terça-feira, 10 de outubro de 2017

"Sociedade brasileira cultua a violência"

Entrevista

"Sociedade brasileira cultua a violência"

por Deutsche Welle — publicado 10/10/2017 00h30, última modificação 09/10/2017 11h50
Estudo mostra alta propensão do país ao autoritarismo. Em entrevista à DW, pesquisador alerta para risco de políticos com "posições salvacionistas"
Mauro Pimentel/AFP
rocinha.jpg
Militares chegaram à Rocinha, no Rio de Janeiro, para conter a guerra entre traficantes. Muitos moradores apoiaram a intervenção


Por Fernando Caulyt
Uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em conjunto com o Datafolha, mostrou que o medo da violência é uma das principais razões para que o brasileiro tenha propensão a posições autoritárias
O estudo, divulgado na sexta-feira 6, também apontou que o segmento mais rico da população é o que mais rejeita a ampliação dos direitos humanos e civis no país.
Leia mais;
Para o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP, hoje há espaço no Brasil para posições políticas e ideológicas que reforçam preconceitos, posições reacionárias e atitudes de intolerância.
"A sociedade brasileira é extremamente violenta, e infelizmente essa é uma característica que tem raízes históricas", diz Lima, em entrevista à DW. "Somos uma sociedade que cultua a violência, o individualismo exacerbado e não valoriza a vida."
DW Brasil: Quais são as principais conclusões do estudo?
Renato Sérgio de Lima: A pesquisa mostra que a sociedade brasileira é extremamente violenta, e infelizmente essa é uma característica que tem raízes históricas. É uma sociedade que entende que a forma de resolver os conflitos é por meio de posturas autoritárias e de violência. Ou seja, violência se resolve com mais violência. No caso de apoio a posições autoritárias, o índice atingiu 8,1 numa escala de 0 a 10 – sendo 10 a mais alta propensão. Segundo a nossa pesquisa, as pessoas mais propensas ao autoritarismo são as mais pobres, com menos escolaridade e moradores da região Nordeste do país.
Outro destaque é que as pessoas mais ricas, que ganham mais de dez salários mínimos, são aquelas que, proporcionalmente, mais rejeitam a ideia de ampliação dos direitos humanos e civis, como por exemplo, da população LGBT, das mulheres e dos negros. Nesse caso, o índice atinge 7,83 numa escala de zero a dez. Ou seja, temos uma combinação tóxica no Brasil onde, de um lado, a população mais pobre tem maior propensão a posições autoritárias e, de outro, a mais elitizada não quer aderir à agenda de direitos da nossa Constituição.
DW: Qual é o motivo para que a população brasileira seja mais propensa ao autoritarismo?
RSL: Vemos que o medo da violência tem dominado a população adulta no país e, assim, essa questão assume um papel central no contexto atual, em que vivemos uma profunda crise de legitimidade das instituições democráticas. Essa crise abre espaço para posições políticas e ideológicas que reforçam preconceitos, posições reacionárias e atitudes de intolerância e que podem levar a retrocessos dramáticos no que diz respeito a políticas públicas, em especial as voltadas para a área de segurança pública.
Os resultados apontam para a urgência de o Brasil rever a maneira como tem enfrentado a violência e pautado as políticas de segurança pública. Quer dizer, o medo da violência é o maior motor para posições polarizadas, porque a sociedade brasileira vive, na média, amedrontada. Ou interferimos na interdição moral e política da violência como uma ferramenta de solução de conflitos ou estamos criando um ambiente extremamente complexo, que abre margem para sectarismos e posições perigosas para a democracia brasileira.
DW: Por que os brasileiros mais ricos apresentam uma maior tendência de ser contra a agenda de direitos?
RSL: Geralmente, as pessoas associam direitos a privilégios. Uma das perguntas foi se "a lei das domésticas interfere indevidamente nas relações entre patrões e empregados". Muitos brasileiros ricos pensam que, se a população tiver seus direitos ampliados, eles não terão mais condições de pagar uma empregada doméstica todos os dias. Então, associa-se ao risco que a mobilidade social oferece aos privilégios que a classe média e os mais ricos conseguiram construir ao longo dessa estrutura de desigualdade, de não direitos.
A população do Brasil, historicamente, é relegada ao salve-se quem puder e, em meio a isso, a perspectiva de ampliação de direitos assusta aqueles que, de algum modo, imaginam que conseguiram mobilidade por mérito ou herança. Somos uma sociedade que cultua a violência, o individualismo exacerbado e não valoriza a vida. Nosso futuro depende de reconhecermos na vida o nosso valor máximo a ser preservado e garantido.
DW: Como você analisa este dado: o perfil médio do brasileiro que apoia posições autoritárias é autodeclarado pardo, maior de 60 anos, da classe D/E, menos escolarizado e morador de cidades de até 50 mil habitantes da região Nordeste.
RSL: É exatamente esse segmento da população brasileira que tem, reiteradamente ao longo dos últimos séculos, sido vítima tanto da violência como da violação de direitos. E, com a crise econômica atual, esse segmento da população está muito decepcionado com o Estado, com as políticas sociais e com a não garantia da cidadania.
As respostas apontam um pedido de socorro das classes mais pobres que nunca tiveram seus direitos assegurados, que tiveram uma mobilidade a partir do crescimento econômico, mas, que agora, com a crise, estão novamente sobre o risco do desemprego, da fome e da miséria. E as formas culturais de solução de conflitos ainda são muito permeadas pela violência. Em comunidades menores – quando o cidadão tem menos acesso à informação e é mais dependente de interações comunitárias cotidianas –, elas tendem ser mais tradicionais e, infelizmente, no Brasil a tradição é fazer uso da violência.
DW: Qual é o cenário caso não se atue frente à violência?
RSL: Se não interferirmos nesse processo, posições salvacionistas – como, por exemplo, a plataforma política eleitoral de Jair Bolsonaro – ganham força exatamente ao tentar propor uma solução para o problema. Porém, a solução de Bolsonaro é eliminar os "inimigos”, que, portanto, seriam aqueles que estão amedrontando a população.
Isso é muito perverso, porque, no momento em que a população não reconhece direitos, ela vive amedrontada e aceita posições autoritárias. Isso tem a ver com valores tradicionais, que, em associação com medo, legitimam mais violência. Estamos criando um ambiente em que o país está flertando com uma realidade que nos anos 1940 era muito próxima, como o nazismo, fascismo e ditaduras de direita ou esquerda. O ideal de Justiça é substituído pela ideia de vendeta e revanche contra todos aqueles que, em tese, são vistos como responsáveis pelo atual quadro de insegurança e criminalidade que o país vive.
DW: O que as instituições podem fazer para diminuir a propensão ao autoritarismo da população?
RSL: Primeiramente, o governo deve garantir os direitos previstos pela Constituição de 1988, começando por garantir a vida. O Brasil tem 60 mil homicídios todos os anos e 50 milhões de brasileiros adultos que conhecem pessoas que foram assassinadas. Se tivermos que fazer algo, é repensar as políticas de segurança para garantir a vida.
O segundo é garantir que as pessoas possam ter a liberdade de ir e vir, garantir sua identidade, autonomia, enfim, que a sociedade brasileira possa ser uma sociedade plural, multicultural e onde as diferenças sejam resolvidas numa instância confiável, ou seja, o Estado precisa se tornar mais confiável e as polícias precisam se aproximar da população. Precisamos investir em polícias mais confiáveis e mais capazes de lidar com o problema, e não no padrão violento de enfrentamento do criminoso. Temos que investir no esclarecimento dos crimes e punir seus responsáveis.
DW: Como o Estado está atuando na luta contra a violência e qual seria a melhor forma de fazê-lo?
RSL: Na prática, a violência não está sendo interditada moral ou politicamente. Ou seja, os partidos de esquerda reduzem a violência como fruto da desigualdade, então frisam que é importante investir em redução das causas sociais que a provocam.
Já os de direita, a violência é fruto do narcotráfico e da maldade dos criminosos, então deve-se perseguir os criminosos e eliminá-los. Mas, na prática, não estamos enfrentando de frente o problema da segurança pública, que é construir um Estado que garanta o monopólio da força legítima, consiga administrar conflitos e fazer isso dentro do Estado democrático de direito. E um Estado que garanta a paz, e não o medo, porque, no fundo, é isso que está provocando o medo na população.

Fonte: Carta Capital

Nenhum comentário:

Postar um comentário