sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O discurso de ódio

O discurso de ódio

CONTEÚDO ESPECIAL
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O discurso de ódio
Por Erika Kokay
De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil registrou, em 2014, aproximadamente 60 mil homicídios, o que coloca o País no topo do ranking em números absolutos de mortes dessa natureza no mundo. Quando olhamos para o perfil das vítimas, vemos que a esmagadora maioria é jovem, negro e morador das periferias das grandes cidades.
Quando o assunto é a violência contra a mulher, o Brasil ocupa a vergonhosa quinta posição no número de feminicídios no mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2015, o Mapa da Violência sobre homicídios entre o público feminino revelou que, de 2003 a 2013, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54%, ao passo que, no mesmo período, as taxas de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%. Do total de feminicídios registrados em 2013, 33,2% dos responsáveis eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas. O Brasil também é um dos países mais perigosos do mundo para a população LGBT. Dados do grupo Gay da Bahia afirmam que 1,6 mil pessoas foram assassinadas no País por motivações LGBTfóbica nos últimos quatro anos e meio, o que representa praticamente uma morte por dia.
Mas o que esse quadro de violências tem a ver com os discursos de ódio que são proferidos diuturnamente na tribuna da Câmara Federal por parte de parlamentares integrantes da bancada fundamentalista — seja religioso, punitivo ou patrimonialista —, popularmente conhecida como bancada BBB — da bala, do boi e da Bíblia.
Ponte entre o pensamento e a ação
Para compreender essa relação entre o discurso de ódio e a violência manifestada todos os dias em nossa sociedade, é importante resgatar alguns conceitos 
O discurso de ódio que servirão de base para essa discussão, em especial, a premissa de que o discurso é a ponte entre o pensamento e a ação.
O filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin, pesquisador da linguagem, nos trouxe importantes reflexões para esse debate. Para ele, a linguagem é uma prática social, ou seja, a fala não é individual e está estritamente ligada à intersubjetividade e à interação. Bakhtin defende a natureza social e não individual da linguagem, tendo situado tanto a língua como os indivíduos que a usam dentro de uma realidade material, de um contexto sócio-histórico.
Para ele, ao veicular concepções de mundo, a linguagem torna-se um lugar de confrontos ideológicos. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência, ela carrega uma carga de valores culturais que expressam as divergências de opinião e as contradições da sociedade, tornando-se assim um palco de conflitos. “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”, sustenta Bakhtin. Na linguística bakhtiniana, a enunciação não parte de um sujeito individual, considerado de forma isolada, mas do produto da interação de indivíduos socialmente organizados e do contexto social a que estão submersos. Em resumo, a enunciação marca um processo de interação entre sujeitos, uma vez que a própria palavra tem duas faces, isto é, parte de um alguém com destino a outro alguém. Com base nisso, ele instituiu o princípio dialógico, a filosofia do diálogo ou da relação.
Desumanização simbólica
A desumanização simbólica é o elemento fundamental para que tenhamos uma sociedade violenta que anula o outro na condição de outro. Todo processo de morte e de violência literal é precedido por um processo de morte e de violência simbólica. Antes dos negros sofrerem com os grilhões da escravidão, eles foram desumanizados. Antes dos judeus serem colocados nas câmaras de gás, eles tiveram a sua condição humana negada e vilipendiada.
Ninguém provoca, machuca, humilha, anula e fere alguém que considera que é igual a si mesmo. Ao desumanizar negros, mulheres, indígenas, LGBTs e outros setores da sociedade, o pensamento fundamentalista cria o precedente para que essas pessoas se tornem vítimas da violência e da morte visível. Na filosofia de Bakhtin, a humanidade não se restringe a um ser individual, mas é fruto de uma relação dialógica entre eu e o outro, na qual o “outro” é condição de existência do “eu”, pois a realidade da humanidade é a realidade da diferença entre um “eu” e um “outro”. O “eu” não existe individualmente, senão como abertura para o outro.
No entanto, para a ideologia fundamentalista o outro diferente de mim não existe, existe apenas o eu. Esse modo de ver e interpretar o mundo tem ganhado cada vez mais força no parlamento. Essa visão fundamenta-se na concepção de que os meus valores, as minhas ideias, as minhas convicções, a minha família, são verdades absolutas, universais e inquestionáveis.
Esses setores se movimentam a partir de uma lógica binária, de certo e errado, preto e branco, bons e maus, dia e noite. Para eles, não existe o anoitecer e o amanhecer, não existe o arco-íris, não existe a possibilidade do questionamento, da dúvida. Por isso, tem-se tornado cada vez mais comum que parlamentares fundamentalistas ocupem a tribuna para proferir e sustentar discursos fascistas que incitam o ódio e a violência, atacando frontalmente a dignidade humana, o Estado Democrático de Direito e a própria Constituição, a qual juraram obedecer e honrar.
A quebra da legalidade democrática, promovida pelo golpe do impeachment sem crime de responsabilidade, que afastou de forma ilegal e injusta uma presidenta legitimamente eleita pelo voto popular, abriu caminho para um acelerado processo de fascistização do parlamento e da sociedade.
O discurso fascista que estava contido pelo peso da democracia perdeu completamente a vergonha e está cada dia mais desnudo. “No Brasil, o absurdo perdeu a modéstia.” Esta célebre frase de Nelson rodrigues continua muito atual e ilustra bem os trágicos momentos que o País tem vivido.
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Tem-se tornado perigosamente corriqueira a defesa de regimes ditatoriais e totalitários. Com um linguajar repleto de chavões e de ideias que são facilmente apreendidas pelo senso comum, parlamentares vão à tribuna para fazer apologia de crimes como a tortura e o estupro, para reafi rmar o ideário machista, misógino, racista e LGBTfóbico.
Apologia à tortura
“Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo exército de Caxias, pelas nossas forças armadas. Pelo Brasil acima de tudo, por Deus acima de tudo, o meu voto é sim.”
A dedicatória de voto do deputado Jair Bolsonaro, integrante da bancada do fundamentalismo punitivo, durante a votação de admissibilidade do processo de impeachment contra a presidenta Dilma rousseff na Câmara, é um exemplo emblemático dessa perda da modéstia do absurdo.
Ao homenagear a memória do nefasto coronel ustra, o primeiro agente da ditadura a ser reconhecido como torturador pela Justiça brasileira, Bolsonaro corporifi cou as vozes fascistas e demonstrou como o discurso autoritário e de ódio saiu do armário.
Apesar da flagrante quebra do decoro parlamentar, por fazer apologia a um crime hediondo, Bolsonaro teve seu pedido de cassação arquivado em decorrência desse episódio por ampla maioria dos votos do Conselho de Ética da Câmara, uma decisão absolutamente temerária e que transmite um recado negativo para a sociedade brasileira, pois, além de reforçar a impunidade, reafirma a ideia de que a tortura é algo natural e aceitável.
A bancada BBB
De acordo com a publicação Radiografia do Congresso, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), as eleições gerais de 2014 fizeram emergir das urnas o Congresso mais conservador desde a redemocratização. Para o Diap, muitos foram os motivos que levaram a esse resultado, como um ambiente de forte polarização política nas eleições; a profunda descrença nas instituições; o desgaste do campo progressista; a ampla campanha de demonização da política e dos políticos, que causa a impressão de completa degradação moral e ética; além do peso do poder econômico e dos meios de comunicação nas eleições.
Tudo isso refletiu numa redução considerável dos parlamentares com visão solidária e humanista que cumpriam importante papel de contraponto ao avanço do discurso e da pauta conservadora. Nesse contexto, a bancada BBB cresceu consideravelmente e, hoje, conta com mais de trezentos integrantes, de um total de 513 deputados e deputadas.
As razões para esse crescimento são muitas e não cabe aqui pormenorizá-las, mas certamente guardam relação com uma sociedade de pouca tradição democrática, profundamente desigual, marcada pelo individualismo e por um modelo de cidadania muito fortemente ligado ao consumo. O imediatismo e a baixa refl exividade favorecem a supervalorização de respostas fáceis para problemas complexos.
É nesse ambiente que o fundamentalismo prospera, uma vez que ele se alimenta da ignorância e da pouca problematização sobre as verdadeiras causas dos problemas sociais, econômicos e ambientais. De uma forma absolutamente superfi cial diz: “Não pense! Siga-me, que eu te levo para o paraíso e a felicidade”.
"Associado a isso, temos a cultura do medo, verdadeiro instrumento de controle das populações. O medo é cotidianamente sedimentado pela mídia, que a todo momento espetaculariza a violência e oferece soluções individuais para problemas coletivos. Difunde um perigo sempre iminente, sobretudo nos espaços públicos. rotula e estereotipa aqueles considerados “inimigos” da ordem social, cria, assim, um clima insuportável de medo da violência urbana"
Associado a isso, temos a cultura do medo, verdadeiro instrumento de controle das populações. O medo é cotidianamente sedimentado pela mídia, que a todo momento espetaculariza a violência e oferece soluções individuais para problemas coletivos. Difunde um perigo sempre iminente, sobretudo nos espaços públicos. rotula e estereotipa aqueles considerados “inimigos” da ordem social, cria, assim, um clima insuportável de medo da violência urbana.
Uma sociedade refém do medo, na qual o valor da propriedade privada se sobrepõe ao direito inalienável à vida, abre caminho para soluções simplistas, fi ca permeável às alternativas autoritárias, a mercê do charlatanismo e daqueles que se autointitulam salvadores da pátria. Além de professarem um discurso desumanizante, as bancadas religiosa, ruralista e ligada às polícias e às forças de segurança, têm se articulado com cada vez mais ardor para defender um projeto de sociedade violento e retrógrado. Esse projeto se materializa em inúmeras iniciativas de lei que pretendem atacar frontalmente os direitos humanos, a cidadania e a democracia.
A bancada da Bíblia e seu fundamentalismo religioso querem romper com a laicidade do Estado, hierarquizar os seres humanos, aprisionar o beijo e o afeto, enfi m, legislar com base na Bíblia e em preceitos religiosos. A bancada do boi e seu fundamentalismo patrimonialista quer colocar suas cercas nas terras indígenas, quilombolas e em áreas de preservação ambiental. Por fi m, a bancada da bala e seu fundamentalismo punitivista acredita que o recrudescimento penal, as balas, as armas e as grades, primordialmente direcionadas aos jovens negros e pobres deste País, são a solução para os problemas nacionais.
Muito embora cada qual dessas bancadas tenha suas pautas prioritárias, elas se fortaleceram a partir de um pacto selado nas trevas, e de vez em quando uma tira a outra para dançar num verdadeiro balé macabro que vai pisoteando os direitos e as garantias fundamentais. Ovo de serpente Minoritário, restou ao campo progressista resistir e tentar impedir os retrocessos, denunciar que as manifestações fundamentalistas não podem ser tratadas como banais, tendo em vista que a ferocidade dos regimes de exceção não é medida somente pelo número de corpos tombados, mas pelo quanto de força ainda tem no imaginário de uma sociedade, o quanto infl uencia para a banalização da violência e a naturalização do arbítrio em regimes democráticos. Como nos diz a velha máxima, “ovo de serpente não se ignora, se combate”. O discurso fascista e de ódio não fica ensimesmado, não se restringe aos púlpitos, às tribunas, não fi ca circunscrito às paredes do Congresso, ele vai se espraiando, esgarçando a democracia e o tecido dos direitos. Os discursos não são inocentes. Eles se transformam em balas, pancadas e mortes. São ações destruidoras da própria condição humana.

 Erika Kokay é deputada federal (PT-DF), bancária, psicóloga, sindicalista e militante há mais de trinta anos pelos direitos humanos, direitos dos trabalhadores e minorias.

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