quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Enquanto ministro pede Hino Nacional, professora ensina com Racionais

28 DE FEVEREIRO DE 2019, 05H18

Enquanto ministro pede Hino Nacional, professora ensina com Racionais

Luana Tolentino, professora de História da rede pública de Minas Gerais, considera a execução obrigatória do Hino Nacional em escolas "um retrocesso que remete à ditadura militar" e, em suas aulas, propõe um tipo de educação protagonizada pelos próprios estudantes
A professora Luana Tolentino durante o lançamento do seu livro "Outra educação é possível" (Reprodução/Facebook)
Se por um lado a Educação no Brasil está em franco retrocesso, com direito a ministro dizendo que “universidade é lugar para uma elite intelectual” e pedindo para escolas executarem o Hino Nacional e gravarem os alunos, além de um presidente que promete acabar com o inexistente “marxismo cultural”, por outro há ainda aqueles que acreditam que uma outra educação é possível.
“Outra Educação é Possível”, inclusive, é o nome do livro da professora Luana Tolentino, que ministra aulas de História para estudantes do Ensino Médio e Fundamental da rede estadual de Minas Gerais. Em suas aulas, faz questão de valorizar em seus alunos e alunas o protagonismo do próprio aprendizado.
De origem humilde, Luana já foi babá, faxineira e empregada doméstica. Hoje mestre em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), a professora utiliza em suas aulas músicas de artistas negros que vão de Chico César a Racionais MC’s, de Elza Soares a Milton Nascimento.
“Nunca pedi aos meus alunos que cantassem o Hino Nacional, mas já passamos horas aprendendo músicas do Cidinho & Doca, do Milton Nascimento e da Elza Soares…No ano passado, cantamos ‘Mama África’, do Chico César. Quando pego eles ouvindo ‘Diário de um detento’ e ‘Nego drama’, não resisto. Começo a cantar. Surpresos, eles dizem: Olha, a professora curte Racionais! Vocês não sabem a felicidade que eu sinto. É maravilhoso!”, escreveu Luana em seu Facebook em meio à polêmica da carta que o ministro da Educação enviou às escolas solicitando a execução do Hino Nacional.
À Fórum, a professora detalhou: “Acredito na educação pelo encanto. Gosto de pensar que eles se sentem representados, sentem orgulho quando levo esses artistas para a sala de aula”.
Para Luana, o pedido do ministro para que as escolas toquem o Hino Nacional remete aos tempos da ditadura militar. “A proposta de executar o Hino Nacional nas escolas vai ao encontro do que podemos esperar do atual governo: atraso e retrocessos. Tal proposta remete ao regime militar, período em que a execução do hino era obrigatória nas escolas como um mecanismo para legitimar o Estado de exceção que durou vinte e um anos”, afirma.
Em entrevista, a professora falou sobre o atual momento da Educação no Brasil e expôs sua luta por um outro tipo de ensino diante de tantos retrocessos. “Apesar de todo o horror, de tantos retrocessos, eu me sinto no dever e na obrigação de acreditar e de continuar lutando para que essa outra educação realmente seja possível.”
Confira a íntegra.
Fórum – Como professora e historiadora, o que achou dessa proposta do ministro da Educação de executar o hino nacional nas escolas?
Luana Tolentino – A proposta de executar o Hino Nacional nas escolas vai ao encontro do que podemos esperar do atual governo: atraso e retrocessos. Tal proposta remete ao regime militar, período em que a execução do hino era obrigatória nas escolas como um mecanismo para legitimar o Estado de exceção que durou vinte e um anos. É importante lembrar que além dessa medida que considero retrógrada, a carta enviada pelo ministro Vélez Rodrigues às escolas ainda sugeriu que os estudantes fossem filmados, o que fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante o direito à preservação da imagem.
A professora Luana Tolentino (Reprodução/Facebook)
Fórum – Em seu Facebook você revelou que nunca pediu para seus alunos cantarem o hino nacional, mas que já deu aulas usando músicas de cantores populares e negros como Chico César, Elza Soares, Racionais… Como funciona essa metodologia que usa? E como é a recepção dos alunos? Gostaria que falasse um pouco mais sobre o assunto.
Luana Tolentino – Acredito que é possível aprender com a novela, com o cinema, com o teatro, com a literatura, com os jornais, com as revistas, com as páginas da internet, com a vida. A música é mais um recurso que considero importantíssimo no processo de aprender e ensinar. Como professora de História, sempre adoto alguma canção para ilustrar e enriquecer as práticas e conteúdos ministrados. Durante a escolha das canções, não me atenho a um gênero musical específico. Desse modo, levo para sala de aula o que conhecemos como MPB e também funk, rap… Tudo depende das reflexões que quero propor aos meus alunos e alunas. Em relação aos cantores e cantoras negras, busco também contribuir para a construção de novas imagens a respeito dos homens e mulheres negras desse país. É importante que meus alunos saibam que um dos maiores cantores do mundo é negro e se chama Milton Nascimento. O mesmo ocorre com a Elza Soares. Além disso, tento desconstruir a ideia de que jovens da periferia não podem gostar da música produzida pelo Milton, pela Elis, pelo Chico César, pelo Gil, pelo Chico, pelo Paulinho da Viola, e por tantos outros que são considerados “artistas da elite”. Sou fascinada pelo “Rap da Felicidade”, do Cidinho & Doca. Como leciono em uma região marcada por muita pobreza e violência, vejo na letra da dupla carioca um verdadeiro testemunho para se pensar a respeito das desigualdades sociais e raciais existentes no país. A música transforma, empodera. É impossível ter a mesma visão de mundo depois de ouvir “A carne”, “Maria de Vila Matilde” ou “Coração Civil”. O mesmo vale para “Diário de um detento” e “Nego drama”, dos “Racionais MC’S”. Confesso que minhas turmas gostam bastante. É sempre uma festa! Acredito na educação pelo encanto. Gosto de pensar que eles se sentem representados, sentem orgulho quando levo esses artistas para a sala de aula.
Fórum – Qual a sua avaliação dessa posição do atual governo de combater o que eles chamam de “marxismo cultural” e “doutrinação ideológica” nas escolas? Considera que vivemos um momento de retrocesso na Educação do Brasil?
Luana Tolentino – Aqueles que acusam o trabalho de professores e professoras comprometidos com a democracia, com a justiça e com a igualdade de “marxismo cultural” apostam na ignorância e na estupidez como formas de angariar eleitores e simpatizantes. O mesmo se dá com os que dizem combater a “doutrinação ideológica nas escolas”. Vivemos tempos de muitos retrocessos, em todas as áreas. É um cenário de destruição. Essa é a grande verdade. No campo da educação, o retrocesso se dá com o corte de verbas, com o desmanche de programas e projetos de melhoria da qualidade da educação, com o avanço da iniciativa privada sobre a educação pública, com a retirada de direitos, com a perseguição à educadoras e educadores, e também com discursos marcados pelo ódio e pelo conservadorismo. Quando o Ministro da Educação afirma que “as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual”, ele está ferindo a Constituição Federal, que assegura que a educação é um direito de todos. Além disso, nessa fala está explícito o desejo de por fim às políticas públicas implementadas no país nos últimos anos, que garantiram uma maior diversidade de raças e classes nas instituições de ensino superior.
Fórum – Você tem um livro intitulado “Outra educação é possível”. Resumidamente, qual seria a outra educação possível para o Brasil?
Luana Tolentino – Uma educação democrática, protagonizada pelos estudantes. Uma educação em que sejam respeitadas as particularidades e pluralidades de meninos, meninas, jovens e adultos. Uma educação antirracista, feminista e inclusiva. Uma educação capaz de formar cidadãos críticos e participativos, conscientes das formas de opressão e mazelas que os cercam. Uma educação que ensine a sonhar e a realizar. Uma educação que valorize e dê melhores condições de trabalho aos professores, professoras e demais membros da comunidade escolar. Uma educação para a vida. Apesar de todo o horror, de tantos retrocessos, eu me sinto no dever e na obrigação de acreditar e de continuar lutando para que essa outra educação realmente seja possível.

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