Cinema e Realidade em casa 10
Da Redação
Comemorar o quê, neste feriado em que campeia tiroteio cruzado no escuro dos gabinetes do poder, em Brasília? Celebrar, mais uma vez, com hino e parada militar, o filme ruim, em cores e 3-D de uma independência chancelada num brado discutível urrado com suposta pompa e circunstância? Qual é essa independência que fantasiamos? A de um país em ritmo vertiginoso de ataque à sua industrialização, um dos pilares mais vigorosos da soberania de qualquer nação? A dependência vinda com a demolição, a desconstrução planejada da rede de assistência aos pobres, e a destruição boçal e venda descarada do patrimônio, da sua ciência, dos projetos sociais, da rede pública de educação e saúde? Que feriado é esse para celebrar, no cinema e com ele, um país desnorteado com povo anestesiado, conformado, envergonhado e, ele próprio, vexame mundial? Onde ficou o seu projeto de cidadania e compromisso com as coisas públicas - e também as privadas – hoje inexistente?
O filme recém estreado, peça de publicidade cujos produtores se escondem, covardemente, com medo de aparecer, seria o mais oportuno para festejar a data de um país dependente. Mas esse filme não é cinema. É publicidade; não conta.
Para brindar as partes ainda saudáveis da nação que mergulha velozmente no mar de violência, despudor e ejaculações públicas (literais e verbais), o Cinema e Realidade em Casa 10, de Carta Maior, tem três registros cinematográficos imperdíveis e adequados a um belo réquiem. O botão de pérola, mais uma obra prima do chileno Patrício Guzman. E Corumbiara (2009) e Martírio (2016), dois primeiros filmes da trilogia que será concluída com Adeus, capitão, do indigenista e documentarista Vincent Carelli. São produções históricas, de alta qualidade documental sobre os índios brasileiros e no continente. No caso do Brasil, os símbolos do descaso, da indiferença e triste resultado da cupidez sem limites do poder instalado ilegalmente no Planalto com seus tentáculos.
Os índios, e o cinema sobre eles, insistem em manter visibilidade. Realçam a ignorância das classes médias urbanas descerebradas que pouco conhecem ou fingem desconhecê-los para comprar uma boa consciência. Essas minorias apresentadas pela vil e fétida mídia velha, os jornalões das grandes cidades, se referem aos índios como invasores, lembra Carelli na sua bela narração de Martírio, produção realizado dentro do seu projeto Vídeo nas Aldeias, de formação de cineastas indígenas.
Hoje, sugerimos filmes que nos levam a refletir sobre a dobradinha soberania e cidadania, mas pelo avesso.
El botón de nácar foi Urso de Prata de Melhor Roteiro do Festival de Cinema de Berlim do ano passado, é o doc mais recente de Patrício Guzman, diretor chileno que vive em Paris e enfatiza a importância e a necessidade da memória “como instrumento político de identidade de um país e de seus indivíduos.” É assim que ele comenta o papel vital ocupado pelo filme documentário na história de uma nação: “Um país sem documentário é como uma família sem álbum de fotografias.”
Guzmán levanta um véu de silêncio que caiu, durante mais de século, sobre o massacre dos índios kawéskar, um dos quatro grupos de indígenas da Patagônia. Na primeira parte da sua narrativa, apresenta os indígenas das terras geladas onde os Andes mergulham no mar e se transformam em arquipélago de mil ilhotas, esses “nômades da água” cuja chegada por lá precedeu em milênios o colonizador que os dizimou. Ouve-se a voz de Guzmán narrando o filme: “Os chilenos eram um povo silencioso”. Referia-se aos tempos de Allende, que rompeu mais de um século de silêncio sobre o extermínio dos indígenas da Patagônia devolvendo-lhes as terras usurpadas. Apenas 19 dos kaweskar sobreviveram e vivem nelas até hoje.
(CLIQUE AQUI PARA LER A RESENHA DO FILME)
Outra saga da desgraça e do extermínio dos indígenas do continente se deu no Brasil, em 1985. Uma dentre tantas outras carnificinas cometidas contra os índios sul-americanos que se perpetuam até hoje, é obrigatório frisar. Na gleba Corumbiara, sul de Rondônia, a matança teve a autoria dos fazendeiros de gado da região que resistiam à demarcação de extensas terras pela Funai, o que impediria (pelo menos teoricamente) sua exploração comercial. De tão bárbaro, o fato ganhou a aura de fantasia e caiu no esquecimento. Mas a partir da garimpagem paciente e meticulosa de evidências perdidas na poeira da história, buscando os sobreviventes da carnificina, o diretor Vincent Carelli passou 20 anos estudando o episódio. Ele é o diretor do belo filme Corumbiara, uma obra imperdível, vencedora do Festival de Gramado de 2009.
(CLIQUE AQUI PARA LER A RESENHA DO FILME)
Na sua resenha sobre Martírio, publicada em Carta Capital, o professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Felipe Milanez escreve, sob o impacto da produção de Carelli e dos seus companheiros realizadores: “Há um momento no filme, e peço licença para não fazer o sacrilégio de estragar alguma surpresa, (...) quando um indígena Kaiowa diz: ‘O que tá pegando a gente é o capitalismo.’ Desde que assisti Martírio, em um encontro com o diretor Vincent Carelli em Olinda (PE), (...) essa frase, dita nesse contexto, por essa voz no belo ritmo da língua guarani, não sai da minha cabeça. O capitalismo está pegando os indígenas.’’ Ele continua: “É um documentário que traduz uma profunda indignação que caracteriza a vida de Vincent Carelli: essa imposição de gritar, de se indignar, se insurgir, uma revolta contida dentro do peito de Vincent desde a primeira vez em que ele esteve entre os Kaiowa e Guarani nos anos 1980.” E conclui: “É um filme-evento.”
(CLIQUE AQUI PARA LER A RESENHA DO FILME)
Aproveite para refletir sobre a situação precária, cada vez mais insegura, dos índios brasileiros em rota de desaparecimento completo. É uma das mais gritantes chagas nacionais. Chame amigos e parentes para debatê-la e, se quiser, envie um texto para nós, com um resumo dessa discussão.
Voltamos a lembrar que, na qualidade de Mídia Alternativa, e com poucos recursos, nós estamos lutando pela democratização da comunicação. Para que o jornalismo esgoto, que brilhou nesta semana, nas mãos dos cães de guarda de redação, tenha em Carta Maior um dos contrapontos ao veneno inoculado em grande parte da população. Carta Maior está nesta trincheira há mais de 16 anos e hoje depende, integralmente, da colaboração de seus leitores. Para que possamos continuar nesta luta precisamos que você se torne nosso parceiro. (saiba como aqui)
Bom descanso de fim de semana, parceiro, na companhia dos três filmes sugeridos. Eles são mais que necessários.
* O botão de pérola e Corumbiara estão disponíveis no youtube. Martírio pode ser visto clicando aqui (Use a senha: marangatu).
Comemorar o quê, neste feriado em que campeia tiroteio cruzado no escuro dos gabinetes do poder, em Brasília? Celebrar, mais uma vez, com hino e parada militar, o filme ruim, em cores e 3-D de uma independência chancelada num brado discutível urrado com suposta pompa e circunstância? Qual é essa independência que fantasiamos? A de um país em ritmo vertiginoso de ataque à sua industrialização, um dos pilares mais vigorosos da soberania de qualquer nação? A dependência vinda com a demolição, a desconstrução planejada da rede de assistência aos pobres, e a destruição boçal e venda descarada do patrimônio, da sua ciência, dos projetos sociais, da rede pública de educação e saúde? Que feriado é esse para celebrar, no cinema e com ele, um país desnorteado com povo anestesiado, conformado, envergonhado e, ele próprio, vexame mundial? Onde ficou o seu projeto de cidadania e compromisso com as coisas públicas - e também as privadas – hoje inexistente?
O filme recém estreado, peça de publicidade cujos produtores se escondem, covardemente, com medo de aparecer, seria o mais oportuno para festejar a data de um país dependente. Mas esse filme não é cinema. É publicidade; não conta.
Para brindar as partes ainda saudáveis da nação que mergulha velozmente no mar de violência, despudor e ejaculações públicas (literais e verbais), o Cinema e Realidade em Casa 10, de Carta Maior, tem três registros cinematográficos imperdíveis e adequados a um belo réquiem. O botão de pérola, mais uma obra prima do chileno Patrício Guzman. E Corumbiara (2009) e Martírio (2016), dois primeiros filmes da trilogia que será concluída com Adeus, capitão, do indigenista e documentarista Vincent Carelli. São produções históricas, de alta qualidade documental sobre os índios brasileiros e no continente. No caso do Brasil, os símbolos do descaso, da indiferença e triste resultado da cupidez sem limites do poder instalado ilegalmente no Planalto com seus tentáculos.
Os índios, e o cinema sobre eles, insistem em manter visibilidade. Realçam a ignorância das classes médias urbanas descerebradas que pouco conhecem ou fingem desconhecê-los para comprar uma boa consciência. Essas minorias apresentadas pela vil e fétida mídia velha, os jornalões das grandes cidades, se referem aos índios como invasores, lembra Carelli na sua bela narração de Martírio, produção realizado dentro do seu projeto Vídeo nas Aldeias, de formação de cineastas indígenas.
Hoje, sugerimos filmes que nos levam a refletir sobre a dobradinha soberania e cidadania, mas pelo avesso.
El botón de nácar foi Urso de Prata de Melhor Roteiro do Festival de Cinema de Berlim do ano passado, é o doc mais recente de Patrício Guzman, diretor chileno que vive em Paris e enfatiza a importância e a necessidade da memória “como instrumento político de identidade de um país e de seus indivíduos.” É assim que ele comenta o papel vital ocupado pelo filme documentário na história de uma nação: “Um país sem documentário é como uma família sem álbum de fotografias.”
Guzmán levanta um véu de silêncio que caiu, durante mais de século, sobre o massacre dos índios kawéskar, um dos quatro grupos de indígenas da Patagônia. Na primeira parte da sua narrativa, apresenta os indígenas das terras geladas onde os Andes mergulham no mar e se transformam em arquipélago de mil ilhotas, esses “nômades da água” cuja chegada por lá precedeu em milênios o colonizador que os dizimou. Ouve-se a voz de Guzmán narrando o filme: “Os chilenos eram um povo silencioso”. Referia-se aos tempos de Allende, que rompeu mais de um século de silêncio sobre o extermínio dos indígenas da Patagônia devolvendo-lhes as terras usurpadas. Apenas 19 dos kaweskar sobreviveram e vivem nelas até hoje.
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Outra saga da desgraça e do extermínio dos indígenas do continente se deu no Brasil, em 1985. Uma dentre tantas outras carnificinas cometidas contra os índios sul-americanos que se perpetuam até hoje, é obrigatório frisar. Na gleba Corumbiara, sul de Rondônia, a matança teve a autoria dos fazendeiros de gado da região que resistiam à demarcação de extensas terras pela Funai, o que impediria (pelo menos teoricamente) sua exploração comercial. De tão bárbaro, o fato ganhou a aura de fantasia e caiu no esquecimento. Mas a partir da garimpagem paciente e meticulosa de evidências perdidas na poeira da história, buscando os sobreviventes da carnificina, o diretor Vincent Carelli passou 20 anos estudando o episódio. Ele é o diretor do belo filme Corumbiara, uma obra imperdível, vencedora do Festival de Gramado de 2009.
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Na sua resenha sobre Martírio, publicada em Carta Capital, o professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Felipe Milanez escreve, sob o impacto da produção de Carelli e dos seus companheiros realizadores: “Há um momento no filme, e peço licença para não fazer o sacrilégio de estragar alguma surpresa, (...) quando um indígena Kaiowa diz: ‘O que tá pegando a gente é o capitalismo.’ Desde que assisti Martírio, em um encontro com o diretor Vincent Carelli em Olinda (PE), (...) essa frase, dita nesse contexto, por essa voz no belo ritmo da língua guarani, não sai da minha cabeça. O capitalismo está pegando os indígenas.’’ Ele continua: “É um documentário que traduz uma profunda indignação que caracteriza a vida de Vincent Carelli: essa imposição de gritar, de se indignar, se insurgir, uma revolta contida dentro do peito de Vincent desde a primeira vez em que ele esteve entre os Kaiowa e Guarani nos anos 1980.” E conclui: “É um filme-evento.”
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Aproveite para refletir sobre a situação precária, cada vez mais insegura, dos índios brasileiros em rota de desaparecimento completo. É uma das mais gritantes chagas nacionais. Chame amigos e parentes para debatê-la e, se quiser, envie um texto para nós, com um resumo dessa discussão.
Voltamos a lembrar que, na qualidade de Mídia Alternativa, e com poucos recursos, nós estamos lutando pela democratização da comunicação. Para que o jornalismo esgoto, que brilhou nesta semana, nas mãos dos cães de guarda de redação, tenha em Carta Maior um dos contrapontos ao veneno inoculado em grande parte da população. Carta Maior está nesta trincheira há mais de 16 anos e hoje depende, integralmente, da colaboração de seus leitores. Para que possamos continuar nesta luta precisamos que você se torne nosso parceiro. (saiba como aqui)
Bom descanso de fim de semana, parceiro, na companhia dos três filmes sugeridos. Eles são mais que necessários.
* O botão de pérola e Corumbiara estão disponíveis no youtube. Martírio pode ser visto clicando aqui (Use a senha: marangatu).
Créditos da foto: Arte/Carta Maior
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