segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O QUE OCORRE NA VENEZUELA?

O que ocorre na Venezuela?

Carlos D'Incao

Para entender o que está ocorrendo na Venezuela nos dias de hoje é preciso - em primeiro lugar - jogar fora praticamente tudo o que está sendo publicado e divulgado pela mídia nacional e internacional.

Em segundo lugar, é fundamental compreender que a atual crise venezuelana segue antigas e sólidas leis históricas que geralmente aparecem de forma velada e subterrânea, entre elas destacamos a lei dialética das contradições de classes.

Hoje, na Venezuela, essas contradições se converteram na única guerra legítima de nossos tempos: a guerra de classes.

Em uma breve síntese é importante lembrarmos que a democracia burguesa venezuelana - que como qualquer democracia burguesa nunca foi e nunca será inexpugnável - falhou em seus mecanismos tradicionais de contenção das forças progressistas. Ela "permitiu" que, em 1999, Hugo Chávez fosse eleito presidente da República, com um significativo apoio parlamentar.

Desde então, a Venezuela entrou em um processo gradual de transformação social, política e econômica em direção ao socialismo. Não faltaram tentativas de boicote e golpes de Estado contra o novo líder bolivariano, dirigidos por uma elite reacionária que não aceitava a perda de seus privilégios.

Mas, Hugo Chávez conseguiu se manter no poder porque possuía apoio das Forças Armadas, suporte nas massas trabalhadoras, e dirigia uma economia que vivia as benesses do ciclo das commodities - com o valor do barril de petróleo (seu principal produto de exportação e sua principal fonte de divisas) ultrapassando a barreira dos cem dólares.

Uma nova Venezuela foi se edificando nessa conjuntura. Em poucos anos as reformas chavistas eliminaram a pobreza extrema, reduziram brutalmente o déficit habitacional, erradicaram o analfabetismo e aumentaram significativamente o poder e o padrão de consumo da população.

Porém, Chávez sabia que o mesmo petróleo que gerava as receitas para as suas reformas sociais progressistas, também travava o desenvolvimento industrial local do país e sua soberania alimentar. Isso porque as divisas vindas do petróleo eram tão fartas que era mais barato importar alimentos e produtos industrializados, do que produzi-los no próprio país.

Para tentar equacionar essa contradição, seu governo tratou de incentivar e pôr em prática uma profunda reforma agrária e iniciar um processo de subsídios para a edificação de um parque industrial para a produção de artigos industrializados que iriam de eletrodomésticos a veículos automotores.

Sua morte no ano de 2013 marcou não só o início de um vazio político na Venezuela, como também marcou o já previsto (e temido) fim do ciclo exuberante das commodities.
O barril de petróleo despencou e a economia venezuelana entrou em estado deficitário. Por uma margem ínfima de votos, Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, venceu as eleições presidenciais contra Henrique Caprilles, o político das elites tradicionais.

Nesse momento, então, a burguesia venezuelana, com o apoio dos EUA e outras nações reacionárias do Cone Sul, começou a articular um processo de guerra econômica para desestabilizar politicamente o governo de Maduro. E essa guerra foi, e continua sendo, brutal...

O setor de importação, em boa parte nas mãos da burguesia conservadora, iniciou um processo de especulação de produtos de gêneros básicos de modo a deixá-los caros e escassos. Isso gerou uma espiral inflacionária e um enorme pânico na população que partiu para as ruas à procura de produtos possíveis de serem estocados em seus lares, na máxima quantidade possível.

O governo de Maduro respondeu a isso em várias frentes.

A medida imediata de maior envergadura foi a aprovação de uma lei que possibilita o confisco de produtos e a estatização de empresas que realizam a especulação de produtos de gêneros básicos. Seguidamente, ampliou os supermercados populares com preços subsidiados, para pressionar os especuladores.

Por fim, estabeleceu um câmbio artificial supervalorizado, especialmente feito para comprar das empresas privadas produtos importados (com preço em dólar), usando a moeda local, o bolívar.

Obviamente, a burguesia venezuelana esperneou e o gigante do norte entrou em ação.

Em uma medida radical, os EUA deixaram de aceitar o bolívar para a venda de produtos industrializados. Esse boicote foi seguido pelos tradicionais países subservientes da América Latina, como a Colômbia e o Panamá.

Soma-se a isso o fato de que a burguesia venezuelana iniciou um processo de fuga de capitais para os EUA gerando, inevitavelmente, a quebra da política de câmbio artificial.

Com uma inflação fora de controle, o governo aumentou os salários em níveis estratosféricos. Ao mesmo tempo, para tentar frear a fuga de capitais estabeleceu o confisco de poupanças e contas-correntes com lastro em países estrangeiros e acabou por estatizar todo o processo de distribuição de alimentos.

Ainda assim, o clima de caos econômico deu à direita 2/3 do Parlamento venezuelano, na primeira derrota do chavismo desde 1999. Com esse poder político, o Parlamento poderia, entre outras coisas, abolir os decretos de Maduro contra a guerra econômica e adiantar as eleições presidenciais.

Desde 2015, esse cenário de caos ficou estabelecido e, nos cálculos da direita venezuelana, Maduro iria "sangrar" até as eleições presidenciais, quando seria substituído por um presidente conservador, através de um processo eleitoral tradicional.

O que as elites venezuelanas não esperavam eram algumas mudanças conjunturais, quais sejam: a volta da valorização do barril de petróleo; o apoio militar da Rússia, e o apoio econômico da China ao governo de Maduro.

Tudo isso tornou possível o início da reestruturação da economia venezuelana com a retomada do abastecimento de todos os gêneros alimentícios e dinheiro suficiente para se estabelecer uma reserva cambial capaz de controlar a inflação.

Nesse momento, a direita "surtou de vez" e partiu para a violência aberta contra o governo, como estamos observando hoje. Os grandes meios de comunicação veiculam de forma manipuladora fatos e imagens de um período passado, onde havia uma crise de abastecimento, que hoje está em processo final de superação.

É importante salientar que a opinião pública internacional tem relevância, pois a elite venezuelana sonha conseguir aprovar na ONU um boicote econômico aos moldes do que foi feito no Iraque de Saddam Hussein, estrangulando de vez a economia venezuelana até a deposição do presidente Nicolás Maduro.

Nas ruas, as elites começaram a organizar e incitar parte da população para realizar manifestações violentas e extremadas na qual resultaram mais de 130 pessoas mortas, dentre as quais mais de 100 chavistas, detalhe convenientemente ocultado pelos grandes meios de comunicação.

Por outro lado, o Parlamento, dominado pela direita, abandonou suas funções legislativas e entrou em estado de desobediência civil, negando-se a acatar qualquer decreto presidencial.

O presidente Maduro respondeu a esses ataques com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

As eleições para a Assembleia Constituinte ocorreram em 31 de julho último. A sua composição é formada por uma esmagadora maioria de chavistas. Pretendem os deputados constituintes superar a democracia burguesa venezuelana, estabelecendo um regime de participação popular setorial, com maiores poderes para as forças armadas bolivarianas, às milícias populares e as organizações sociais.

Com isso, a Revolução Bolivariana pretende derrotar burguesia venezuelana e acionar um processo de construção do socialismo.

As acusações de que o presidente Nicolás Maduro rompeu as "regras do jogo democrático" são verdadeiras, mas deve-se atentar ao fato de que ele está rompendo com "o jogo das oligarquias tradicionais dominantes".

Além do mais, uma elite reacionária, golpista e sabotadora - como é a elite venezuelana - não tem moral para falar de "jogo democrático".

Se a Revolução Bolivariana será bem sucedida ou não nessa empreitada é uma questão a ser respondida por futurologistas. O que já é possível afirmar é que, no mínimo, Maduro não cairá tão facilmente.
A última chance que a direita venezuelana possui é tentar - com o apoio dos EUA - criar um ambiente de guerra civil no seu próprio país. Um ponto muito controvertido. Afinal o governo Trump é odiado por quase todos os povos do mundo e já possui problemas nacionais e internacionais em uma escala suficiente.

Os dirigentes da Revolução Bolivariana sabem disso e não querem perder tempo.

Pouco importa as difamações e ações dos EUA, o governo revolucionário não vai parar. Ressalte-se que, entre as difamações destaca-se o patético congelamento das contas de Maduro, como se ele tivesse alguma conta nos EUA. Na verdade, uma tentativa clássica de tentar fazer com que ele se pareça com os ditadores bilionários do Oriente Médio. Nicolás Maduro teve como única renda, ao longo da maior parte de sua vida, um modesto salário de condutor de trens.

Pouco importa também se parte da "esquerda" latino-americana como outros partidos socialistas "Nutella", falem mal do que está ocorrendo na Venezuela e faça coro com os grandes meios de comunicação e com aqueles que acreditam nas instituições burguesas. A "esquerda" inocente que acredita nas falácias de um possível "capitalismo renano" onde todos vão viver felizes, como na Dinamarca, daqui a 500 anos.

A verdade é que a Revolução Bolivariana atingiu o seu ponto decisivo. Ou a Venezuela se tornará o segundo país socialista da América Latina ou terá o seu fim em um banho de sangue muito mais violento do que o que ocorreu no Chile de Salvador Allende. E Maduro parece, ao contrário de Allende, ter ouvido Fidel Castro.

Fidel sempre salientou que a Revolução Socialista, no fim, é a única solução para os povos da América Latina. E ela não acontecerá sem sofrimento, não ocorrerá sem sacrifícios e muito menos, sem romper profundamente com as regras do jogo dos sistemas políticos viciados criados por nossas oligarquias.

E lembremos sempre, a Revolução não será televisionada.

Não será celebrada pela CNN, pela BBC e muito menos pela Rede Globo de televisão.

Ela acontecerá nas ruas e passará pelos olhos daqueles que não apenas sabem ver, mas, sobretudo, conseguem enxergar.



* Carlos D'Incao é historiador

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