Brasil: Represália contra Lula derrotada pelo Supremo Tribunal
Transferência do ex-presidente para prisão comum, pedida pela Polícia Federal e aceita por uma juíza, é barrada pelo STF, pressionado por parlamentares. Decisão é vista como derrota do ministro da Justiça Sergio Moro. Por Luis Leiria.
8 de Agosto, 2019 - 21:13h
Parlamentares reunidos com o presidente do STF, Dias Toffoli. Foto Banco de Imagens STF
Na aparência, nada aconteceu nesta quarta-feira 7 de agosto, no Brasil, para além do enorme nervosismo que atravessou o mundo político. A história resume-se assim: logo de manhã, uma juíza aceitou o pedido da Polícia Federal e decidiu que o ex-presidente Lula da Silva fosse transferido de Curitiba, onde se encontra preso, para uma prisão do estado de São Paulo; a defesa de Lula opôs-se à decisão e entrou com uma medida cautelar no Supremo Tribunal Federal; um juiz corregedor de São Paulo autorizou a transferência para uma penitenciária no interior do Estado, famosa por albergar assassinos famosos; na Câmara dos deputados, parlamentares que não são aliados “normais” do Partido dos Trabalhadores, incluindo o próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, reagiram com indignação à anunciada transferência, considerada “persecutória”; uma delegação de representantes de 12 partidos, da esquerda e do chamado “centrão” dirigiu-se à sede do STF e reuniu-se com o presidente do órgão, Dias Toffoli; o Supremo decidiu por dez a um a manutenção de Lula no mesmo lugar de detenção onde se encontra desde 7 de abril de 2018. Isto é: Lula, o alvo de tantas decisões e contra decisões, nunca saiu de onde estava.
Nada aconteceu então? Pelo contrário. Nesta sucessão de factos que, aparentemente, não foram dar a lugar algum, muitas coisas aconteceram. Vejamos quais:
Vingança de Sergio Moro
Primeiro: de onde surgiu a iniciativa de pedir a transferência de Lula? Da Polícia Federal de Curitiba, alegando que a presença do ex-presidente, detido na sede da PF de Curitiba, “alterava a rotina” dos que trabalham no edifício. Quem manda na Polícia Federal? O ex-juiz e atual ministro da Justiça Sergio Moro. Quem foi o juiz corregedor de São Paulo que autorizou a transferência para a penitenciária de Tremembé, no interior de São Paulo? O juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci, que recentemente foi nomeado por Moro para integrar o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Não parece assim descabida a tese dos que veem a iniciativa de transferir Lula como uma represália do ministro da Justiça, que tem visto a sua posição enfraquecida devido às revelações do site informativo The Intercept mostrando a parcialidade com que o ex-juiz atuou na operação Lava Jato. “Não temos dúvidas que o está acontecendo com o presidente Lula é fruto de uma atuação do agora ministro da Justiça, Sergio Moro, que já atuou de maneira militante e política para julgar, condenar e mandar prender o ex-presidente”, disse a deputada e presidente do PT, Gleisi Hoffmann.
Segundo: a reação no legislativo foi inédita. Uma comitiva de 60 deputados e senadores saiu do Congresso e atravessou a pé, durante 15 minutos, a Esplanada em direção ao STF para uma audiência com o presidente do órgão, Dias Toffoli. “Realmente é algo significativo, não me lembro de ter havido um momento desses, de tantos parlamentares e tantas lideranças, com visões diferentes da política, da sociedade e do mundo, representantes do povo brasileiro, estando aqui”, disse Toffoli.
Voltou a falar-se na Câmara da lei contra o abuso de autoridade, lei que tinha como objetivo pôr um travão na Lava Jato.
STF cada vez mais incompatibilizado com Lava Jato
Terceiro: Há quem divida os juízes do STF em “garantistas” (mais preocupados em preservar os direitos e garantias dos cidadãos) e “lavajatistas” (mais sensibilizados pela “causa” da Lava Jato). Esta foi uma das raras vezes em que votaram todos juntos. Esse fenómeno mostra até que ponto cresceu o afastamento do STF em relação às proezas do ex-juiz Moro e do procurador principal da Lava Jato, Deltan Dallagnol. Entre as últimas revelações da Lava Jato ficou a saber-se que Dallagnol defendeu a investigação a juízes do STF, que ele identificava como sendo um obstáculo à sua ação, incluindo o atual presidente Dias Toffoli e o juiz Gilmar Mendes. O mesmo Dallagnol, mostraram outras reportagens sobre as conversas do procurador de Curitiba no aplicativo Telegram reveladas pelo The Intercept, dedicou-se a ganhar dinheiro com palestras sobre a Lava Jato. As palestras incluíram pelo menos um encontro secreto com banqueiros. O rendimento de Dallagnol de 2018, praticamente duplicou com as palestras. O salário do procurador é de 33.689,11 por mês, cerca de 7.600 euros.
Tiro saiu pela culatra
Quarto: se a iniciativa persecutória partiu realmente de Moro, o tiro saiu pela culatra, porque ficou mais uma vez evidenciado que o ex-juiz continua a mover-se por alvos políticos, e o principal deles é Lula da Silva. Além disso, uma das últimas revelações mostra também que Moro não declarou no seu IRS pelo menos uma das palestras que, tal como Dallagnol, lhe serviram de segunda fonte de rendimento. Apesar de ainda ser muito popular, Moro perdeu a aura de impoluto superministro com peso político próprio e aparece cada vez mais como um bolsonarista convicto. Só que pode ter caído em desgraça no núcleo duro dos bolsonaristas, segundo a Folha de S. Paulo.
Nesta mesma quarta-feira, o juiz Gilmar Mendes tomou outra decisão que atinge diretamente o ministro da Justiça, ao conceder medida cautelar que impede que autoridades responsabilizem o jornalista Glenn Greenwald pela divulgação de mensagens obtidas por fonte anónima pelo site The Intercept Brasil. O magistrado determinou que autoridades públicas e seus órgãos de apuração administrativa ou criminal se abstenham de praticar atos que visem a responsabilização de Greenwald pela “recepção, obtenção ou transmissão de informações publicadas em veículos de mídia, ante a proteção do sigilo constitucional da fonte jornalística”. A tática de Moro e de Bolsonaro para combater as relações trazidas a público era criminalizar essa informação que, segundo ele, teria vindo de fontes ilícitas e criminosas. O veredito do juiz estabelece claramente que “a atuação do jornalista Glenn Greenwald na divulgação recente de conversas e de trocas de informações entre agentes públicos atuantes na Operação Lava Jato é digna de proteção constitucional, independentemente do seu conteúdo ou do seu impacto sobre interesses governamentais”.
Em resumo: muita coisa aconteceu no episódio da não transferência de prisão de Lula.
É certo que no mesmo dia, centrão e bolsonaristas votaram unidos a contrarreforma da Previdência (Segurança Social) em segundo turno, garantindo a sua aprovação. O diploma que reduz a pó o direito à reforma dos brasileiros passa agora para o Senado.
No essencial (para eles), a direita e o centrão estão unidos. Mas os conflitos crescentes entre poderes são importantes para deter as iniciativas mais aberrantes do governo Bolsonaro e do seu ministro Moro. E abrem espaço para que a esquerda se reorganize e o movimento popular reerga as suas forças, única forma de pôr abaixo o governo mais reacionário e incapaz da história do Brasil.
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