Como se engendrou o monstro Bolsonaro?
Não se pode entender esses 50 milhões de votos sem a militância ativa da poderosa Igreja Universal do Reino de Deus. A força evangélica neopentecostal, que joga cada vez mais no terreno político em toda a região, ataca em três frentes simultâneos: no Congresso, na mídia de massas e nos bairros populares
14/10/2018 16:36
Algo mudou na política latino-americana no domingo 7 de outubro. A foto assusta: quase 50 milhões de brasileiros e brasileiras votaram por um projeto abertamente fascista. Significa que 46% do eleitorado do maior país da região (e o quinto do mundo) escolheu um candidato que reivindica a tortura e faz apologia da ditadura, que utiliza uma retórica de ódio, machista, racista e homofóbica, e que promete armar a população e privatizar todas as empresas estatais. Ainda por cima, seu filho foi o deputado mais votado da história brasileira.
O fortalecimento da direita pura e dura na região já vinha se acentuando com Macri na Argentina, Piñera no Chile, o próprio Temer no Brasil, Abdo Benítez no Paraguai e Iván Duque na Colômbia. Mas a chegada de uma ultradireita troglodita, capaz de conquistar uma enorme base social – um experimento que se instalou nos Estados Unidos com Trump e que se estende pela Europa – é um elemento novo na América Latina, que altera os diagnósticos e acende todos os alarmes.
O Brasil ficou à beira do abismo. Independente das urgências a respeito do segundo turno, é preciso detalhar o filme completo para entender como se chegou ao retorno do obscurantismo. Como se criou este fenômeno político, sociológico e até religioso chamado Jair Messias Bolsonaro?
O triunfo da “antipolítica”, ou da política do ódio
Para compreender este tsunami político é necessário um olhar retrospectivo de longo prazo, ou ao menos médio. Um país cuja independência foi proclamada por um príncipe português, que não viveu processos revolucionários, cuja última ditadura durou 21 anos e teve uma saída que varreu para baixo do tapete todos os crimes e terminou em impunidade para os criminosos só poderia parir uma sociedade historicamente despolitizada. Mas esse sentimento “antipolítica” voltou a crescer nos últimos anos, estimulado pela Operação Lava Jato e pela imprensa hegemônica. Após o golpe institucional que destituiu Dilma, em 2016, e a paupérrima gestão de Michel Temer, ficou em evidência a putrefação do sistema político e se impôs um sentido comum de rejeição à classe política. Aliás, os grandes castigados da eleição de domingo foram os principais partidos do establishment: o PSDB de Geraldo Alckmin sequer alcançou os 5%, e o MDB de Michel Temer, cujo candidato foi o ministro Henrique Meirelles, obteve um magro 1,2%.
Mas este processo teve como condimento central uma forte campanha de satanização midiática e judicial contra o PT, o que permitiu associar a epidemia de corrupção unilateralmente a essa força política e justificar socialmente a irregular prisão e proscrição de Lula da Silva.
Nesse marco, emerge este ex-militar ignorante, desbocado, mas que soube capitalizar a implosão dos partidos de direita e centro-direita, a consolidação desse forte sentimento antipetista e a aguda crise econômica que potenciou a repulsa. Como a política aborrece o vazio, Bolsonaro aparece como o candidato antissistema – apesar de ser um político profissional há 28 anos, tempo em que foi um dos deputados menos atuantes do Congresso – que promete resolver esta crise multidimensional na base da força e com um discurso messiânico. De ser um legislador marginal, que ganhou fama quando fez uma homenagem ao torturador de Dilma Rousseff, se transformou no efeito mais sinistro dessa democracia agonizante.
O fundamentalismo religioso
Não se podem entender esses 50 milhões de votos sem a militância ativa da poderosa Igreja Universal do Reino de Deus. A força evangélica neopentecostal – que joga cada vez mais no terreno político em toda a região – ataca em três frentes simultâneas: no Congresso, onde a “bancada da bíblia” controla uma quinta parte da Câmara dos Deputados; na mídia de massas, através da Rede Record que é a segunda maior do país e diminuindo bastante a diferença com a Rede Globo nos últimos anos; e nos bairros populares, onde tem uma penetração territorial que nenhum outro do país possui.
Talvez, parte da ascensão abrupta de Bolsonaro se explique pelo trabalho de milhares de pastores fazendo campanha furiosa pelo ex-militar nos dias prévios à votação.
As outras três pernas da mesa
Outro fator crucial na construção de consenso ao redor de Bolsonaro foram os grandes meios de comunicação, que terminaram aceitando o mal menor, num cenário de irreversível polarização com o PT e o fracasso dos candidatos governistas. As fake news antipetistas se multiplicaram nas últimas semanas e fizeram estragos nas redes sociais. Algo similar aconteceu com o poder empresarial e financeiro, que também embarcou na candidatura de Bolsonaro. Não é para menos: seu guru econômico é Paulo Guedes, um chicago boy que assegura um rumo ultraliberal para seu provável governo.
Por último, o crescente poderio do chamado “Partido Militar”, que quadruplicou sua presença no Congresso após estas eleições legislativas, no ritmo do desastre da política tradicional. Além de Bolsonaro e seu vice, o inefável general Hamilton Mourão, ao menos 70 candidatos militares foram eleitos e três deles disputarão governos estaduais no segundo turno.
Os limites do progressismo
O PT também terá que refletir sobre sua responsabilidade no processo de despolitização da sociedade brasileira e na criação frankenstein Bolsonaro. Durante seus 12 anos de governo, faltou audácia para avançar em transformações mais estruturais, como a tão reclamada reforma política, ou uma lei que limitasse a concentração midiática. E, sobretudo, não se aprofundou o empoderamento popular e a conscientização político-ideológica, facilitando o terreno para a disseminação de valores retrógrados e autoritários.
Uma vez fora do Palácio do Planalto, o progressismo brasileiro se conformou com lutar quase exclusivamente dentro das margens institucionais. Distante das manifestações dos movimentos populares, a estratégia petista ficou presa na teia de aranha de um sistema democrático controlado pelo golpismo do emaranhado midiático, religioso, militar e financeiro.
Talvez a resposta nas ruas das mulheres brasileiras e sua poderosa consigna #EleNão possam dar algumas pistas de como enfrentar os profetas do ódio e seu monstro Bolsonaro.
*Publicado originalmente em nodal.am | Tradução de Victor Farinelli
O fortalecimento da direita pura e dura na região já vinha se acentuando com Macri na Argentina, Piñera no Chile, o próprio Temer no Brasil, Abdo Benítez no Paraguai e Iván Duque na Colômbia. Mas a chegada de uma ultradireita troglodita, capaz de conquistar uma enorme base social – um experimento que se instalou nos Estados Unidos com Trump e que se estende pela Europa – é um elemento novo na América Latina, que altera os diagnósticos e acende todos os alarmes.
O Brasil ficou à beira do abismo. Independente das urgências a respeito do segundo turno, é preciso detalhar o filme completo para entender como se chegou ao retorno do obscurantismo. Como se criou este fenômeno político, sociológico e até religioso chamado Jair Messias Bolsonaro?
O triunfo da “antipolítica”, ou da política do ódio
Para compreender este tsunami político é necessário um olhar retrospectivo de longo prazo, ou ao menos médio. Um país cuja independência foi proclamada por um príncipe português, que não viveu processos revolucionários, cuja última ditadura durou 21 anos e teve uma saída que varreu para baixo do tapete todos os crimes e terminou em impunidade para os criminosos só poderia parir uma sociedade historicamente despolitizada. Mas esse sentimento “antipolítica” voltou a crescer nos últimos anos, estimulado pela Operação Lava Jato e pela imprensa hegemônica. Após o golpe institucional que destituiu Dilma, em 2016, e a paupérrima gestão de Michel Temer, ficou em evidência a putrefação do sistema político e se impôs um sentido comum de rejeição à classe política. Aliás, os grandes castigados da eleição de domingo foram os principais partidos do establishment: o PSDB de Geraldo Alckmin sequer alcançou os 5%, e o MDB de Michel Temer, cujo candidato foi o ministro Henrique Meirelles, obteve um magro 1,2%.
Mas este processo teve como condimento central uma forte campanha de satanização midiática e judicial contra o PT, o que permitiu associar a epidemia de corrupção unilateralmente a essa força política e justificar socialmente a irregular prisão e proscrição de Lula da Silva.
Nesse marco, emerge este ex-militar ignorante, desbocado, mas que soube capitalizar a implosão dos partidos de direita e centro-direita, a consolidação desse forte sentimento antipetista e a aguda crise econômica que potenciou a repulsa. Como a política aborrece o vazio, Bolsonaro aparece como o candidato antissistema – apesar de ser um político profissional há 28 anos, tempo em que foi um dos deputados menos atuantes do Congresso – que promete resolver esta crise multidimensional na base da força e com um discurso messiânico. De ser um legislador marginal, que ganhou fama quando fez uma homenagem ao torturador de Dilma Rousseff, se transformou no efeito mais sinistro dessa democracia agonizante.
O fundamentalismo religioso
Não se podem entender esses 50 milhões de votos sem a militância ativa da poderosa Igreja Universal do Reino de Deus. A força evangélica neopentecostal – que joga cada vez mais no terreno político em toda a região – ataca em três frentes simultâneas: no Congresso, onde a “bancada da bíblia” controla uma quinta parte da Câmara dos Deputados; na mídia de massas, através da Rede Record que é a segunda maior do país e diminuindo bastante a diferença com a Rede Globo nos últimos anos; e nos bairros populares, onde tem uma penetração territorial que nenhum outro do país possui.
Talvez, parte da ascensão abrupta de Bolsonaro se explique pelo trabalho de milhares de pastores fazendo campanha furiosa pelo ex-militar nos dias prévios à votação.
As outras três pernas da mesa
Outro fator crucial na construção de consenso ao redor de Bolsonaro foram os grandes meios de comunicação, que terminaram aceitando o mal menor, num cenário de irreversível polarização com o PT e o fracasso dos candidatos governistas. As fake news antipetistas se multiplicaram nas últimas semanas e fizeram estragos nas redes sociais. Algo similar aconteceu com o poder empresarial e financeiro, que também embarcou na candidatura de Bolsonaro. Não é para menos: seu guru econômico é Paulo Guedes, um chicago boy que assegura um rumo ultraliberal para seu provável governo.
Por último, o crescente poderio do chamado “Partido Militar”, que quadruplicou sua presença no Congresso após estas eleições legislativas, no ritmo do desastre da política tradicional. Além de Bolsonaro e seu vice, o inefável general Hamilton Mourão, ao menos 70 candidatos militares foram eleitos e três deles disputarão governos estaduais no segundo turno.
Os limites do progressismo
O PT também terá que refletir sobre sua responsabilidade no processo de despolitização da sociedade brasileira e na criação frankenstein Bolsonaro. Durante seus 12 anos de governo, faltou audácia para avançar em transformações mais estruturais, como a tão reclamada reforma política, ou uma lei que limitasse a concentração midiática. E, sobretudo, não se aprofundou o empoderamento popular e a conscientização político-ideológica, facilitando o terreno para a disseminação de valores retrógrados e autoritários.
Uma vez fora do Palácio do Planalto, o progressismo brasileiro se conformou com lutar quase exclusivamente dentro das margens institucionais. Distante das manifestações dos movimentos populares, a estratégia petista ficou presa na teia de aranha de um sistema democrático controlado pelo golpismo do emaranhado midiático, religioso, militar e financeiro.
Talvez a resposta nas ruas das mulheres brasileiras e sua poderosa consigna #EleNão possam dar algumas pistas de como enfrentar os profetas do ódio e seu monstro Bolsonaro.
*Publicado originalmente em nodal.am | Tradução de Victor Farinelli
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