domingo, 21 de janeiro de 2018

…Mas no meu canto estarão sempre juntos...

…Mas no meu canto estarão sempre juntos...

JOSÉ ARBEX JR.
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…Mas no meu canto estarão sempre juntos...
Por José Arbex Jr.
Este é o texto mais difícil que já escrevi. Comecei a produzi-lo há vinte anos, quando conheci o Sérgio de Souza, então diretor da revista, para sugerir um artigo sobre os 150 anos do Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels. Não conhecia pessoalmente o Serjão, nem sabia qual seria a sua reação à proposta. O resultado foi uma relação de colaboração que ultrapassou a sua morte (em 2008) e se manteve ao longo dos anos, com Wagner Nabuco à frente da Caros Amigos. Agora, tenho que dar um “fecho” nessa história, e tudo o que tento escrever resulta insuficiente, inexato, a meio caminho entre o sentimentalismo piegas e a racionalização impotente. O que dizer de um projeto fantástico e generoso, mas interrompido num momento em que ele é mais necessário do que nunca?
“Pena que pena que coisa bonita, diga/ Qual a palavra que nunca foi dita, diga...”.
Não encontro, definitivamente, a palavra que nunca foi dita para expressar o que sinto agora. Mas sei que todas as palavras que quis dizer, nas duas últimas décadas, foram acolhidas pela Caros Amigos. Não apenas as minhas palavras, mas a de todos os colaboradores e redatores que passaram pela revista, sempre, em todas as situações. Nunca houve, na revista, nada parecido com censura, controle ideológico, “recomendações especiais”, nem muito menos concessões ou quaisquer espécie de favores em troca de anúncios, verbas ou “benefícios” de qualquer natureza. Nunca. Mesmo os seus detratores – e não são poucos, alguns até mesmo travestidos de “esquerda” – são incapazes de apontar qualquer prática jornalística maliciosa, mal intencionada, orientada pela maracutaia. A revista se manteve íntegra, o tempo todo.
Costumo provocar o Wagner, dizendo que ele é o único stalinista decente que conheço. Éramos “inimigos” nos anos universitários, no final da década de 70, quando ele era filiado ao PCB e eu à Organização Socialista Internacionalista (OSI), impulsionadora do grupo conhecido como Liberdade e Luta, de inspiração trotskista. Disputávamos com furor a liderança das assembleias, as direções dos centros acadêmicos e a do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade de São Paulo. Perdi o Wagner de vista nos anos 80, para reencontrá-lo apenas em 1998, quando, numa das primeiras conversas que tive com o Serjão, ele me apresentou ao então diretor comercial da revista: era ninguém menos que o representante do Mal, em pessoa.
Wagner fez uma carreira profissional muito bem sucedida no Grupo Abril. Era um dos seus representantes comerciais mais premiados e poderia ter seguido uma trajetória promissora, mas optou por apostar todas as fichas no projeto da Caros Amigos. Ousou combinar as aspirações políticas da juventude com a convicção (palavra muito em moda, hoje em dia) de que uma revista bem feita, com profissionais da qualidade do Serjão à frente, poderia emplacar no Brasil. O que se seguiu foi uma história de muitas turbulências, sobre as quais não faz sentido falar agora. Mas faz sentido lembrar as muitas, muitas realizações.
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Caros Amigos manteve aceso um facho brilhante de luz nos anos mais escuros do neoliberalismo, quando o “mercado” parecia triunfar sobre todo o planeta. Suas reportagens, sempre denunciando as violações dos direitos humanos, as ações dos esquadrões da morte, as ofensivas do capital, as práticas opressivas de uma sociedade patriarcal, machista e homofóbica, a ação predatória e destruidora de uma “grande mídia” que se comporta como o intelectual orgânico da burguesia e, em contrapartida, a exposição daquilo de mais brilhante que se produz nas periferias, a poesia e a arte popular, a criação de artistas e intelectuais que nunca aparecerão na Rede Globo – essa fantástica profusão de matérias jornalísticas que só poderiam ser encontradas nas páginas de Caros Amigos foi muitas vezes premiada e inspirou as vidas de dezenas de milhares de leitores pelo Brasil afora. Várias vezes, a redação recebeu cartas de famílias pobres que até deixavam de fazer alguma das refeições, em determinado dia do mês, para comprar a revista. Pode haver um reconhecimento mais autêntico do que esse?
Caros Amigos nunca ocultou seu compromisso com a luta pela transformação social e política do Brasil e do mundo, explicitada na linha fina que acompanha o seu nome: a primeira à esquerda. Muito ao contrário, fez disso o seu orgulho e a sua razão de ser: todos os colaboradores que passaram pela revista portam histórias e nomes comprometidos com essa perspectiva. Construiu, por isso, uma trajetória altiva, soberana. Se a revista encerra agora suas atividades num quadro melancólico, pode adotar para si as palavras de Darcy Ribeiro: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.” Não são muitos os que conseguem dizer o mesmo, sem provocar risos nos ouvintes.
A revista pagou seu preço pela ousadia: de um lado, sofreu o cerco conservador de um mercado publicitário dominado sem mediações pelo capital financeiro, cujos agentes, obviamente, queriam ver a Caros Amigos pelas costas; combinado com isso, vieram a imensa crise econômica e o desemprego, com o efeito de uma bomba atômica sobre a venda de assinaturas e em banca. As circunstâncias contribuíram para afastar nossos queridos leitores. Encerro, então, esse difícil depoimento, com uma despedida e uma certeza. Apenas uma batalha foi encerrada, por enquanto. Mas a vida e a luta continuam. Novos outubros virão, isso é tão certo quanto o nascer do sol num novo dia. Despeço-me de todos os companheiros e companheiras da redação, com quem compartilhei muitos momentos importantes e felizes. Despeço-me também de todos os leitores e leitoras que sofreram o incômodo de digerir os meus textos. Nós vamos nos reencontrar, por aí. E novamente peço a ajuda de Paula e Bebeto:
“Eles partiram por outros assuntos, muitos / Mas no meu canto estarão sempre juntos, muito / Qualquer maneira que eu cante esse canto / Qualquer maneira me vale cantar / Eles se amam de qualquer maneira, vera / Eles se amam é pra vida inteira, vera / Qualquer maneira de amor vale o canto / Qualquer maneira me vale cantar.”


 José Arbex Jr. é jornalista 


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