domingo, 10 de setembro de 2017

Onde está o Valter? O NAZI-FASCISTA JOÃO DORIA TEM DE SE EXPLICAR

Sociedade

Refugiados Urbanos

Onde está o Valter?

por Antonello Veneri — publicado 10/09/2017 00h13, última modificação 06/09/2017 11h42
Animador cultural das ruas, ele é a nova vítima emblemática da violência do prefeito higienista
Antonello Veneri
Válter
O elfo se confunde com a gameleira da Praça Roosevelt
Conheci Valter há um ano e meio. Eu tinha acabado de chegar em São Paulo, depois de morar por alguns anos em Salvador, e fui fotografar Chinelada, uma peça de teatro do Pedro Guimarães que estava em cartaz no Teatro Estúdio H. Guariba, na Praça Roosevelt.
Depois da peça, parte do público ficou em uma rua batendo papo e entre as pessoas estava um cara de cabelão e barba enorme. Ele me chamou atenção, pois parecia um elfo dos contos de fada. 

Nesse momento, um morador de rua aproximou-se dele para pedir um dinheiro, ele o tratou de forma tão gentil e carinhosa que fiquei ainda mais curioso para conhecê-lo. Perguntei ao Pedrão, ator e diretor da peça, quem era aquele cara. Me falou que se chamava Valter e me passou o contato dele. Escrevi logo para ele que era um fotojornalista e que queria conhecer a sua história.

Dias depois, nos encontramos na Praça Roosevelt. Conversamos bastante e ele me contou que há 12 anos morava na rua e há dois anos embaixo do Viaduto Júlio de Mesquita Filho, no bairro da Bela Vista. Era um antigo estacionamento onde morava uma pequena comunidade de “refugiados urbanos”, como ele os chamava. 

Valter havia trabalhado num banco por anos, chegou a ser subgerente, depois foi iluminador de teatro, um dos melhores da cidade, e por uma série de circunstâncias foi parar na rua. Eu contei dos meus trabalhos fotográficos com população de rua e descobrimos que tínhamos vários amigos em comuns.  
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Válter provando um óculos de grau numa galeria do Centrão (Foto: Antenello Veneri)


Essa conversa se deu o tempo inteiro embaixo de uma gameleira gigante lá na praça. Resolvi tirar uns retratos dele dentro da abertura do tronco dessa árvore, que tem as raízes à vista. Ambos percebemos que era o começo de uma amizade, entre um elfo e um italiano. 

Logo no segundo encontro, Valter me convidou para conhecer o lugar onde morava, o ex-estacionamento embaixo do viaduto. Ele dormia na guarita do estacionamento e ao redor tinha construído uma espécie de centro cultural para todos – algo extremamente vivo, artístico e colorido.
No local havia alguns sofás, livros, sapatos, caso alguém precisasse, e centenas de outros objetos para pegar e interagir. Desenhos e grafites, bonecos e outros milhares de coisas completavam o centro cultural sem paredes. 

Achei incrivelmente acolhedores esses sofás ao ar livre, embaixo de um viaduto. “Eu me sinto uma antena, sabe aquela antena para captar e difundir? É isso mesmo. As pessoas precisam conversar e ser escutadas.” A partir daí, bater um papo com Valter nos sofás culturais do viaduto virou rotina, mas eu quase nunca levava a câmera comigo, e, se levava, não fotografava, porque eu ia apenas para curtir a amizade, ele me contava da vida dele e eu da minha.
Achava-o de uma pureza humana rara, disponível 24 horas para com os outros. Morava “em situação de rua” e era ao mesmo tempo ativista do movimento da população sem-teto, sempre com alguma ideia genial na cabeça.
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De todas as fotos minhas que ele viu, escolheu para pendurar no estacionamento a de uma criança andando num barco num rio, à noite. Achei legal a escolha e agora entendo o porquê. Toda vez que eu voltava para Sampa, marcávamos encontro, tomávamos umas tubaínas e aos poucos conhecia outros moradores do estacionamento e me deparava com situações intensas e criativas. Ele sempre me dizia: “Nós somos invisíveis, mas tudo o que fazemos é visível”. 

Uma vez estava acontecendo um pequeno show improvisado com o pessoal do viaduto, cantando as músicas de Cazuza, Barão Vermelho e uma versão incrível da canção O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Foi a primeira e única vez que escutei ao vivo essa música, tão linda e significativa. 

Vários episódios interessantes marcaram as minhas idas ao Viaduto Júlio de Mesquita Filho. Um dia, eu conheci o Tone Roll, um dos músicos mais talentoso que vi e ele tinha uma voz mais intensa do que a de Seu Jorge. Outra vez, quando estava por lá num fim de tarde, uma moça chamada Rita estava com uma sacola cheia de plantas que uma senhora tinha jogado de um prédio.
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Valter em sua casa-instalação sob o viaduto no Bexiga (Foto: Antonello Veneri)
E juntamente com o Valter e o Júlio César, outro morador do viaduto, plantaram e regaram as plantas num pequeno espaço verde ao lado do estacionamento. “Reaproveito de tudo o que a rua me dá, tentando transformar em arte e beleza. Nos chamam de moradores de rua, mas estão equivocados porque ninguém mora na rua. A rua é um lugar de passagem, de manifestações etc. Se você mora na rua, é atropelado, pisado... Então não moramos na rua, nós ocupamos espaços públicos, como calçadas, marquises, praças e viadutos.” 

Ele me levou a conhecer de verdade o Centro de São Paulo e a madrugada paulistana, quando a cidade se torna outro mundo e dava até para ouvi-lo respirar. 

Toda semana, Valter organizava com um ator e psicólogo, o Ricardo Florez, um jogo de xadrez humano. Num tabuleiro pintado no chão do estacionamento, as pessoas assumem o papel das peças “para levantar questões pessoais e sociais de forma lúdica e possibilitar o encontro e a convivência harmoniosa nessa subversão do jogo de xadrez oficial”.
Ele chamava isso de psicomédia. Para mim, foi uma experiência incrível ver as dinâmicas que se criavam entre os participantes. Nesse jogo, Valter conseguia juntar a galera do teatro, do vídeo, do grafite e da arte, e todos interagiam com o pessoal em situação de rua. Era antena, ponte e muito mais.

No último 29 de julho, sábado, antes de eu viajar de férias para a Itália, queria me despedir dele, então escrevi um recado pelo Face, nosso canal de comunicação. Recebo de volta a seguinte mensagem: “A casa caiu, hoje, antes de clarear o dia, chegaram as primeiras viaturas num Procedimento Operacional Padrão (POP) das equipes de remoção da prefeitura, também conhecidos como “Rapa” e “higienizaram” o espaço, tirando todos os ocupantes de lá”. 
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Com Julio César, a experiência de fazer um jardim no estacionamento (Foto: Antonello Veneri)

Fiquei muito preocupado. Essa remoção é mais uma dessas novas políticas de “higienização” e expulsão do prefeito João Doria, que, pelo visto, nesses primeiros meses de mandato não tem se preocupado com quem está em situação de vulnerabilidade social.
Eu resolvi contar a história do Valter porque atrás dessas ações e remoções há seres humanos, com sentimentos e vidas. E com muitas cores e poesia, como meu amigo Valter. “Não é bom sentir-se ingênuo, puro e besta vendo o trator passar por cima dos vasos de plantas que reguei e que também foram destruídos.” 

*O fotógrafo e jornalista italiano Antonello Veneri mora e trabalha no Brasil desde 
2009. Já publicou suas reportagens na National Geographic, Le Monde, La Repubblica, CartaCapital, Corriere della Sera, Folha de S.Paulo, Vice e Yorokobu. Desenvolve projetos de documentação social, narrando através da fotografia as histórias e o cotidiano da periferia e das principais cidades brasileiras.
Fonte: Carta Capital

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