Perdidos na Amazônia
Livro da jornalista Elvira Lobato desvenda a realidade das miniemissoras de TV na Amazônia; leia trecho inédito
Apaixonada pela profissão, a premiada repórter Elvira Lobato fez três expedições à Amazônia, duas delas por sua conta e risco, para desvendar a realidade das miniemissoras de TV da região, “ignorada pelos grandes centros urbanos e em rápida transformação social”, como escreve a jornalista na abertura do livro Antenas da Floresta – A Saga das TVs na Amazônia, que será lançado pela Objetiva, do grupo Companhia das Letras, no próximo dia 4 de dezembro.
Apresentamos aqui um dos capítulos do livro, inédito, cedido pela repórter e pela editora para publicação em nosso site. O projeto também resultou em um banco de dados com a identificação dos proprietários de 1.737 canais e em uma série de reportagens publicadas pela Agência Pública em fevereiro de 2017.
A Amazônia Legal tem uma legislação especial que favorece a proliferação de miniemissoras de TV aberta com programação e receitas publicitárias próprias – não operando apenas como retransmissoras como ocorre no resto do país. Uma boa parte delas estão nas mãos de políticos, prefeituras, empresários e igrejas, mas também há canais de TV “dirigidos por jornalistas autodidatas apaixonados pelo ofício, que se esforçam para produzir programação original e arrancar seu sustento dos pequenos anunciantes locais”. São esses personagens que Elvira Lobato nos apresenta, “para que o leitor conheça tal como eu os vi”. Confira.
O agricultor Valdevino Ribeiro da Silva deixou a cidade de Tangará da Serra, em Mato Grosso, junto com a mulher e o filho pré-adolescente para tentar um futuro melhor em Rondônia. Tinha acertado um emprego em Chupinguaia e, por isso, mandou a mudança por caminhão e seguiu de ônibus com a família.
Mas a Amazônia é uma vastidão desconhecida até para os que nasceram lá. O trabalhador humilde errou a localização de Chupinguaia e onze dias depois de sair de Tangará da Serra desembarcou em Rolim de Moura. Tinha percorrido 750 quilômetros e trocado de ônibus várias vezes. Perdeu o rumo e passou do destino almejado. O dinheiro que levou de casa se esgotou ao longo da viagem. Sem um real no bolso, a família foi acolhida em uma casa de apoio para dependentes químicos.
A desventura do agricultor foi mostrada na edição de 17 de janeiro de 2017 do telejornal Balanço Geral, exibido pela afiliada local da Record de Rolim de Moura, a SIC TV (Sistema Imagem de Comunicação), canal 18. O apresentador Almir Satis se sensibilizou com o drama da família e fez uma campanha para recolher dinheiro para que pudessem finalmente chegar ao destino. “Nós num sabia onde era Chupinguaia”, relatou Valdevino, ao lado do filho e da mulher cabisbaixos. Não foi o primeiro errante entrevistado por Satis em Rolim de Moura. Segundo o repórter, esta é uma pauta recorrente no seu noticiário. Ele chegou a registrar o reencontro de parentes que não se viam havia cinquenta anos. Eram migrantes e tinham se desgarrado uns dos outros na Amazônia.
Satis também viera de longe, do Ceará, e chegou ainda menino a Rondônia. Trabalhou no campo até os 24 anos. Graduou-se em marketing, mas sua paixão sempre foi o jornalismo. De tipo franzino – que o fazia parecer ter bem menos do que seus 41 anos –, tinha que “se virar nos trinta” para pôr o jornal no ar. Sua equipe de reportagem era ele e uma repórter, além de um cinegrafista e do pessoal da edição. O telejornal exibia em média seis matérias por dia, mas parte do material era fornecido por emissoras do grupo localizadas em municípios vizinhos.
A Rede Record é representada em Rondônia pela SIC TV, do ex-deputado estadual Everton Leoni. Gaúcho de Porto Alegre, ele começou sua trajetória como repórter de rádio, no Rio Grande do Sul. Chegou a Rondônia no começo dos anos 1980 e tornou-se o maior empresário de radiodifusão do estado. Ao final de três mandatos na Assembleia Legislativa, foi denunciado à Justiça – com outros dezenove ex-deputados – por desvio de recursos públicos. Em 2016, Leoni foi condenado, em primeira instância, a dez anos e seis meses de prisão, e recorreu da sentença em liberdade. O caso teve repercussão nacional, mas não abalou seu prestígio empresarial. Em 2017, o grupo possuía vinte retransmissoras afiliadas à Record com a marca SIC TV, e quatro afiliadas à Record News.
A base da economia de Rolim de Moura é a criação de gado e a agricultura. Portanto, tudo o que afeta o desempenho no campo tem espaço na pauta das televisões locais. O inverno amazônico vai de dezembro a abril. O clima continua quente, mas a temperatura é um pouco mais amena do que a do verão, por serem meses chuvosos. Em Rondônia, as tempestades de inverno são acompanhadas de muitos raios. Como se sabe, as vacas são atraídas pelas árvores – sob cujos galhos costumam se proteger da chuva e do sol –, e estas atraem os raios.
O resultado dessa combinação foi a morte em série de 44 vacas, bezerros e bois, todos atingidos por descargas elétricas num intervalo de apenas dez dias, noticiada no Balanço Geral ao longo de março de 2017. Os incidentes foram tema de duas reportagens veiculadas pela emissora. No primeiro lote, morreram 38 cabeças de gado em uma fazenda em Alto Paraíso. No segundo morreram mais seis, numa fazenda em Novo Horizonte do Oeste. O proprietário filmou os animais estendidos sob a árvore partida ao meio pelo raio e enviou as imagens para a emissora.
Outro tema recorrente são os conflitos agrários: invasões de fazendas por trabalhadores e as desocupações a mando da Justiça para reintegração de posse. Como um repórter que trabalhava na roça ao lado do pai para ajudar no sustento da família cobre estes eventos? Terá um olhar diferenciado? Será mais solidário aos trabalhadores do que o repórter de origem urbana? Em busca de resposta para estas perguntas, me detive em uma reportagem de Almir Satis sobre conflito agrário.
Em novembro de 2016, ele foi enviado pela SIC TV à Fazenda Santa Elina, no município vizinho de Corumbiara, para fazer uma reportagem sobre o assassinato do vaqueiro José Alves da Silva por supostos integrantes da Liga dos Camponeses Pobres, dissidência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo a reportagem, dez homens mascarados e armados renderam cinco funcionários da fazenda, que foram despidos e torturados. O vaqueiro foi baleado e esfaqueado no abdômen. Os agressores fugiram depois de queimar as roupas das vítimas.
Um mês antes do crime, a Polícia Militar havia retirado da fazenda 150 integrantes da Liga dos Camponeses Pobres que ocuparam uma faixa da propriedade por oito meses. Quando Almir e o cinegrafista chegaram ao local, só encontraram as cinzas onde as roupas foram queimadas. Ali mesmo o repórter gravou a versão dada pela polícia, e relembrou que a fazenda havia sido palco do maior conflito agrário registrado até então no estado – o Massacre de Corumbiara –, ocorrido em agosto de 1995, que deixou dez mortos, entre eles uma criança e dois policiais. Eis como o repórter descreveu a agressão aos empregados e a morte do vaqueiro:
– Criminosos intitulados trabalhadores da Liga dos Camponeses Pobres voltam a causar terrorismo na fazenda Santa Elina e matam um vaqueiro com requintes de crueldade. Os marginais começaram a espancar as vítimas violentamente, usando facão e pedaços de madeira. A tortura durou cerca de meia hora, e só acabou quando os criminosos atiraram quatro vezes contra o vaqueiro. Um dos agressores desferiu um golpe de faca na barriga do vaqueiro, deixando as vísceras expostas. Depois o bando falou que pertencia à Liga dos Camponeses Pobres e prometeu retornar para destruir toda a fazenda. O bando também reclamou da ação da polícia na reintegração de posse ocorrida em 18 de outubro, e deixou claro que iria se vingar.
A TV mostrou imagens desfocadas do corpo do vaqueiro estendido no chão, cedidas pelo site Comando 190, que só trata de assuntos policiais e é alimentado com fotos e vídeos fornecidos pelas delegacias policiais dos principais municípios da região. A reportagem de Almir Satis sobre o assassinato do vaqueiro e a agressão aos empregados foi ilustrada com imagens aéreas – filmadas do helicóptero da polícia – da expulsão das 150 pessoas da fazenda no mês anterior. O vídeo mostrou os policiais com escudos e cães que avançavam em bloco, como um pelotão, e o recuo dos ocupantes encapuzados, que formavam outro pelotão.
Perguntei a Almir Satis por que usou os termos “terrorismo”, “bando” e “marginais”. “Eu os chamei de criminosos porque torturaram os empregados e assassinaram um vaqueiro. E são bando porque agiram em grupo. Para mim, não há outra forma de definir o que fizeram”, afirmou. Indaguei-lhe, então, se o fato de ter sido trabalhador rural não influenciava seu olhar sobre os conflitos agrários. Sua resposta mostrou que tinha uma posição sensível e elaborada sobre o assunto.
– Esse é um tema que mexe com meus sentimentos. Saber que o trabalhador só quer um alqueire de terra para sustentar sua família, enquanto há grandes fazendeiros que ocupam irregularmente áreas da União. Invasão de propriedade é ilegal, mas é preciso ver o contexto que existe por trás. Houve muita falcatrua na forma como os fazendeiros se apropriaram de terras e, infelizmente, o poder protege os grandes. Mas esta é uma opinião pessoal. Procuro fazer as reportagens da forma mais imparcial possível.
Em 2017, Rolim de Moura era a sexta cidade em população do estado de Rondônia, com 56 mil habitantes. Além da SIC TV, outras duas retransmissoras exibem programação local: a RedeTV! Rondônia (canal 6) e a TV Allamanda (canal 8). A primeira pertence ao Grupo SGC (Sistema Gurgacz de Comunicação), do senador pedetista e ex-prefeito de Ji-Paraná, Acir Gurgacz. A TV Allamanda pertence às filhas de Rômulo Villar Furtado, o homem que comandou o Ministério das Comunicações, como secretário-executivo, por dezesseis anos. Villar Furtado foi o segundo na hierarquia de poder doministério nos governos dos generais Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo e do primeiro presidente civil após a ditadura, José Sarney. Ele autorizou duas concessões de televisão (tTV Cacoal, canal 9, e Porto Velho, canal 13) e 23 retransmissoras de televisão em Rondônia para empresas em nome de sua então mulher, a deputada federal Rita Furtado (falecida em 2011), e das filhas.
Em 1995, como repórter da Folha de S.Paulo, eu o interpelei sobre esse assunto e ele respondeu à minha pergunta com uma provocação: “Não há ilegalidade alguma no fato de eu possuir emissoras. E, se é só isso que meus adversários têm contra mim, depois de dezesseis anos como secretário-executivo do Minicom, estão me dando um atestado de bons antecedentes”.
Fonte: Pública
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