“Não foi só mudança em quem ocupa a presidência”: resumo da 1ª aula do curso sobre o golpe na UnB
Publicado no blog do Demodê
POR LUIS FELIPE MIGUEL, professor de ciência política da UnB
O uso da palavra “golpe” para designar os acontecimentos políticos de 2016, no Brasil, tornou-se motivo de disputa. Trata-se de algo recorrente: como “golpe” possui conotação negativa, remetendo a uma ação que foge às regras e é desenhada para pegar o oponente desavisado. Na maior parte dos contextos, “golpe” remete a um ato de deslealdade. Nenhum agente político a reivindica para si. “Golpista” é, sempre, o outro. As forças que derrubaram o presidente João Goulart por meio de um levante militar não admitiam ter desferido um golpe; enquanto estiveram no poder, o nome oficial daquela ação foi “Revolução de 1964”. E assim por diante.
Isso não quer dizer, porém, que a palavra “golpe” seja oca, despida de qualquer significado para além de seu uso interessado na controvérsia política. Com o passar do tempo, uma compreensão razoavelmente consensual do processo histórico recente há de se decantar. Não por imposição do dono do poder no momento, não por portaria ministerial, mas pelo debate no campo científico, tal como ocorreu com a derrubada de Jango em 1964.
A grande maioria dos cientistas sociais respeitáveis – isto é, que são levados a sério por seus pares – sustenta que ocorreu, em 2016, uma ruptura ilegal da ordem liberal-democrática então vigente no Brasil. Mas é necessário reconhecer que, até por conta da ofensiva intensa e por vezes agressiva do governo e de seus apoiadores para impedir que se fale em “golpe”, o debate ainda está vivo. Tenta-se impor o uso de impeachment como termo “neutro”, mas – como costuma acontecer – a neutralidade tem lado. Ao tomar a forma pela essência, o uso de impeachment, sem qualquer outra qualificação, representa uma efetiva negação da existência de um golpe.
Para que o debate avance, é preciso construir um conceito de golpe político que não seja arbitrário – isto é, que seja sensível à especificidade das circunstâncias, mas também esteja fundado no uso historicamente estabelecido da expressão. Afinal, como dizia Wittgenstein, o significado de uma palavra se busca no seu uso. Um conceito assim nos permitirá diferenciar as situações concretas. Mais ainda, creio que, construído de forma rigorosa, este conceito permitirá a caracterização do impedimento da presidente Dilma Rousseff, em 2016, como “golpe”, no sentido que a (boa) ciência política deve dar à palavra.
Há dois argumentos mobilizados pelos opositores da definição do impeachment de 2016 como golpe, que devem ser analisados previamente, a fim de desbastar o terreno e poder avançar numa definição. Primeiro, o fato de que rituais legais foram obedecidos. Uma denúncia foi apresentada ao presidente da Câmara dos Deputados, a denúncia foi acatada, formou-se uma comissão que decidiu dar seguimento ao processo, o plenário da Câmara aprovou e encaminhou ao Senado etc. A cada passo, falaram representantes da defesa e da acusação. O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, deu seu beneplácito a tudo. Do que reclamar, então?
Ocorre que a lei não se esgota na formalidade. Se um cidadão é considerado culpado de um crime, por um juiz ou um tribunal de júri, sem que exista nenhuma evidência contra ele e sem que provas de sua inocência sejam levadas em conta, não vamos dizer que a lei foi obedecida. Também o golpe de 1964 quis se revestir de respeito a legalidade: por exemplo, convocou o Congresso para declarar a vacância da Presidência da República. É necessário investigar, portanto, a substância do processo contra Dilma, cujo ponto de partida foi a chantagem de Eduardo Cunha. Não vou aprofundar a questão do crime de responsabilidade. A grande maioria dos juristas sérios apontou a inexistência de crime de responsabilidade nos fatos relatados na denúncia; para uma análise aprofundada e desapaixonada, indico, entre muitos outros possíveis, o texto de Marcelo Labanca Corrêa de Araújo e Flavio José Roman publicado no portal jurídico Jota; vale a pena consultar, ainda, o artigo do cientista político Frederico de Almeida, especialista na atuação do Poder Judiciário, em outro portal jurídico, o Justificando.
As alegadas “pedaladas fiscais” não provêm fundamento suficiente, seja porque não consistem em atos de responsabilidade pessoal direta do chefe do Poder Executivo, seja porque não constituem crime contra a lei orçamentária, tal como tipificado no capítulo 5 da lei 1.079/1950, que regula o processo de impeachment no país e as possibilidades para que ele seja desencadeado. A “pedalada” pode ter sido um pecadilho, segundo aqueles que acreditam que a manobra era necessária para manter o financiamento dos programas sociais, como queria o governo, ou uma contravenção mais grave, de acordo com a visão mais alinhada com o regime de terror contábil que a Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu como marca da boa administração pública. Mas crime certamente não foi.
Ninguém nega que ações fiscais similares às então imputadas como crime foram realizadas por todo os presidentes desde Fernando Henrique Cardoso, sempre com aprovação do Poder Legislativo. Continuaram sendo praticadas por Michel Temer. Foram e são praticadas por vários governadores estaduais. O afastamento de Dilma Rousseff, em desacordo ao tratamento dado em casos similares, violou os princípios da impessoalidade da lei e da isonomia.
Em suma, no mínimo havia margem de dúvida suficiente para que se evitasse uma medida tão drástica quanto a deposição de uma governante eleita pelo voto popular. A maior parte dos parlamentares, na verdade, desprezou a acusação na hora de condenar a presidente, falando em “conjunto da obra” e alegando que era um “julgamento político” (como se isso significasse que os elementos comprobatórios pudessem ser desprezados, quando na verdade significa que as consequências políticas devem ser pesadas em adição às provas). Há pouca margem para duvidar que o que ocorreu foi a busca de um pretexto para retirar do cargo a presidente.
O segundo argumento contra a caracterização da deposição de Dilma como golpe é a ausência de um momento militar, aquele em que as forças armadas tomam a frente do processo e substituem o governo por um ato indisfarçado de violência. Mas há muitos casos, aqui mesmo perto de nós, em que a presença das forças armadas foi bem menos evidente. Os dois exemplos mais óbvios foram a deposição dos presidentes Manuel Zelaya, de Honduras, em 2009, e de Fernando Lugo, do Paraguai, em 2012. Lembro também do “autogolpe” de Alberto Fujimori, no Peru, em 1992, mas lá a participação militar foi mais visível. Fala-se, em relação a estes processos, e em relação ao Brasil também, de “golpe de novo tipo” ou “golpe brando”.
Creio, no entanto, que o que esses golpes de novo tipo fazem é limpar o conceito de golpe de seu qualificativo implícito (“militar”), isto é, permitem que entendamos que o golpe militar, por mais frequente que seja ou tenha sido, é apenas um subtipo de uma categoria mais ampla, o golpe, tout court. A presença das forças armadas é esperada pelo fato de que elas dispõem dos meios privilegiados para produzir uma intervenção disruptiva na ordem política, que são os meios da violência física, e pelo fato de que, caso a legalidade conte com sua lealdade e com a disposição de que elas sejam acionadas, os golpes de outro tipo dificilmente prosperarão.
Há situações, porém, em que as forças armadas se abstêm de uma intervenção direta, por fatores diversos e não necessariamente excludentes. Um deles pode ser uma determinada compreensão profissional de sua “neutralidade política”, impedindo uma ação mais determinada em favor da legalidade. Outro é o entendimento, por parte de setores simpáticos à derrubada ilegal do governo, de que sua presença faria ampliar a rejeição à empreitada golpista e mesmo alienaria alguns de seus participantes – como tende a ocorrer em países que têm fresca a memória de ditaduras saídas de golpes militares, o que é o caso do Brasil. Nestas situações, está aberta a possibilidade de um golpe não-militar, em que as forças armadas se mantêm passivas ou apenas manifestam uma inclinação discreta em favor dos golpistas.
É importante lembrar que a linguagem corrente, que não esgota o conceito, mas se relaciona com ele, trabalha com dois sentidos paralelos. O golpe remete à violência física, como um golpe de caratê, mas também a um ardil, ao uso da astúcia, como, por exemplo, quando falamos do “golpe do bilhete premiado”. Isso é importante exatamente para lembrar que o golpe tout court não exige a presença da violência física. Mas o golpe político, que é o que nos interessa, como é definido?
Há uma literatura já de séculos para discutir golpe – e eu aqui me inspiro fortemente nos trabalhos de dois colegas, o prof. Alvaro Bianchi, da Unicamp, e o prof. Renato Perissinotto, da UFPR, que, no contexto mesmo do golpe de 2016, tiveram o trabalho de recuperar essa discussão. Com uma abordagem diferente, o trabalho do linguista Sírio Possenti, professor da Unicamp, também foi muito útil.
No século XVII, Gabriel Naudé, um maquiaveliano francês, definia o golpe de Estado como uma ação arrojada e extraordinária, que o príncipe executa quando está em situação desesperada, “contrariamente à lei comum, sem manter qualquer forma de ordem ou justiça, colocando de lado o interesse particular em benefício do bem público”. Vejam que Naudé apresenta uma definição bastante positiva de golpe de Estado, vinculando-o à promoção do bem comum. Se esta fosse a definição dominante, Temer hoje estaria batendo no peito e dizendo, com orgulho, “sou golpista” – e estaria, creio eu, bastante errado.
Temos que entender o contexto intelectual em que o autor se movia. Naudé associava o bem público ao bem do Estado (a “razão de Estado”) e sobrepunha o príncipe ao Estado. Portanto, uma aplicação aos dias de hoje, em que essas percepções se encontram vencidas, certamente é anacrônica. Mas podemos reter dois elementos desta definição seiscentista. O primeiro é que o conceito não inclui o recurso à violência física. Os exemplos que o próprio autor dá em geral incluem carnificinas, o que é natural, uma vez que a política feita entre as elites, no século XVII, era muito mais marcada pela violência aberta do que hoje, mas o conceito não contempla este aspecto.
O segundo elemento a reter da definição de Naudé é que o golpe é uma ação fora das regras, contrária à lei, desferida por quem já dispõe de poder. Por isso, podemos pensar num golpe de Estado praticado pelos militares, pelo parlamento, pelo judiciário, mesmo por um presidente ou um rei que buscam ampliar seu poder (como Luís Bonaparte em 1851 ou Pedro I em 1824), mas não por camponeses pobres ou sem-teto.
Eu me detive um pouco nesse ponto de partida, mas não tenho intenção de fazer um percurso muito longo. Passo diretamente à obra talvez mais famosa desta literatura, o livro Técnica do golpe de Estado, escrito em 1931 pelo italiano Curzio Malaparte, que era militante do Partido Fascista e deixou de sê-lo por causa desta obra. Malaparte define o golpe de Estado como sendo simplesmente a tomada do poder pela força. Golpe de Estado e revolução são englobados numa mesma definição.
Como observou Bianchi, a literatura posterior não segue este caminho e distingue as duas ideias. Acompanho o texto do professor da Unicamp e aponto, como exemplo seguinte, o livro de Edward Luttwak, um especialista em questões militares que serviu ao Departamento de Estado dos Estados Unidos. Seu livro de 1969, Coup d’etat: a practical handbook, distingue três tipos de mudança extralegal no poder: a conspiração palaciana, cujo centro é o próprio governante; o golpe de Estado, em que funcionários do Estado se colocam contra a liderança política; e a insurreição popular.
Embora a definição em si seja mais ampla, o próprio Luttwak a restringe indicando o protagonismo das forças militares no golpe de Estado. Essa percepção era dominante sua época. Por exemplo, Alan Wells, que nos anos 1970 escreveu sobre golpes em países africanos, disse que golpe é “a captura pela força (forceful seizure) da maquinaria de governo do Estado” e que são os militares que “devem agir para provocar um golpe de estado”. No entanto, há aqui também um efeito de contexto, já que, como bem apontou Perissinotto, é “uma definição bastante adequada para descrever as derrubadas de governo na África subsaariana nos anos 1960”, mas não necessariamente para outros tempos e lugares.
Vou trazer a discussão para a América Latina, que é mais próxima de nós. Sofremos, nos anos 1960 e 1970, uma série de golpes de Estado. Embora a participação de civis tenha sido importante (no caso do Uruguai, por exemplo, o presidente Juan María Bordaberry, um civil, foi quem deflagrou o golpe em 1973), é impossível negar o protagonismo dos militares. A grande maioria dos regimes nascidos dos golpes se alinhava à direita, mas houve também o golpe de 1968 no Peru, que levou ao poder o general Velasco Alvarado, com um programa socialista.
Nos anos 1980, vivemos a era das “transições democráticas”, endossadas por muitos dos grupos que haviam apoiado a ruptura política pró-autoritária anos antes. Creio que a experiência recente das ditaduras chefiadas pelas forças armadas ajuda a explicar porque o elemento militar não se encontra à frente dos golpes contemporâneos. Há a memória de que as forças armadas, uma vez que empalmam o poder, podem contrariar os interesses de seus antigos aliados. Em 1964, por exemplo, muitos políticos que apoiaram a derrubada de Jango imaginavam que os militares manteriam as eleições presidenciais do ano seguinte e eles poderiam disputar (sem os candidatos de esquerda, todos presos, exilados e com direitos cassados) – e deu no que deu.
E há o entendimento de que uma fachada, mesmo que mínima, de respeito à democracia e às leis vigentes reduz os custos de dominação. É por isso que Carlos Barbé, no Dicionário de política organizado por Norberto Bobbio, Niccola Mateucci e Gianfranco Pasquino, indica que nosso entendimento de golpe de Estado precisa ser ajustado ao constitucionalismo moderno; o golpe tem como momento central a substituição do governo, em desacordo com as regras constitucionais, por integrantes do Estado. Seu agente, portanto, não precisa estar vinculado às forças armadas.
Eu me alinho, assim, à definição operacional sucinta que Bianchi oferece: “golpe de estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político”. Seu sujeito pode ser uma ou outra parte do Estado ou então uma coalizão delas; seus meios podem incluir, para voltar às categorias de Maquiavel, a força ou a astúcia, podem ser abertamente ilegais ou então torcer a lei de maneira a descaracterizá-la por completo.
Com essa definição em mãos, é possível encontrar mais uma evidência crucial de que passamos por um golpe de 2016: o comportamento do novo governo, após a deposição de Dilma Rousseff. Antes era denunciado e no atual momento está amplamente demonstrado que não se tratou de uma intervenção pontual, destinada a retirar uma governante indesejada por alguns, o que já constituiria uma ilegalidade, mas foi o momento fundador de um amplo realinhamento das forças políticas e de implantação de um projeto político que, submetido às regras até então vigentes, havia sido repetidas vezes derrotado nas urnas.
Este é um elemento que me parece extremamente importante. A ruptura de 2016 facultou a implantação de um projeto que não conseguira sucesso seguindo as regras imperantes do jogo político. Portanto, mesmo que se afirme que é duvidosa a ilegalidade do afastamento da presidente (tese da qual discordo), ou seja, que o impeachment não foi golpe, fica claro que ao menos o impeachment foi usado para se desferir um golpe.
Dizer que foi um golpe não é uma forma de desqualificar o atual governo. Como falei, seria possível atribuir um sentido positivo ao golpe, bater no peito e dizer “sim, eu golpeei a Constituição, mas foi para o bem de todos”. Entender que foi um golpe, não a mera substituição de uma presidente, é fundamental para compreender a natureza, a profundidade e a abrangência das transformações em curso no país.
Muitos que falam em golpe não entendem isso. Um dos fatores de confusão foi o comportamento de alguns setores derrotados com o golpe, inclusive dentro do próprio PT, que denunciavam o golpe e ao mesmo tempo agiam como se fosse possível reconstituir no curto prazo a ordem política fraturada ou mesmo como se o jogo pudesse continuar a ser jogado como antes – por exemplo, no episódio das negociações para a montagem das mesas da Câmara e do Senado. Mesmo agora a ficha não caiu completamente para todos, como mostram algumas das movimentações sobre alianças eleitorais ou então a continuidade da crença de que basta obter a maioria na competição eleitoral para ter a palavra final sobre as disputas em curso.
Não foi só uma mudança em quem ocupa a presidência. É uma mudança profunda, que se pretende definitiva, imposta unilateralmente e em desrespeito à lei por grupos de dentro do Estado, nas regras do jogo político. Em uma palavra: é mesmo um golpe.
Este texto é um resumo da primeira aula da disciplina “Tópicos especiais em Cência Política 4: O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, do curso de bacharelado em Ciência Política da Universidade de Brasília.
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