terça-feira, 20 de agosto de 2019

Por ideologia anti-Maduro, Bolsonaro se recusa a renegociar 3 bilhões


Por ideologia anti-Maduro, Bolsonaro se recusa a renegociar 3 bilhões

Valor diz respeito a parcelas vencidas ou por vencer de empréstimos do BNDES a empresas que fizeram obras na Venezuela

Jair Bolsonaro não pestanejou diante da enrascada de Mario Abdo Benítez. Sacrificou interesses e dinheiro brasileiros em jogo em Itaipu e ordenou à equipe que renegociasse o acordo que ameaça Benítez de impeachment. Pesou a ideologia. O presidente paraguaio é direitista. Com a Venezuela, a ideologia manda Bolsonaro fazer outra coisa. Por querer derrubar o esquerdista Nicolás Maduro, o governo recusa-se a renegociar uma forma de receber cerca de 3 bilhões de reais de parcelas vencidas ou por vencer de empréstimos do BNDES a empresas que fizeram obras na Venezuela. Mais: por se esforçar para tirar Maduro do poder, Bolsonaro leva a população a gastar 1 bilhão de reais a mais na conta de luz, em valores anuais, pois uma das reações do líder chavista foi parar de fornecer energia a Roraima. Com corte de verba na educação e previsão de não haver aumento real do salário mínimo em 2020, por exemplo, o Brasil está em condições de rasgar 4 bilhões de reais?
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A economia venezuelana está em ruínas, encolheu 56% em cinco anos. Falta dinheiro para tudo, daí a necessidade de renegociar com os credores. A intenção de acertar-se com o Brasil foi um assunto surgido há dois meses na CPI do BNDES, durante o depoimento de Joaquim Levy, o primeiro presidente do banco no governo Bolsonaro. Levy ocupou cargo de janeiro a junho e demitiu-se para não ser mandado embora pelo ex-capitão. Foi à CPI dez dias depois da demissão. “Chegou ao conhecimento do senhor uma tentativa de negociação da dívida por parte do governo venezuelano com o Brasil?”, perguntou-lhe o deputado Glauber Braga, do PSOL do Rio. “Me foi citada”, respondeu Levy.
Braga tinha informações prévias. Havia sido abastecido por funcionários do BNDES e pelo número 2 da embaixada venezuelana em Brasília, Freddy Menegote. Na CPI, Levy disse não ter participado de reunião a respeito de renegociação, nem recebido ordem do governo para recusar propostas. E fugiu de detalhes. Disse que precisava “consultar o meu jurídico, dado que esta aqui é uma sessão aberta”. Foi lhe oferecida a oportunidade de falar em uma sessão secreta da CPI, e nada. “Se não for ruim, a gente manda uma resposta oficial.” Até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 15, ele não tinha enviado resposta escrita à comissão.
Glauber Braga revela: Levy sabe que com Cuba a ideologia ainda mandou
Tudo o que Levy falou sobre a Venezuela, falou também sobre Cuba. A ilha sobrevive a duras penas, tem dívidas nascidas de operações do BNDES e tentou igualmente renegociá-las, conforme dito por funcionários do banco a Glauber Braga e depois foi confirmado pelo deputado com o número 2 da embaixada cubana em Brasília, Rolando González. O diplomata contou mais: até o início do governo Bolsonaro, dez bancos brasileiros operavam com Cuba, agora, só um, o Banco do Brasil. Menegote e González não atenderam pedidos de entrevista de CartaCapital.
O total já emprestado pelo BNDES para obras na Venezuela é de 1,5 bilhão de dólares. Começou em 1998, no governo FHC. O dinheiro financiou empresas brasileiras que tocavam as obras, caso da Odebrecht, não o governo venezuelano. As obras são quatro linhas de metrô (três em Caracas, uma na cidade de Los Teques), um estaleiro (Astialba) e uma siderúrgica (Nacional). Até o fim de julho, 1,1 bilhão de dólares havia sido amortizado no BNDES pelos tomadores. Havia ainda 356 milhões que tinham sido cobertos pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE) e 423 milhões eram as prestações a vencer. Somando-se estes dois últimos valores, são 779 milhões de dólares, uns 3 bilhões de reais, de inadimplência presente ou a caminho.
A economia venezuelana encolheu 56% em 5 anos. Daí a tentativa de Maduro de renegociar com os credores
O FGE é gerido pelo Tesouro Nacional, tem 8 bilhões de dólares atualmente e serviu de lastro a empréstimos do BNDES para obras na Venezuela. Quando esta não paga as empresas pelas obras construídas no país, elas não pagam o que tomaram no BNDES, daí o banco aciona o fundo para ser ressarcido. Na prática, quem está no prejuízo com a recusa à renegociação pedida pelos venezuelanos é o Tesouro, ou seja, o contribuinte, não o BNDES.
Com Cuba, a relação do banco também começou na era FHC, em 1995. O total já emprestado para empresas responsáveis por obras na ilha, não para o governo cubano, é de 656 milhões de dólares. A verba destinou-se basicamente à Odebrecht, para a construção de um porto (Mariel) e de uma fábrica de soros para hemodiálise. Até o fim de julho, 243 milhões de dólares tinham sido amortizados no BNDES pelos tomadores do empréstimo. Outros 34 milhões haviam sido cobertos pelo FGE e 710 milhões eram parcelas futuras. Uns 3 bilhões de reais em inadimplência consumada ou à vista.
“Nunca vi quem tem crédito a receber não se esforcar para recebê-lo”, diz Rocha
Um funcionário do BNDES disse a CartaCapital, sob a condição de anonimato, que a proposta da Venezuela pedia carência de dois anos e então o país retomaria o pagamento das empresas construtoras de obras. A proposta não solicitava descontos. Foi rejeitada sob o argumento de que o Brasil não reconhece o governo Maduro. À reportagem, o banco disse que, como as parcelas atrasadas foram cobertas pelo FGE, é ao “Ministério da Economia que cabe agora, em conjunto com o Ministério das Relações Exteriores e outros órgãos do governo brasileiro, realizar as gestões com as autoridades desses países (Venezuela e Cuba) para recuperá-las (as dívidas)”.
O governo foge do assunto, mas há pistas de que foi a equipe econômica que verbalizou a recusa em negociar com a Venezuela e Cuba. Questionado, o Itamaraty afirmou não ter rejeitado propostas dos dois países. À CPI do BNDES, Levy disse que “seria através da Sain” que o Brasil teria de negociar, uma vez que o FGE foi acionado e esse fundo é mantido pelo Tesouro. Sain é a Secretaria de Assuntos Internacionais, nome antigo da atual Secretaria de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, repartição do Ministério da Economia comandada por um diplomata, Marcos Troyjo. Questionado por CartaCapital, o ministério não quis comentar.
Montezano, amigo dos filhos do ex-capitão, prontifica-se a “explicar a caixa preta”
“Eu nunca vi quem tem um crédito a receber não fazer nenhum tipo de esforço para que esse crédito venha a ser pago. É ideologia pura”, diz Glauber Braga. “Se o presidente autoproclamado Guaidó assumisse na Venezuela, aí o governo brasileiro renegociaria.” Se o deputado direitista Juan Guaidó, presidente do Parlamento, subir ao poder, como quer Bolsonaro, o Brasil correrá o risco de não reaver mais o que a Venezuela deve. O principal assessor econômico de Guaidó, um venezuelano da Universidade Harvard chamado Ricardo Hausmann, tem planos de renegociar certas dívidas, sobretudo aquelas com a China e Rússia, os principais credores, e de cancelar outras, a fim de que seu país tenha grana para se reerguer. Nesse plano, “demandas relacionadas à alegada corrupção dos regimes de Chávez e Maduro vão ser excluídas”, conforme o jornal britânico Financial Times de 3 de julho.
Bolsonaro dissemina a visão de que os empréstimos do BNDES para obras na Venezuela nasceram de relações corruptas do PT com o chavismo, prato cheio para um governo Guaidó enquadrar tais empréstimos como “corrupção” e anular o débito de modo unilateral. A queda de Levy do comando do BNDES teve como uma das razões a resistência dele de abrir uma “caixa-preta” que Bolsonaro diz existir no banco. Seu sucessor, Gustavo Montezano, um engenheiro amigo dos filhos do ex-capitão, tomou posse em julho com a promessa de atender o chefe. “Vamos explicar a ‘caixa-preta’ para a população brasileira (…) Isso é um marco zero da nossa estratégia.”
Diz Guedes: “A respeito das relações financeiras com Venezuela e Cuba, não há denúncia: o banco financia operações e não um país”
A criação de uma CPI do BNDES, em março, na Câmara contribui para a ideia de corrupção em empréstimos do banco para obras na Venezuela. A comissão foi proposta por um deputado tucano, o paulista Vanderlei Macris, para “perscrutar-se sobre os ‘empréstimos secretos’ concedidos a outros países como Venezuela, Angola e Cuba”. Bolsonaro e Macris devem estar decepcionados. Até aqui, a CPI não descobriu nada, exceto que havia interesse econômico no apoio a obras na Venezuela, Cuba etc. O dinheiro financiou obras nesses países, mas quem lucrou foram empresas brasileiras, que empregam trabalhadores brasileiros, que pagam impostos no Brasil.
Frustração particular deve ter surgido com o depoimento, em 23 de abril, de Paulo Rabello de Castro, presidente do BNDES no governo de Michel Temer. Castro é Chicago Boy como Paulo Guedes, o atual ministro da Economia. “Frustrantemente para os senhores parlamentares, não tive eu mesmo o acesso a nenhuma denúncia interna, a algo que merecesse ser apontado, nem aqui nem antes”, afirmou. “A respeito das relações financeiras do banco com o governo da Venezuela e Cuba, há algo interessante, e talvez eu surpreenda com a resposta: nenhuma (denúncia). Por um motivo muito simples: o banco financia uma operação. O banco não financia um país.” Segundo ele, o Brasil tem cerca de 1% do comércio global, mas nas obras de engenharia chegou a 3,5%, graças ao apoio do BNDES a empreiteiras no estrangeiro.
SE GUAIDÓ SUBIR AO PODER NA VENEZUELA, O BRASIL NUNCA VERÁ A COR DO DINHEIRO
Presidente do banco durante a maior parte dos empréstimos na mira da CPI, o economista Luciano Coutinho depôs um dia depois de Castro. De acordo com ele, em 20 anos, o Brasil injetou 50 bilhões de dólares na Venezuela, dos quais só 2 bilhões eram do BNDES. Os outros 48 bilhões saíram de instituições privadas. Nesse período, os Estados Unidos injetaram 150 bilhões. “Era um mercado muito atrativo, disputado. A Venezuela, em algum momento, vai querer recompor a sua posição no mercado de crédito internacional. Não é do interesse de longo prazo de nenhum país estar inadimplente nos seus relacionamentos internacionais.”
O plano Hausmann de renegociação e calote de dívidas tem a ver com essa volta ao mercado de crédito global. Até aqui, não houve qualquer manifestação do Brasil a respeito das pretensões do assessor de Guaidó de não pagar dívidas “corruptas”, uma ameaça aos cofres brasileiros. Um silêncio incompreensível, dado o estado atual das relações entre os dois países. “Hoje, a principal preocupação econômica do Brasil com a Venezuela é receber dívidas, diferentemente do que acontece com Colômbia, Estados Unidos e China”, afirma o economista Pedro Barros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Investimentos e comércio entre Brasil e Venezuela minguaram, no embalo do desastre econômico por lá e da direitização aqui no pós-impeachment.
Coutinho esclarece: o Brasil em 20 anos injetou 50 bilhões de dólares na Venezuela e 2 são do BNDES
Barros chefiou o escritório do Ipea em Caracas. Acaba de concluir uma análise sobre a presença e os interesses de Brasil, China, EUA e Rússia na Venezuela, trabalho que seria apresentado na terça-feira 20 ao número 2 do Ministério da Defesa, o almirante Almir Garnier Santos. O estudo mostra que a Venezuela é palco de uma disputa geopolítica. Americanos interessados nas maiores reservas petrolíferas mundiais e com uma política interna influenciada pela postura em relação à Venezuela. Chineses com 67 bilhões de dólares de empréstimos à Venezuela em jogo e com compras gordas do petróleo de lá (uns 60% da produção). E russos dispostos a alimentar a instabilidade nas barbas de Tio Sam do mesmo jeito que Washington faz no entorno da ex-URSS, diretamente ou via Otan.
Há mais uma situação com a Venezuela em que, movido por ideologia, o Brasil de  Bolsonaro rasga dinheiro. Roraima é o único estado não interligado à rede elétrica nacional. Depende de energia hidrelétrica comprada na Venezuela. Essa energia chega por uma linha de transmissão (Guri) inaugurada em 2001 pelo então presidente FHC. Sem tal energia, Roraima precisa se virar com usinas movidas a óleo diesel, mais caras e poluidoras. Em março deste ano, a Venezuela fechou a torneira. Foi uma retaliação contra a participação do Brasil no golpe da ajuda humanitária planejado em Washington e levado adiante, em fevereiro, para tentar derrubar Maduro.
O nepotismo bolsonarista embasa uma ação do ex-PPS no STF. Em relação ao tema, Marco Aurélio Mello comenta “Não há a menor dúvida”
O senador por Roraima Telmário Mota, do PROS, esteve com Maduro em 17 de abril e cinco dias foi à tribuna falar do tamanho do prejuízo para o Brasil. “Com a energia vindo da Venezuela, a gente gasta 264 milhões de reais em um ano. Com as termoelétricas, nós gastamos 1,3 bilhão de reais, 1,1 bilhão a mais. Dinheiro que faz falta na saúde, na educação, nas estradas, na energia, na geração de renda e emprego. Sabe quem essa energia está abastecendo? O bolso dos ladrões do meu estado, porque lá é tudo MDB. E o seu Bolsonaro sentado com o (presidente do MDB e ex-senador por Roraima Romero) Jucá. Demagogia pura, muito pura.” Esse custo extra de 1,1 bilhão é pago pela população, na conta de luz mais alta. Segundo Mota, as usinas térmicas são de amigos de Jucá.
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Bolsonaro entrou meio contrariado na guerra econômica contra a Venezuela. Queria um conflito de verdade. Em abril, seu filho Eduardo escreveu a militares venezuelanos a incentivar a deposição de Maduro. Aliás, a nomeação de Eduardo para a embaixada em Washington, algo que depende de aprovação do Senado, virou uma batalha. Enquanto o deputado ia à Fiesp na segunda-feira 12 pedir apoio, o Ministério Público entrava com uma ação na Justiça a cobrar que só possa ser embaixador quem tiver três anos de CV em diplomacia e reconhecidos serviços na área. Sobre nepotismo, nada. Quem tocou em nepotismo foi o partido Cidadania, o ex-PPS, em uma ação no Supremo Tribunal Federal em 9 de agosto. A ação caiu com o juiz Ricardo Lewandowski. Seu colega Marco Aurélio Mello já comentou não ter a “menor dúvida” do nepotismo.
Telmário Mota constata: “demagogia muito pura”
Apesar dos esforços eduardianos, na terça-feira 13 o ministro da Defesa da Venezuela, general Vladimir Padrino, voltou a repetir publicamente: “Não vai haver nem golpe de Estado, nem governo de fato, nem transição alguma. Aqui não vai se instalar nenhum governo porque há uma Força Armada consciente de suas obrigações morais e constitucionais”.

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