regional e Sul-Sul, buscando democratizar as instituições multilaterais.





 
Em suas firmes posições nas negociações na OMC e na liderança do bloco comercial do G 20, na busca de novos mercados no mundo em desenvolvimento (durante os Lito anos do governo Lula apenas, a proporção de exportações brasileiras para os países não pertencentes à OCDE aumentou de 38,5 para 57 por cento); em sua ativa participação no G 20 das maiores economias; na sua campanha para a reforma do Conselho de Segurança da ONU; nas negociações sobre o programa nuclear do Irã, levando à Declaração de Teerã, com a Turquia e o Irã, em 2010; e no fortalecimento da associação com o grupo de países dos BRICS, inclusive por meio do Novo Banco de Desenvolvimento, o Brasil, com mais de 13 anos de Governo do PT, tornou-se um ator central nas relações internacionais, engajando-se e protegendo os interesses dos países em desenvolvimento. Fortaleceu maciçamente os laços diplomáticos e econômicos com a África e tem desenvolvido amplo portfólio de cooperação técnica com os países da África Lusófona. Priorizou a integração com os países da América Latina, particularmente por meio do engajamento com o bloco sub-regional do MERCOSUL Aumentou sua participação em missões de paz da ONU em países em desenvolvimento. E, por meio do trabalho da CGFOME, crescentemente aumentou o protagonismo na promoção da segurança alimentar em países em desenvolvimento, provendo cooperação humanitária, apoiando o desenvolvimento rural e fortalecendo sistemas de proteção social (esferas de atividade cujos vínculos buscou estreitar).
 
"Somos o país de Paulo Freire", disse o ministro Rondó, fazendo referência ao influente pedagogo brasileiro, "e acreditamos que o desenvolvimento começa prioritariamente de dentro". Ele explicou que, para o Brasil, as respostas humanitárias emergenciais devem sempre ser concebidas para contribuírem com os processos de mudanças estruturais, sob as bandeiras da sustentabilidade e dos direitos humanos. Esta perspectiva estruturante, baseada na experiência da teoria e da prática, com a participação produtiva da sociedade civil, seria, ele sugeriu, uma das contribuições mais importantes da CGFOME para o discurso e a prática humanitária.
 
Com efeito, ao lado das contribuições teóricas, a CGFOME também fez notáveis contribuições práticas. Entre 2006 e 2015, operou 682 ações (emergenciais e de longo prazo), em mais de 100 países. Coordenou as crescentes contribuições brasileiras aos vários organismos internacionais, primeiramente para programas de segurança alimentar: em 2010, o Brasil foi o décimo maior contribuinte para o Programa Mundial de Alimentos (PMA), o sexto maior para o Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres; ficou entre os maiores contribuintes de países em desenvolvimento para a Plataforma Global para a Redução do Risco de Desastres, do Banco Mundial; do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados e do Fundo Central de Resposta a Emergências das Nações Unidas. A CGFOME liderou os esforços brasileiros na difusão de tecnologias sociais como o Programa de Aquisição de Alimentos para a África (PAA África), o qual promove, em cinco países da África, a produção da agricultura familiar para programas de alimentação escolar local, inspirado na aliança exitosa do PAA-PNAE no Brasil. Ao lado disso, a CGFOME foi responsável pela liderança brasileira na amplamente elogiada reforma do Comitê Mundial de Segurança Alimentar, da FAO, em 2009. Teve papel fundamental na adoção pela FAO das Diretrizes Voluntárias para o Direito à Alimentação, em 2004, e das Diretrizes Voluntárias para a Governança da Terra e dos Recursos Pesqueiros e Florestais, no Combate da Segurança Alimentar Nacional, em 2012. Participou ativamente das negociações do Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres. Juntamente com o Reino Unido, conduziu a "Iniciativa Nutrição para o Crescimento".
 
Na medida em que o governo brasileiro tem exercido influência crescente sobre a cooperação internacional para o desenvolvimento, nos anos recentes, tem sido objeto de críticas ocasionais também: por prover grande quantidade de ajuda alimentar em espécie, embora as compras locais estejam em primeiro lugar entre os 4 princípios da cooperação humanitária brasileira; pela contínua defesa dos biocombustíveis, apesar do potencial inflacionário do impacto sobre os preços dos alimentos (embora a ideia de que a produção brasileira de etanol com base na cana-de-açúcar tenha sido derrotada); por priorizar a cooperação humanitária com países de importância estratégica (o Brasil não seria a ovelha negra no grupo de doadores, se considerado esse critério). Mas as críticas têm sido amplamente superadas pelas inovações e liderança trazidas pelo Brasil na promoção da segurança alimentar. Com o êxito do Brasil na redução da fome internamente (em 2009, a ONG Action Aid colocou o país em primeiro lugar entre os países em desenvolvimento; em 2011, o PMA qualificou-o como "campeão mundial na luta contra a fome"; em 2014, a FAO também trouxe seu reconhecimento, juntamente com outros 12 países, pelos notórios êxitos brasileiros na luta contra a fome); a CGFOME foi um parceiro e advogado legítimo no exterior.
 
Em 31 de agosto, Dilma Rousseff, sucessora de Lula, foi "impedida" pelo Senado Federal, finalizando a trajetória dos governos do PT e entregando a presidência  a Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Temer fora vice-presidente de Dilma.  Embora a luta contra a fome tenha estado no centro da cena diplomática durante os anos de governos do PT, o fechamento da CGFOME nas 2 primeiras semanas da nova administração torna-se um ato simbólico de partidarismo político. José Serra, ministro das relações exteriores, desde a suspensão de Dilma, em abril, acusou o PT de ter adotado uma política externa ideológica, baseada no " populismo global". A política alternativa de Serra parece ter por objetivo transformar a política externa brasileira em veículo para a expansão das empresas privadas.
 
Uma das tiradas preferidas de Lula foi de que transformou o Brasil de devedor líquido em credor líquido, com políticas macroeconômicas que satisfaziam os grandes negócios e o capital financeiro, enquanto aumentava os investimentos sociais para reduzir a extrema pobreza. De fato, uma economia em constante crescimento foi fundamental para o êxito brasileiro na luta contra a fome interna e externamente. Mas tendo encolhido pelo sexto quadrimestre consecutivo, o Brasil enfrenta sua pior recessão. Uma contração fiscal, iniciada por Dilma em 2013 e agora orgulhosamente acelerada por Temer, já afetou programas sociais (apenas em setembro, 600.000 famílias foram excluídas do Bolsa Família, o programa de transferências condicionadas mais importante do PT). No plano externo, a cooperação humanitária brasileira caiu mais de 90 por cento desde 2012, quando foi de 83 milhões de dólares. Entretanto, o fechamento da CGFOME mostra que, mais do que, mais do que a prescrição de uma dose de austeridade temporária, o novo governo está impetrando uma reorganização permanente do estado, como fora delineado no plano de governo de Temer: "Uma ponte para o futuro". Sob a responsabilidade do recém-criado Programa para Parcerias de Investimentos, Temer planeja privatizações em grande escala, indicando que, em termos de infraestrutura, ele entregará "tudo o que for possível" para o setor privado. Com a liberalização planejada do comércio e dos fluxos de capital, Serra prometeu então que a prioridade do Itamaraty serão as relações comerciais com os parceiros tradicionais, como EUA, Europa e Japão, a fim de atrair investimento estrangeiro.
 
Além dos esforços para acessar novos mercados para as exportações brasileiras, a cooperação Sul-Sul e regional parece fadada a um lugar de segunda classe. Em recente entrevista televisiva. Serra lutou até mesmo para nomear os outros países que compõem os BRICS. Apesar de seu repetido bordão de fortalecimento do MERCOSUL, particularmente seu papel de promoção do livre comércio no continente sul-americano, ele tem ordenado até mesmo a remoção da bandeira do MERCOSUL de frente do prédio do Itamaraty em Brasília. Ele também está redirecionando as relações diplomáticas brasileiras na região: em junho, manifestou o interesse na criação de corredor humanitário na Venezuela, em frontal divergência com a ferrenha defesa pelo PT das soberanias nacionais na região.. Ao mesmo tempo, Temer recentemente cancelou a doação que Dilma fizera de três aeronaves T-27 Tucano para Moçambique, afirmando que, ao invés de doadas, deveriam ser vendidas.
 
Ao distanciar-se da cooperação Sul-Sul e do tipo de solidariedade que caracterizou a política externa dos governos do PT, a administração Temer também está abandonando o protagonismo pelo qual o Brasil ajudou a redesenhar as relações internacionais e a governança global, em favor do mundo em desenvolvimento. Ao rejeitar a geoestratégia baseada no exercício do "soft-power" nas instituições multilaterais, o novo governo está optando por um papel passivo, sujeito às demandas do capital estrangeiro e dos estados que o subsidiam.
 
Enquanto o Brasil recua de sua incipiente liderança em cooperação humanitária e segurança alimentar, aqueles vivendo na pobreza, afetados pela fome, conflitos e desastres, que têm recebido apoio da CGFOME, estão perdendo um poderoso advogado e benfeitor. Ao lado disso, a redução do engajamento com outros parceiros em desenvolvimento deverá diminuir os fluxos de cooperação Sul-Sul, da qual o Brasil tem sido um dos principais defensores. Em anos recentes, tem havido muita discussão sobre o papel dos chamados "doadores não-tradicionais" em redesenhar a governança humanitaria e as práticas. No entanto, com o possível desengajamento do Brasil, a preocupação dos governos da Rússia e da Turquia e com as atuais lutas internas nesses países, e a inflexão da economia chinesa, entusiastas de uma ordem multipolar terão de, talvez previsivelmente, adiar as comemorações.
 
O fechamento da CGFOME é também, aparentemente, uma espécie de vingança pessoal. Em março, o ministro Rondó expediu, para as embaixadas e missões diplomáticas brasileiras em todo o mundo, mensagens de sindicatos, movimentos sociais e ONGs, as quais alertavam que o processo de "impeachment" de Dilma era um pretexto para um golpe parlamentar, solicitando, por isso, o engajamento das organizações da sociedade civil locais para que tivessem ciência do risco para a democracia brasileira. Em junho, quando o governo interino já se instalara, ele foi exonerado do cargo de Coordenador-Geral da CGFOME. Com o novo governo agora instalado, o diplomata de carreira responsável por guiar a decolagem do Brasil como parceiro para o desenvolvimento, aguarda lotação, espectador do desmantelamento da Coordenação que criara; a dispersão da sua equipe e o fim de mais de uma década de política externa brasileira inovadora, independente e tenaz.


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