Derrota das
diretas repetirá tragédia de 1984
Paulo Moreira Leite
Na medida em que a campanha por diretas
apresenta uma tendência notória de crescimento, a mídia que pretende escolher o
sucessor de Michel Temer através de um golpe dentro do golpe faz o possível
para enfraquecer a mobilização popular. A primeira tentativa foi esconder as
passeatas e os atos públicos. Não deu: o apoio era grande demais para ficar numa
nota de rodapé.
Agora, tenta-se construir um ambiente de
desânimo, circulando a versão de que se trata de um objetivo impossível de ser
atingido.
É assim que, no último parágrafo de uma
reportagem sobre o show de ontem em São Paulo, a Folha escreve, em tom de
advertência aos leitores: "Para que ocorram diretas, é preciso mudar a
legislação. Há dois projetos: um na Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara e outro na Comissão de Justiça do Senado."
Não é um caso isolado. Quase com as
mesmas palavras, a Globo News tem tentado praticar a mesma pedagogia.
A explicação para esse comportamento é
de uma simplicidade chocante.
Sem coragem de assumir, com clareza, sua
opção contrária às diretas, escolha reafirmada pesquisa após pesquisa por 80%
da população, é mais cômodo lavar as mãos e recordar que "é preciso mudar a legislação."
Parece que o problema não é da Folha nem
da Globo que não querem diretas nem se dispõem a apoiar as duas emendas em
curso no Congresso - apenas a lei é que não permite.
Claro que é uma forma de apagar responsabilidades numa trama contra a
democracia que só irá agravar os problemas do país.
Sem falar na hipocrisia por parte de
quem apoiou a Emenda do Teto de Gastos e transformou o desmonte da Previdência
em prioridade número 1 - mudanças que sequer estão previstas na Constituição,
ao contrário das diretas, que, conforme determinados juristas, podem ser
encaminhadas com base na mini-reforma eleitoral do TSE de 2015.
O grave, em qualquer caso, é que o
Brasil tem uma experiência recente a esse respeito, uma lição amarga, que é
sempre útil relembrar.
Em 1984, na saída da ditadura, o país
poderia ter sido reorganizado de forma democrática, através de eleições
diretas. Mesmo apoiada por uma das maiores campanhas políticas de nossa
história, a ideia foi derrotada no Congresso.
O resultado foi o que se viu: um
desperdício histórico, que teve um impacto imenso sobre os anos seguintes, com
o nascimento de uma democracia real mas pactuada com sobreviventes da ditadura,
incapaz de abrir os armários do autoritarismo, a começar pelo julgamento e
punição de torturadores.
Resultado da escolha no Colégio
Eleitoral e da morte de Tancredo Neves, fatalidade a que toda decisão política
está sujeita, o governo de José Sarney, sem compromissos políticos claros com a
maioria dos brasileiros, tentou jogar à direita, depois à esquerda, e por fim
fez um governo de Nada. Isso mesmo: Nada. O principal evento político do
período, a Constituinte, foi uma derrota do presidente e fruto da resistência
democrática contra o projeto de uma conservadora Assembleia de Notáveis - algo
semelhante aquilo que se cogita por aí, mais uma vez.
Além das próprias limitações do
personagem, o governo Sarney enfrentava um agravante: não era expressão da soberania
popular, alimento indispensável para todo chefe de governo encaminhar soluções
para o conjunto de país, sem sobreviver na troca de favores, cedendo a pressões
espúrias sempre estão à espreita nos gabinetes de poder.
Mesmo que tivesse ambição de fazer um
governo histórico, o que não era o caso, Sarney precisaria pedir licença a seus
senhores, patrões e fiadores. Sem legitimidade, passou cinco anos de mandato
comprando um apoio que se tornava cada vez mais caro. Um de seus instrumentos
essenciais foi a distribuição de concessões de rádio e TV para preservar o
mandato - crime que ajudou a consolidar
o monopólio dos meios de comunicação, em vez de contribuir para sua
democratização.
Seus sucessivos planos econômicos foram
versões variadas de uma mesma piada pronta, que abriu caminho para o Berlusconi
I, Fernando Collor.
Sabemos que nenhuma eleição direta, por
si só, representa garantia de que um país terá um bom governo. Tanto a história
do Brasil como de outros países é pródiga em exemplos dessa natureza. A escolha
do presidente envolve, sempre, uma questão essencial. O projeto político é
básico. A participação popular também.
O debate, no país de hoje, é outro. A
recusa às diretas é a única forma possível de salvar um programa de reformas
que a população não apoia e jamais apoiará. Articuladores de um golpe em estado
de ruína, a mídia tem medo de morrer na praia e fará tudo para manter o povo
longe de qualquer decisão relevante.
Essa é a questão.
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