Sotelo: Como o ministro Barroso flerta com o fascismo ao defender que a Justiça atenda “o sentimento da sociedade”
O gato preto do ministro Barroso e as ilusões juridicistas
O autoproclamado iluminista ministro Luís Roberto Barroso declarou em entrevista ao Estado de S. Paulo que “como regra, um tribunal deve ser capaz de interpretar e atender o sentimento da sociedade”. A frase é tremenda.
Nem se trata de algo genérico que às vezes juízes ou ministros de tribunais superiores dizem, como não ser indiferente à voz das ruas e coisas do tipo. O que o ministro diz vai muito além. Como regra.
Pensávamos que depois do Iluminismo (et pour cause) , como regra, um tribunal deveria aplicar normas objetivas e, acima de tudo, ser particularmente rigoroso com a Constituição.
A rigor, dessa perspectiva, não se trata exatamente de uma novidade que o STF não a tenha cumprindo. Desde o golpe do impeachment, a Constituição é um inútil pedaço de papel.
A história teria sido outra se Gilmar Mendes não tivesse interferido diretamente no processo político ao impedir que Lula se tornasse ministro.
Ao contemplar impávido o crime cometido pelo então juiz Moro, que liberou para a Rede Globo os áudios da conversa entre Dilma e Lula, o plenário do STF mostrou que consentia com o golpe, recusando-se a deter as arbitrariedades do juiz de Curitiba.
Mas o que o ministro Barroso está dizendo agora vai, desastradamente, bem além disso. Ele dá à submissão do Judiciário um verniz filosófico e ideológico obscuro.
Procurar o Iluminismo do ministro é como procurar em um quarto escuro um gato preto que não está lá. Estabelecer como regra o “sentimento da sociedade” é uma máxima que tem a ver com a apropriação do Romantismo Filosófico pelo nazismo e absolutamente nada a ver com o Iluminismo, que pretendia uma razão objetiva (que está, por exemplo, na Constituição de 1988).
O Romantismo não apreciava normas exceto as que derivassem de um sujeito que era livre tal qual um artista para criar.
O nazismo foi buscar no legado filosófico do Romantismo alemão o fundamento de seu processo penal e de seu direito penal.
O fio condutor dessa apropriação remonta ao filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte no início do século 19. Fichte identificava o sujeito criador, próprio do Romantismo, com o povo alemão.
O espírito alemão era, segundo Fichte, uma águia cujo poderoso corpo se impele ao alto para ascender perto do sol, de onde gosta de observar.
O povo alemão lançaria massas rochosas de pensamentos sobre as quais eras vindouras construiriam suas moradas.
Fichte inspirou o movimento Volkisch, que cresceu no século 19 e deixou forte marca no imaginário alemão. A palavra deriva de volk, povo, mas aqui com a conotação de etnia.
Os nazistas deram ao seu aparato repressivo o fundamento expresso, nominado, do volkisch. Uma polícia biológica que não era neutra, mas ideologicamente comprometida para, nas palavras do prócer nazista Hans Frank, a “proteção e o avanço da comunidade do povo”. Toda agitação “oposta ao povo” deveria ser sufocada.
Regras gerais e objetivas de tipo iluminista não limitavam a ação da polícia e do Judiciário no Estado nazista. Quando o fundamento da repressão do Estado passa a ser identificado com um sujeito – o povo – que é senhor absoluto do dever ser, do mesmo modo que um artista é senhor livre de sua criação, tudo é permitido. Seja porque parte da massa pode irracionalmente ir às ruas e dizer-se “o povo” para apoiar qualquer coisa, seja porque em nome de uma abstração do tipo “vontade do povo” (ou “sentimento da sociedade”), o poder está legitimado para qualquer barbárie. Aos nazistas bastava invocar a palavra mágica Volkisch para agir sem limites.
É evidente que o ministro Barroso está justificando forças reacionárias que nos governam hoje. O que o faz cometer irresponsabilidades ideológicas como a de invocar conceitos utilizados pelo regime mais tenebroso da História. É isto que, ao fim e ao cabo, significa dizer que os tribunais em regra devem atender o “sentimento da sociedade”. Não por contingência, não eventualmente, não de vez em quando. Em regra.
Cansamos de ver, ao longo da História, como o Judiciário atua como correia de transmissão da engrenagem que é o núcleo real de poder. Entre nós os exemplos são muitos.
O julgamento do habeas corpus impetrado no STF em favor de Olga Benário, companheira de Luís Carlos Prestes, propiciou a extradição de uma judia para a Alemanha nazista carregando no ventre uma criança brasileira. O acórdão teve como fundamento a seguinte frase: “A paciente é estrangeira e sua permanência no país compromete a segurança nacional, conforme se depreende das informações prestadas pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça”. Apenas isto.
O STF carimbou, tal qual uma singela repartição pública, a decisão do ministro da Justiça.
A ninguém ocorreu explicar como uma mulher grávida encarcerada podia representar um risco à “segurança nacional”, e ninguém achou conveniente lembrar que, no Estado nazista, judeus eram considerados, já em 1935, depois das chamadas Leis de Nuremberg, “raça” inferior e privados dos direitos básicos da pessoa humana. Os versados em Direito reconhecerão os nomes envolvidos na torpeza, figuras conhecidas do Direito brasileiro: Vicente Rao, ministro da Justiça, o festejado teórico da hermenêutica Carlos Maximiliano e o célebre civilista Eduardo Espínola, ministros do STF.
Podemos tomar outro acórdão menos conhecido, mas igualmente paradigmático do Judiciário como peça de engrenagem do poder real em uma sociedade.
Em 1968, o STF decidiu quem era competente para julgar o ex-presidente João Goulart, então acusado de crime comum. Aqui não importa a decisão em si, mas o que revelava a tecnicalidade envolvida.
Toda discussão, intensamente travada na sessão, deu-se em torno de saber se estava em vigor naquele momento, já promulgada a Carta de 1967, dispositivo do AI-2 que havia subtraído do Judiciário a apreciação dos atos praticados pelo “Comando Supremo da Revolução de 1964”.
Era apenas a questão da vigência formal, não ocorrendo a nenhum ministro fazer qualquer observação sobre a norma em si, que conferia poder absoluto aos que depuseram um governo constitucional legitimamente eleito.
Ou podemos lembrar novamente toda a atuação do STF no impeachment de Dilma Rousseff e a complacência com a arbitrariedade de Moro. Recorde-se que em nenhum momento nenhum ministro levantou a voz, mesmo sabendo que seu voto não mudaria coisa alguma, apenas para dar um verniz em sua biografia e propiciar aos netos uma boa história para contar sobre o avô.
Bastava dizer, por exemplo, que o impeachment é um processo jurídico-político, mas, para que o componente político seja considerado é necessário o requisito jurídico, que não existia.
Esses precedentes devem ser lembrados por dois motivos. O primeiro é que há ainda no campo progressista uma injustificável ilusão juridicista. Lula entregou seu corpo – talvez sua vida – à sanha do inimigo político (não mais adversário, inimigo), apostando que o bom Direito o livraria.
Juristas criticam decisões segundo a ilusória lógica do Direito, como se o Judiciário fosse de verdade autônomo, e com isso reforçam ilusões juridicistas quando deveriam denunciar o Judiciário de fora para dentro, não no interior de sua enganosa retórica e linguagem. Aí o Judiciário não “erra”.
É inútil, ou patético, dar lições de hermenêutica em artigos e mais artigos aos ministros do STF. Confundem aparência com realidade. O STF atua como sujeito político.
O segundo motivo é que Barroso vai neste momento, perigosamente, além desses tristes precedentes. Em seu arrivismo joga gasolina na fogueira do fascismo que ameaça a sociedade brasileira.
Ele não só adianta que vai votar, sob o fundamento do “sentimento da sociedade” (Volkisch), de acordo com os interesses políticos mais retrógrados que nos ameaçam, como difunde no meio social, com a autoridade de ministro do STF, conceitos obscurantistas que estavam presentes no fascismo.
Quando a extrema-direita investe contra o STF neste momento, o faz também com noções que remetem historicamente ao fascismo, como o tal “sentimento da sociedade”.
A insanidade da extrema-direita também quer que o STF julgue de acordo com a “vontade do povo”, conceito com a qual pretende legitimar sua insanidade do mesmo modo como o nazismo buscava legitimar-se com o Volkisch.
O ministro iluminista não mostra qualquer pejo de se apropriar de conceitos sombrios derivados do Romantismo, indiferente ao que eles possam ter de fascismo.
Quem conheceu o constitucionalista Barroso sabe que o ministro Barroso sabe o que está fazendo. O que torna seu arrivismo intolerável.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
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