O governo já entregou o pré-sal e a Embraer e aceita uma base dos Estados Unidos em Alcântara. O que mais estará disponível para Tio Sam?
Getúlio Vargas compreendeu a natureza desse relacionamento e tirou dele o melhor partido possível no final da segunda Guerra Mundial. Jânio Quadros e João Goulart intuíram de forma correta, mas, por motivos diversos, não tiveram tempo para explorar a fundo a “ambiguidade criativa” que ele encerra. O ditador Ernesto Geisel percebeu que pouco teríamos a ganhar com o alinhamento automático a Washington. Mais recentemente, Lula conseguiu manter um amplo diálogo com George W. Bush e Barack Obama, que se estendeu para muito além dos assuntos “hemisféricos” (para usar uma palavra do gosto dos norte-americanos).
Segundo a agenda que chegou ao conhecimento público, o encontro de trabalho Trump-Bolsonaro durará escassos 20 minutos. Será seguido de almoço. Entre uma garfada e outra, e subtraído o tempo dos tradutores, os dois presidentes terão, quiçá, meia hora cada um para expor suas ideias e interesses e responder às questões colocadas pelo interlocutor.
Compare-se com as longas conversas de Lula com Bush em Camp David e na Granja do Torto, para se ter uma ideia da importância diminuída do Brasil. E tome-se em conta que aqueles eram tempos em que os dois governantes divergiam sobre vários temas, da Alca ao Iraque, passando pelos subsídios agrícolas no comércio internacional. É mister constatar que, independentemente dessas diferenças, Washington via no Brasil um parceiro indispensável para encaminhar questões regionais e globais.
A era da vassalagem. O presidente brasileiro parece ter compreendido a essência da Doutrina Monroe: a América para os americanos
Pelo que tem transcendido sobre as intenções brasileiras, a principal reivindicação brasileira a Trump será o apoio ao ingresso do Brasil na OCDE, o “clube dos países ricos”. Não é o caso de discutir em detalhe o significado de uma eventual adesão nossa à OCDE, em termos de limitações à liberdade de políticas industriais e tecnológicas, algumas de forte impacto social (como patentes farmacêuticas). Nenhum dos integrantes dos Brics, grupo formado pelos gigantes do mundo emergente, integra a organização.
Mas, se o nosso pedido principal é conhecido, só podemos especular sobre quais são as demandas dos Estados Unidos. Uma delas é óbvia, porém: a continuada subordinação à estratégia agressiva de Trump em relação à Venezuela. São favas contadas que o fracasso da tentativa de derrubar o regime de Nicolás Maduro em 23 de fevereiro, por meio da “ajuda humanitária”, não fará com que o atual governo norte-americano desista daquele intento.
Isso aparece com clareza em declaração atribuída ao próprio Trump e reproduzida por um ex-diretor do FBI, na qual o presidente norte-americano se refere ao possível interesse de guerra (sic) com um país com “aquele petróleo todo e na nossa porta dos fundos”. No dia da abortada ação, ao que se soube, foram os militares em posição de mando no governo brasileiro que impediram que nosso país aderisse à intervenção, seja com suas próprias forças, seja cedendo território a tropas de terceiros.
Daí a curiosidade nada fútil em saber quem estará no Salão Oval durante a “conversa privada” dos presidentes, além dos tradutores. Normalmente esses diálogos, quando não estritamente pessoais, são acompanhados pelos ministros de Relações Exteriores e/ou assessores de segurança nacional (ou equivalentes) dos chefes de Estado.
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Depois do “oferecimento” do território brasileiro para uma base norte-americana, quando do encontro com Mike Pompeo, esta não é uma questão que interesse apenas aos chefes dos respectivos cerimoniais. O que está em jogo é a essência do relacionamento entre Brasília e Washington, em um momento em que a Doutrina Monroe tem sido abertamente proclamada (ela nunca desapareceu de fato) e o fantasma da intervenção militar volta a pairar sobre a nossa região.
Além do pré-sal, da Embraer, do programa do submarino nuclear, dos caças, o que mais poderá ser colocado pelo presidente Trump como condição para uma aproximação, desde logo marcada pelo paternalismo e a condescendência? Já que o Brasil de Temer atuou graciosamente para dissolver a Unasul – o primeiro esforço sério de organizar a América do Sul, sem o patrocínio norte-americano ou europeu –, por que não tentar o mesmo em relação aos Brics? Certamente, haverá estrategistas do lado de lá pensando nisso. E do lado de cá? Será essa a oportunidade de se desfazer desse legado incômodo, inerente à visão de um mundo multipolar, incompatível com o espírito cruzadista da diplomacia atual?
Ao fazer essas reflexões, me vem à mente uma charge do cartunista Chico, durante uma visita de Condoleezza Rice ao Brasil. Nela, em meio a acenos de adeus ao avião que transportava de volta a secretária de Estado, o presidente Lula pergunta ao chanceler da época: “O que ela queria?” Ao que o auxiliar responde: “Não sei, mas também não dei”.
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Temos alguma garantia de que o mesmo se passará agora?
PS: Este artigo foi escrito antes da divulgação de que o acordo sobre a base de Alcântara poderia ser assinado durante a visita. O tema, de grande relevância para a soberania nacional, deve ser objeto de análise aprofundada, quando seus termos exatos sejam conhecidos.
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ESCRITO POR CELSO AMORIM
Diplomata, foi Ministro das Relações Exteriores do Governo Lula (2003-2011) e Ministro da Defesa do Governo Dilma Rouseff (2011-2015).
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