domingo, 1 de setembro de 2019

Livro questiona julgamento que inocentou Bolsonaro de planejar explodir bombas em quarteis

Livro questiona julgamento que inocentou Bolsonaro de planejar explodir bombas em quarteis






Reprodução
Por Rafa Santos (@rafasantors)
O Brasil vive um período marcado por fake news disseminadas por redes sociais e ódio ao trabalho da imprensa. O sentimento de repulsa a atividade dos repórteres por vezes é incentivado por agentes públicos de primeiro escalão como o presidente da República e os seus três filhos. Apesar disso, quase nenhuma ferramenta é tão eficaz em explicar realidades e fatos complexos do que o bom jornalismo. Com mais de 40 anos de carreira, Luiz Maklouf Carvalho tem credenciais invejáveis no ofício. Seu trabalho é garantia de rigor na apuração e texto elegante.
Foi com essa bagagem que o repórter se propôs a destrinchar o julgamento que resultou na saída conturbada de Jair Bolsonaro do Exército no livro “O Cadete e o Capitão”. Um dos casos mais nebulosos na biografia do atual presidente do Brasil. Foram mais de 700 páginas de documentos, entrevistas e o que o autor chama de “cereja do bolo” do livro.

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Um dos velhos ditados do jornalismo é que bons repórteres são como goleiros. Os dois podem ter técnica apurada, mas pouco adianta se não possuírem o fator imponderável da sorte. Maklouf tem os dois. Com uma simples pergunta conseguiu o áudio da sessão secreta em que 13 ministros do Superior Tribunal Militar analisaram a suposta participação de Bolsonaro em plano que previa explosão de bombas em quarteis. Em entrevista ao Yahoo Notícias, o autor fala sobre bastidores da obra.
Yahoo Notícias: Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre a trajetória militar do presidente Jair Bolsonaro?
Luiz Maklouf Carvalho: Soube que daria um livro ao receber, para reportagens no Estadão, a documentação oficial que está nos arquivos do Superior Tribunal Militar. São mais de 700 páginas com os processos a que Bolsonaro respondeu – por ter sido acusado pela revista Veja, em 1987, de ter um plano para explodir bombas em instalações militares, em protesto contra os baixos soldos. E mais o áudio completo da sessão secreta em que treze ministros do STM o julgaram, em 16 de junho de 1988, absolvendo-o por 9 a 4. Esse conjunto de documentos, além de entrevistas e pesquisa, permitiu que uma boa história confusa e mal contada fosse finalmente esclarecida, com começo, meio e fim.
Meu livro questiona o resultado do julgamento do STM. O capitão Bolsonaro foi considerado não-culpado com base em suposto empate de quatro laudos grafotécnicos sobre dois croquis que Veja atribuiu a ele – um deles com a simulação da explosão de bomba na adutora do Guandu. Na leitura da maioria dos ministros-juízes, havia empate de dois a dois, nesses laudos periciais, o que fez prevalecer o princípio do in dubio pro reu – na dúvida se absolve o réu. Mostro, com a íntegra dos laudos, todos no livro, que não há empate algum, e sim dois laudos atribuindo a autoria dos croquis a Bolsonaro. Dois a zero, portanto.
Yahoo Notícias: O senhor tem feito questão de deixar claro que a obra não tem caráter panfletário. Que é um livro de repórter. Um livro ancorado em fatos. Quanto tempo o senhor se dedicou ao livro? Quantas pessoas entrevistou?
Luiz Maklouf Carvalho: Sou repórter há coisa de 40 anos – dos meus 66. Este é o meu oitavo livro-reportagem. Dois deles ganharam o prêmio Jabuti: “Mulheres que foram à luta armada”, e “Já vi esse filme – Reportagens e polêmicas sobre Lula e o PT (1985-2005)”. No caso de “O cadete e o capitão”, a primeira matéria que publiquei sobre o julgamento no STM, no Estadão, foi em abril de 2018 – “O julgamento que tirou Bolsonaro do anonimato”. Desde antes já tinha a documentação, e o áudio. Quando a editora Todavia topou a ideia do livro, em janeiro último, voltei a mergulhar nos documentos. Fiz uma pesquisa extensa na imprensa da época dos fatos, e em alguns livros, além uma dúzia de entrevistas com participantes da história. O hoje presidente Jair Bolsonaro não quis dar entrevista.
Yahoo Notícias: No livro, o senhor relata que Bolsonaro era ótimo nos aspectos físicos. Tinha o apelido de “cavalão” e praticava muitos esportes. O senhor acredita que Bolsonaro teria um futuro promissor no exército? É possível admitir que ele era um militar medíocre?
Luiz Maklouf Carvalho: O livro relata, baseado na documentação – as chamadas “folhas de alterações”, com o registro das principais ocorrências da vida militar -, que o cadete e depois oficial Jair Messias Bolsonaro destacou-se na parte atlético-esportiva, e por isso ganhou, na Academia Militar das Agulhas Negras, o apelido de “Cavalão”, como ele próprio já contou. Recebeu diversos elogios por essa performance, todos eles registrados no livro.
Nas matérias de conteúdo, foi um aluno razoável, estava longe de estar entre os primeiros colocados. Não posso dizer que futuro ele teria no Exército. Mas acredito que teria a carreira prejudicada pelos episódios em que se envolveu – a partir de uma prisão disciplinar por quinze dias, por ter assinado, na revista Veja, em setembro de 1986, o artigo “O salário está baixo”, considerado uma “transgressão grave” ao Regulamento Disciplinar do Exército
Yahoo Notícias: O senhor conseguiu ter acesso a um arquivo de áudio de cinco horas do julgamento de Bolsonaro no exército. Qual o caminho para conseguir esses documentos históricos?
Luiz Maklouf Carvalho: Pedir à assessoria de imprensa do Superior Tribunal Militar. Tive a ideia de perguntar se havia um áudio da sessão secreta do julgamento – e havia. Dias depois o recebi, por e-mail, assim como já havia recebido, eu e outros colegas, os três volumes com o PDF da documentação.
Yahoo Notícias: Além de ser um dos mais experientes repórteres brasileiros em atividade, o senhor também é bacharel em direito. Em que isso o ajudou a identificar aspectos de interesse público no livro?
Luiz Maklouf Carvalho: Meu conhecimento jurídico, não mais do que básico, sempre ajuda no entendimento de documentação processual. Foi fundamental no caso concreto, com julgamento em instâncias diferentes e com movimentação algo complexa. Permitiu uma narrativa didática e, ao mesmo tempo, tensa.
Yahoo Notícias: Um dos momentos marcantes do livro foi o artigo assinado por Bolsonaro na revista “Veja” em 1986 em que reclama de baixos salários. Ele ficou preso 15 dias preso por conta do ocorrido? Como esse artigo repercutiu no exército na época?
Luiz Maklouf Carvalho: O artigo fez muito barulho – inclusive nos meios militares. O capitão Bolsonaro ganhou seus primeiros quinze minutos de fama – e teve apoio de parte da oficialidade, que manifestou solidariedade. Não foi o único episódio de indisciplina militar naquele período. Aqui e ali pipocaram protestos de outros oficiais. Alguns também foram presos, disciplinarmente.
Yahoo Notícias: A “Veja” também publicou croquis de planos atribuídos a Bolsonaro de explodir bombas para pressionar o exército a melhorar sua política salarial. O livro fala muito dos laudos que atestam a autoria dos croquis do atual presidente. Bolsonaro, por sua vez, alegou que existiam dois laudos que diziam o contrário. Por que o senhor contesta essa alegação no livro?
Luiz Maklouf Carvalho: Veja atribuiu os dois croquis ao capitão Bolsonaro – um deles com a simulação da bomba. O capitão negou que os tenha feito. Como saber quem estava mentindo – Veja ou Bolsonaro? Fazendo a perícia grafotécnica nos croquis. São quatro perícias – a íntegra dos laudos está no livro, como já disse. Duas são inconclusivas – e duas dizem que os croquis foram feitos pelo capitão Bolsonaro. Esse fato – dois laudos contra ele, e nenhum a favor - foi decisivo para que um conselho de Justificação do Exército o considerasse culpado por 3 a 0. Foi com esse resultado adverso que o caso subiu para o Superior Tribunal Militar. Foi então que o próprio capitão Bolsonaro, em defesa que ele próprio assinou, sem advogado, afirmou que os dois laudos inconclusivos eram a favor dele. A maioria dos ministros acatou esse absurdo jurídico – que está na sentença final – e, durante o julgamento, como mostra o áudio da sessão secreta, não deu maior importância à questão dos laudos.
Yahoo Notícias: Esses laudos foram feitos de maneira ideal? Quais são os aspectos frágeis deles?
Luiz Maklouf Carvalho: O primeiro laudo foi feito pelo Batalhão de Polícia do Exército, não especializado, em uma xerox da página de Veja que publicou os croquis. Xerox. Deu, obviamente, por autoria inconclusiva, tal a precariedade do material.
O segundo também foi feito pelo Exército, desta vez em cima dos desenhos originais. Deu inconclusivo. O terceiro foi feito pelo Instituto de Criminalística da Polícia Federal, com o acréscimo de novos manuscritos feitos pelo capitão Bolsonaro durante o julgamento do conselho de justificação. O laudo diz que não restam dúvidas sobre a autoria de Bolsonaro. O quarto, depois deste, foi feito pelo Exército – e retificou um dos laudos inconclusivos, passando a considerá-lo acusatório contra o capitão. Dois a zero, portanto. O livro detalha essa sequência, ponto a ponto.
Yahoo Notícias: No livro, o ministro Aldo da Silva Fagundes meio que traçou um perfil psicológico de Bolsonaro. Afirmou que é “muito difícil concluir pela insanidade mental desse homem. Seria um radical, interessado em subverter a ordem pública, um terrorista, enfim? Muito difícil.” Por fim, o absolveu. Como os superiores do exército enxergavam o então capitão?
Luiz Maklouf Carvalho: Não dá para saber com precisão. O mais graduado deles – o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército do governo Sarney – endossou, no mérito, a condenação de 3 a 0. Um outro, o general Newton Cruz, então na reserva, e símbolo da ditadura militar recém-finda, foi testemunha de defesa do capitão Bolsonaro. E mais um outro, ainda, o general Ernesto Geisel, penúltimo presidente da ditadura, afirmou, em entrevista a historiadores da Fundação Getúlio Vargas, que Bolsonaro era um “mau militar”. Mostro no livro que a maioria dos votos favoráveis ao capitão Bolsonaro, no julgamento do STM, é de ministros que foram indicados na época da ditadura, o que foi decisivo para o resultado.
Yahoo Notícias: O senhor revelou que um dos seus materiais de pesquisa foi o livro “Mito ou Verdade”, de autoria de Flávio Bolsonaro, o filho do atual presidente da República. Quais inconsistências encontrou na obra?
Luiz Maklouf Carvalho: É um livro útil – por ser o único relato mais detalhado de partes da vida do personagem, que foi, certamente, a fonte principal do hoje senador Flávio Bolsonaro. Existem exageros e/ou afirmações que não encontram respaldo nos fatos – entre eles a invenção de que Bolsonaro ajudou o Exército na caçada ao Lamarca, no Vale do Ribeira. Ou Bolsonaro ter chamado publicamente de mentiroso um oficial superior dentro da Academia Militar das Agulhas Negras sem ter sofrido qualquer punição.
Yahoo Notícias: Um dos personagens mais importantes do seu livro é a imprensa. Como era a visão dos militares sobre a imprensa na época do julgamento de Bolsonaro?
Luiz Maklouf Carvalho: Na visão da maioria que absolveu o capitão Bolsonaro – exposta no áudio da sessão secreta – a revista Veja e sua repórter, Cássia Maria Rodrigues, é que foram os réus. Ambos – e portanto a imprensa – foram ofendidos gravemente. Resgato, no livro, a participação de revista Veja no episódio. Alguns de seus profissionais testemunharam no conselho de justificação – entre eles a repórter Cássia Maria, e o naquela época editor assistente da sucursal de Veja no Rio de Janeiro, Ali Kamel, hoje diretor de jornalismo da TV Globo, e um dos entrevistados.
Yahoo Notícias: Tanto a revista “Veja” como a família Civita – então dona da editora Abril— e a repórter Cassia Maria foram alvos de ataques ferozes de Bolsonaro e de militares. Isso está retratado no livro. O senhor tentou entrevistar a jornalista e, por meio de interlocutores, ela negou o pedido de entrevista. Um dos motivos alegados era “medo”. Alguém além dela se negou a conceder entrevista pelo mesmo motivo?
Luiz Maklouf Carvalho: Veja e a repórter foram atacados por parte dos ministros militares durante o julgamento no STM, como mostra o áudio. O capitão Bolsonaro sempre a atacou, afirmando que Veja a demitiu, logo depois, por incompetência. Provo no livro, com documento, que isso não é verdade. A repórter é que pediu demissão, por ter sido convidada a trabalhar em outro veículo de prestígio, o Jornal do Brasil.
Tentei entrevistar a repórter, como outros jornalistas também tentaram, sem sucesso. Pelo que apurei, o motivo é medo.
Yahoo Notícias: Jair Bolsonaro também se negou a conceder entrevista ao senhor sobre o caso. O que poderia ter saído dessa entrevista?
Luiz Maklouf Carvalho: Da minha parte, perguntas relativas aos fatos, lastreadas na documentação e nas apurações que fiz.

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