América Central
A complexa crise que explode na Nicarágua sob o governo de Ortega
por Murilo Matias — publicado 23/07/2018 00h30, última modificação 20/07/2018 17h33
O país transforma-se em palco de violentos conflitos envolvendo o governo sandinista e opositores
INTI OCON / AFP
A média é de quatro mortes por dia, diz socióloga da Nicarágua que denuncia violência
Faltam três anos e meio para Daniel Ortega e Rosário Murillo chegarem ao fim do mandato presidencial para o qual foram eleitos em 2016, com 72% dos votos garantindo a continuidade do projeto sandinista em eleição contestada pelos adversários.
O tempo parece demasiado para parte da sociedade que defende a antecipação do processo eleitoral para 2019 ao considerar o governo responsável pelas mais de trezentas mortes registradas desde o início da crise envolvendo não somente os nicaraguenses, mas sobretudo interesses de agentes externos que estão em jogo no pequeno, mas recorrentemente turbulento país cravado no coração da América Central.
O novo cenário de disputas, que avança desde abril, foi simbolizado pela imagem de estudantes feridos após a violência causada pela truculência das forças oficiais diante de protestos contra a reforma previdenciária pretendida pela administração central, segundo a versão dos oposicionistas.
O efeito imediato de condenação à postura de Ortega trouxe uma enxurrada de críticas internacionais aos sandinistas, somada à pressão interna contra o casal presidencial que até então liderava uma das nações mais estáveis da região.
A pauta dos protestos mostrou-se rapidamente mais abrangente ao tema relativo à previdência, uma vez que o Executivo recuou dos planos de aumentar em 5% a contribuição para algumas faixas após a repercussão negativa entre os cidadãos.
Mesmo com derrubada da proposta os manifestantes intensificaram a convocação para que as ruas fossem ocupadas a fim de mostrar a necessidade de renovação da política nacional, liderada sobretudo pelo movimento Aliança Cívica pela Justiça e Democracia cujo site na internet oferece as versões em inglês e espanhol.
"Somos formados por um grupo de organizações e cidadãos diversos e heterogêneos, entre eles estudantes, integrantes do setor empresarial, movimento campesino, ativistas dos direitos humanos e cidadãos de região autônoma (...)A aliança dá voz as demandas de milhares de nicaraguenses que clamam por justiça e democracia com objetivo de revisar o sistema político desde a raiz para lograr uma autêntica democracia", apresenta-se o coletivo.
Buscando evitar a reedição de um conflito prolongado como da década de 70 e 80, Ortega e Murillo concordaram em definir um amplo Diálogo Nacional, várias vezes interrompido e até o momento com poucos resultados em termos de pacificação uma vez que os chefes do Executivo não se mostram dispostos a abreviar o mandato. Além disso, de acordo com os informes oficiais, muitos dos coletivos antigovernistas seriam financiados por estrangeiros com o objetivo de fragilizar a gestão e depredar o patrimônio público.
"Vivemos uma batalha dolorosa, temos enfrentado uma conspiração de grupos que são instrumentalizados. Vivíamos onze anos de crescimento econômico, de políticas sociais para o campo e a cidade e por isso tínhamos índices de aprovação sem precedentes na historia. Eles não queriam que a revolução continuasse se consolidando com reconciliação e paz e promovem ataques armados e agressão", defendeu Ortega durante discurso de quase uma hora na área central de Manágua lotada pela comemoração dos 39 anos da vitória da frente sandinista.
A queima das chamadas árvores da vida, estruturas metálicas espalhadas pela capital Manágua que representavam de alguma forma o anseio de tornar o país um destino turístico deixando para trás os tempos de guerra, o controle de alguns bairros em determinadas cidades e os saques em estabelecimentos de municípios menores caracterizam algumas das ações protagonizadas ao longo dos últimos dias.
Os sandinistas já haviam chamado a atenção para a tentativa de infiltração de agentes políticos desestabilizadores quando impediram delegações estrangeiras de entrarem no país sob o pretexto de debelar o incêndio florestal na reserva biológica Índio Maiz, de consequências graves para o ecossistema nica.
"A opção preferencial dos pobres se coloca à parte de todas as perversidades do plano terrorista e golpista acompanhado da infame e falsa campanha midiática que uma minoria cheia de ódio quer impor a nossa Nicarágua", assegurou Rosario Murillo, em declaração transmitida pelo canal 4, como ocorre diariamente.
O desencontro sobre o número de óbitos e a incerteza sobre a origem das agressões acrescenta dúvidas sobre o que realmente acontece na nação que tem a violência como elemento onipresente da disputa política. Em um contexto de inúmeros movimentos aderindo às armas nas décadas de 60 e 70, foi na Nicarágua o único local em que a guerrilha triunfou depois da sangrenta guerra civil - a característica de confrontação extrema merece ser levada em consideração na medida de sua realidade histórica.
"A crise atual tornou-se humanitária pela quantidade de mortos, feridos, sequestrados, desaparecidos, presos sem amparo legal. Isso tem levado a uma violação dos direitos humanos de forma incrível, a média é de quatro mortos por dia. A repressão governamental não cedeu nesse tempo todo utilizando não somente a polícia e os antimotins, mas também forças paramilitares irregulares. É insustentável esperar mais três anos e meio", sustenta a socióloga nicaraguense Maria Mercedes Salgado, residente em São Paulo.
O canal ou o fundo do poço
Em contraposição à violência política, a criminalidade social figurava entre as menores da latinoamerica. A seguridade aparece como uma das marcas da gestão, que tem no controle da informação outra base de sua atuação. O governo faz valer o poder na gerência de canais de televisão e meios de comunicação, a maioria alinhados à versão oficial. A situação recebe críticas dos adversários, mas configura-se como eixo fundamental para a manutenção do projeto posicionado à esquerda no cenário diplomático da América - o diálogo permanente com Cuba e Venezuela é um dos aspectos que sinaliza a postura ideológica do estado nicaraguense.
A decisão mais ousada, entretanto, se revela na relação desenvolvida com a China. A construção do canal da Nicarágua por uma empresa chinesa possivelmente seja o grande pano de fundo das disputas que se estabelecem no território e para além dele. A complexidade da megaoperação envolve inclusive a disputa por terras e ilhas como a de San Andres, pertencente à Colômbia e localizada nas proximidades da América Central, por onde passará a obra . As negociações sobre as rotas estão longe de consenso, situação que se repete ao discutir-se a viabilidade ambiental, apontada por especialistas como um tiro de morte para o equilíbrio natural da região.
Nesse sentido, a criação de uma nova rota no pacífico e as portas abertas ao chineses estabelece-se no mesmo nível estratégico do domínio da exploração do pré-sal brasileiro ou das grandes reservas venezuelanas de petróleo. Não coincidentemente , foram nesses países que movimentos inicialmente aparentando defender a democracia e os direitos sociais rapidamente transformaram-se em fatores de desestabilização cooptados pela direita na busca por debilitar governos progressistas e consolidar o retorno de grupos conservadores ao comando da máquina pública.
As passeatas de maio de 2013 nas cidades brasileiras e as guarimbas venezuelas, de formas diferentes, são a fotografia desse momento. No Brasil, o golpe contra a presidente eleita Dilma Rousseff, a venda do patrimônio nacional e a prisão política de Lula foram os resultados que acompanharam o aumento da pobreza. Na Venezuela, as sanções contra o presidente Nicolas Maduro e o isolamento nos organismos internacionais não conseguiram afastar da presidência os chavistas, mas exigem dos governistas o rechaço diário de ameaças vindas do norte.
"Todos querem a renúncia de Ortega, mas ninguém está a favor de outro partido. A campanha opositora tem caráter patriótico, por isso não há um candidato a tomar o cargo de presidente. As marchas massivas pelos assassinados políticos não são reprimidas pelo grande número de cidadãos presentes, mas a polícia segue atacando povoados em que as manifestações são de grupos pequenos, que, por sua vez, buscam fechar estradas para evitar a entrada dos paramilitares e policiais nessas cidades. Enquanto isso, a economia decai e o desemprego aumenta", opina o estudante Bryan Chiang, que presenciou o início dos protesto na Universidade Central Centroamericana.
A falta de lideranças claras e a ausência de partidos políticos aparece como outra similaridade na comparação com movimentos registrados nos países afetados por protestos. Há reais motivos para a massa trabalhadora nacional reclamar dos ônibus lotados, da falta de saneamento, da dificuldade para encontrar emprego ou da legislação defasada sobre os direitos das mulheres e de minorias. Por outro lado, não são os justos apelos das classes mais pobres a aparecerem primeiro na pauta, uma vez que muitos inclusive são beneficiados por programas governamentais.
" A Nicarágua está resistindo apesar da desestabilização que ocorre no país. Nosso povo está cansado de violência e o correto é aguardar até o fim do mandato de Ortega e Murillo, que são os únicos aqui a fazer algo pelos mais pobres. Essa é a dura realidade", compara Erico Molina, vendedor ambulante.
Para se ter parâmetro das dificuldades cotidianas do povo e de investimento público, um dos principais mecanismos de proteção levados a cabo pela administração é a distribuição de telhas de zinco para a população e de cestas aos campesinos que incluem dez galinhas e um porco. Da terra nica aos carpetes estadonidenses, a instituição do "Nica Act" pelos norteamericanos contribui para isolar economicamente a Nicarágua ao impedir a entrada de empréstimos internacionais e debilitar as contas públicas meses após os sandinistas ratificarem o controle governamental com a ampla vitória conquistada nas eleições municipais do último ano.
A nova estratégia reeditou no plano econômico a presença militar nas décadas de 80 e 90, quando o grupo Contra, financiados pela potência do norte, buscava a derrocada dos sandinistas do poder. Na conduta moderna, mas de mesmo objetivo, cinco milhões de dólares foram oferecidos pelo Congresso dos Estados Unidos para “promoção da democracia e apoio à sociedade civil” na Nicarágua. Regionalmente, a pressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a postura crítica adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) foram respondidas internamente com a aprovação da lei antiterrorista, com potencial para inibir manifestações públicas.
Como de costume desde a posse de Aloysio Nunes no Ministério de Relações Internacionais, a diplomacia brasileira apoia as sanções propostas pelos americanos, de forma unânime. A esquerda do continente, ao contrário, se divide sobre a avaliação do fenômeno passado na América Central, enquanto o Foro de São Paulo reiterou em documento seu apoio aos sandinistas, o ex-presidente do Uruguai e senador Pepe Mujica observou que "na vida há momentos em que há de dizer, me vou", em alusão a Ortega.
Para além do cenário internacional, a disputa deve seguir nas ruas do país a partir das convocações de novos protestos pela oposição, ao mesmo tempo em que o governo acena com mais controle e demonstra força popular como nas marchas em comemoração aos 39 da Revolução Sandinista. Perdura a dúvida de por onde caminhará e navegará a Nicarágua e do quanto pode demorar para a volta dos tempos de paz no país alçado do centro da América à condição de ator central da ordem mundial.
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