Paulo Moreira Leite
Provocado pela entrevista do deputado Marcelo Freixo
(PSOL-RJ) à Folha de S. Paulo, o debate sobre a unidade necessária dos
trabalhadores e da população explorada na campanha presidencial de 2018 não
deve terminar tão cedo, até porque não se trata de uma iniciativa isolada.
Estimulada pelo PSOL, a possível entrada de Guilherme
Boulos na campanha pode produzir uma rachadura expressiva, já que se trata de
uma liderança de grande expressão junto às camadas populares.
Um debate responsável e lúcido sobre o assunto é mais
do que urgente, até porque, pela primeira vez desde 1989, o PCdoB apresenta-se
na campanha com uma candidatura própria.
Minha opinião é que, no Brasil de 2017, o debate
presidencial não envolve projetos de governo mais ou menos à esquerda, mais ou
menos radicais. Enfrentamos outra encruzilhada da história, na qual até uma
candidatura de perfil fascista - Jair Bolsonaro - aparece em segundo lugar em todas as
pesquisas de intenção de voto.
O que está em jogo é o caráter do regime político que estará
em vigor depois de 2018. Por essa razão enfrentamos uma campanha eleitoral
embrulhada por diversas medidas de exceção, a começar pela ameaça permanente à
candidatura de Lula, que terá de ser defendida desde o 24 de janeiro até a
contagem final dos votos, em outubro.
Não se debate o pós-Lula.
A agenda mudou. O debate é saber se haverá um
pós-Temer ou se teremos a continuidade com outro nome.
O resultado da eleição pode ser o elemento decisivo
para o retorno do país a um regime democrático, com a recuperação das garantias
previstas pelo Estado Democrático de Direito – ou irá permitir a preservação de
um regime instituído a partir do golpe contra Dilma, normalizando a exceção.
Não se descarta a introdução do parlamentarismo, sempre sonhado pelas elites
sem voto e tantas vezes rejeitado por uma população ciente de sua soberania.
Caso seja derrotada em fevereiro de 2018, a reforma da
Previdência voltará na hipótese de o continuísmo-Temer seja vitorioso.
Enquanto a reconstrução do país irá exigir decisões em
profundidade, como a convocação de uma Constituinte para desfazer um legado
inaceitável do ponto de vista da maioria dos brasileiros – como confirmam as
pesquisas sobre privatizações - os donos do poder trabalham pela via rápida dos
projetos de lei e emendas constitucionais, que dispensam consultas ao povo.
Não vamos exagerar na nostalgia. Do ponto de vista dos
donos do poder, Lula representa um risco visível, não por aquilo que foi, mas
por aquilo que pode ser.
Sua candidatura é uma ameaça concreta ao projeto – já
em pleno andamento – de resgate da oitava economia do planeta pelos donos
do mercado mundial.
A simples possibilidade de Lula apresentar-se a uma
disputa da qual já deveria ter sido excluído há muito tempo cria incertezas e
distúrbios inconvenientes aos esquemas de poder que Temer-Meirelles procuram
estruturar desde que se apossaram do Estado, onde a continuidade sem riscos
deve ser assegurada a qualquer preço.
É por isso que se trabalha a favor de uma decisão
rápida, irrecorrível, para esmagar a candidatura Lula e encerrar a disputa de
uma vez.
Não se quer enfrentar as incertezas próprias de toda
disputa eleitoral – ainda mais quando é justamente o adversário que entra em
campo com um formidável cesto de votos, mostrando que grande parte da população
já fez sua escolha.
A presença de vários concorrentes alinhados com o
golpe Temer-Meirelles, faz parte da coreografia necessária a toda disputa
eleitoral, na qual a classe dominante tem prazos e recursos para testar a
melhor mercadoria. A presença de Paulo Guedes no ouvido de Bolsonaro indica que
até sua candidatura pode ser admitida pelo grande poder econômico como
instrumento para confrontar Lula.
É nesse ambiente político que o debate sobre unidade
se coloca.
Quase tão antiga como a luta dos trabalhadores contra
a exploração do capitalismo, a divisão entre suas lideranças marca vitórias e
tragédias do século XX.
Não custa lembrar, por exemplo, que a carnificina
verbal entre comunistas e
socialdemocratas está na raiz da vitória de Adolf Hitler na Alemanha, em 1933.
Convencido de que a tomada do poder estava ao alcance
da mão, o PC alemão criou a tese de que a socialdemocracia se transformara em
“social-fascismo”. Denunciando traições das lideranças reformistas no passado,
como adversários de Lênin na Revolução de 1917, de Rosa Luxemburgo no
pós-guerra alemão, os comunistas rejeitavam toda e qualquer aliança política
com lideranças reconhecidas por uma parcela imensa dos trabalhadores de seu
país.
O resultado eleitoral foi a vitória do nazismo. Com
uma vantagem minúscula sobre o PC alemão, que nem de longe chegava a 50%+1 dos
votos, o nazismo instituiu uma ditadura que governou o país por 12 anos, até
ser derrubada por uma coalização de forças externas lideradas por uma aliança
entre Stálin e Roosevelt.
Num contexto diferente, de Frentes Populares, um mesmo
ambiente de divisão entre lideranças operárias ressurgiu na Espanha da guerra
civil. As disputas incluíram trocas de tiros em praça pública e até crimes de
sequestro e assassinato entre stalinistas e não-stalinistas, bloqueando
qualquer caminho para a resistência.
É neste horizonte que se pode pensar a entrevista de
Freixo. Ele disse: “a gente vive um momento de reconstrução: qual esquerda a
sociedade vai enxergar? Porque precisa enxergar o diferente. Não sei se esse é
o momento de unificar todo mundo, não. Até porque a direita também está muito
fragmentada: Jair Bolsonaro, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles...”
Em outra passagem, a repórter Anna Virginia
Balloussier pergunta pelos movimentos de lideranças do PT, como o ex-ministro
da Saúde Alexandre Padilha, que pretendem convencer outros partidos de esquerda
a aliar-se a Lula e abrir mão de candidatura própria. Freixo responde:
”Não há a menor possibilidade. Ele fala isso pra tentar
colocar a gente numa caixa de sectários. Se quisessem recompor a esquerda, não
andariam de braços dados com Renan Calheiros, em Alagoas”.
Considero as respostas de Freixo irresponsáveis para
um político com sua estatura, três vezes eleito deputado estadual, com direito
a 350.000 votos na eleição mais recente.
Como deputado, Freixo fez um trabalho corajoso de
denúncia das milícias do Rio de Janeiro, atuação indispensável num país onde a
violência da PM contra os pobres, negros e favelados é uma das bases de
sustentação de um sistema de dominação social pelo racismo e pela pobreza.
Mostrou independência diante do governo Sérgio Cabral, com o qual o PT chegou a
cultivar uma proximidade excessiva.
Ao longo do processo, um irmão e um assessor do
deputado foram assassinados, em circunstâncias em que é legítimo suspeitar de
retaliação pelo trabalho parlamentar.
A liderança de Freixo no Rio de Janeiro, estado no
qual nenhuma força progressista conseguiu firmar-se junto às camadas populares
desde Leonel Brizola, que morreu em 2002, ajuda a entender a presença no
segundo turno da campanha municipal de 2016. Apesar disso, com 1,5 milhão de
votos, permaneceu numa distância quilométrica do primeiro lugar.
Foi em 2016 que certo espírito anti-Lula se manifestou
abertamente. Num gesto que lhe valeu pontos junto a família Marinho - que
também afagava Lula quando este confrontava Brizola, na época considerado
adversário principal pelos donos da Globo - Freixo fechou o palanque para Lula
no segundo turno.
Em 2017 seus aliados, que organizaram grandes comícios
musicais contra Michel Temer e pelas Diretas Já, instituíram uma nova
orientação de ingresso nos palanques: nenhum orador seria identificado pelo seu
partido político nem pela central sindical a que pertencia.
Era um veto óbvio a lideranças ligadas a CUT e ao PT e
eu acho difícil negar que essa postura contribuiu – entre vários fatores, é bom
sublinhar - para esvaziar um movimento de resistência que marcou os primeiros
meses de 2017.
Do ponto de vista do debate de 2018, a postura de
Freixo representa um retrocesso. Em 2014 ele batalhou pela unidade com o PT no
segundo turno da eleição presidencial, diferenciando-se de Luciana Genro, a
candidata de seu partido, que pregou neutralidade entre Dilma e Aécio Neves.
Considerando a deterioração política do país a partir
de 2016, quando a própria democracia foi derrotada através de um golpe e a
turma que empurrava Aécio Neves assumiu o poder de Estado da forma que todos
sabemos, é surpreendente que sua prioridade seja saber “qual esquerda a
sociedade vai enxergar”.
A questão é de análise de conjuntura: alguém acredita
que este é o debate prioritário no Brasil de 2018?
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