quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O palco do "Dia do Fogo"

      
O palco do "Dia do Fogo" 
por Ciro Barros
                                                            
Quando a balsa cruzou o Tapajós em Itaituba (PA), tive a terrível sensação - uma das piores para qualquer repórter em campo - de estar chegando atrasado na pauta. Nosso destino era Novo Progresso (PA), o principal palco do chamado “Dia do Fogo”, uma macabra manifestação convocada por fazendeiros da região que propunha a queima da floresta como forma de recado político. Meu parceiro José Cícero, com quem já rodei uns 10 mil km fazendo reportagem, e eu chegaríamos a Novo Progresso dez dias depois do “protesto”. Na BR-163, parado nos bloqueios das obras do Exército ou contando as inumeráveis carretas de soja, sofria com o atraso, mas tentava focar na pauta original: o PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) Terra Nossa, projeto de assentamento tomado pela grilagem e a extração ilegal de ouro e madeira, onde ocorreram três mortes e um desaparecimento em 2018.
Após algumas horas de viagem, vimos que o fogo ainda estava lá, crepitando na beira da estrada, mesmo em áreas protegidas como a Floresta Nacional do Jamanxim. Cobrindo o nariz com a camiseta, fomos filmar alguns focos de incêndio. Os olhos ardiam das cinzas que subiam do braseiro e eu só pensava em como administrar uma futura crise de asma, que eu já dava como certa. Chegando ao assentamento, mais fogo e mais cinzas. 
O PDS Terra Nossa, no papel um assentamento voltado a atividades de menor impacto ambiental para agricultores atendidos pela reforma agrária, estava mais para um conglomerado de fazendas avançando sobre os pequenos lotes de agricultores. Em um destes, encontramos indícios de um incêndio criminoso. Os assentados nos contaram sobre a dura rotina da violência vivida por lá. A principal liderança deles, Maria Márcia Elpídia de Melo, chorou a ausência do filho exilado do assentamento em função das denúncias feitas pela mãe. Márcia está na linha de tiro simplesmente por exigir que o assentamento onde mora sirva ao propósito definido em lei: a reforma agrária. Já com anos de luta, diz que continuará exigindo os direitos dos assentados, mas, quando desabou no choro lembrando do filho, mostrou resignação com a própria morte. “Eu sei que vou morrer. Me conformo com a minha morte. Só não quero que matem meu filho”, disse. A frase virou título da reportagem sobre os casos de violência do Terra Nossa.
A fala de Márcia me pegou em cheio. Me fez pensar na ansiedade - jornalisticamente pertinente, diga-se - que eu vivia para mandar para São Paulo algum material relacionado às queimadas que, desde então, viraram escândalo mundial. Ainda que eu tenha conseguido humildemente atingir este objetivo, talvez sem a maestria de um repórter como Ivaci Matias no Globo Rural, me pergunto como convivemos - mídia e sociedade - tão pacificamente com o caos fundiário e a impunidade que imperam na Amazônia. Estes são dois incêndios colossais que há séculos corroem o maior bioma do país sem nenhum sinal de perder força. Eles não poupam nem mesmo áreas protegidas pela União, como o PDS que visitamos. Anualmente, essas outras queimadas, invisíveis, deixam dezenas de vítimas que nunca terão suas mortes esclarecidas e às quais algum jornal local dedicará algumas poucas linhas. 
As queimadas agora em evidência passarão, a ênfase da imprensa na Amazônia também - descontados honrosos jornalistas e veículos que seguirão na pauta, grupo do qual a Pública faz parte. É preciso revirar o pasto seco onde fagulhas como o Dia do Fogo conseguiram se espalhar com tanta facilidade. Sem a gasolina da impunidade e do caos fundiário, o fogo não teria tanto alcance. Sem a ênfase adequada da imprensa, esse combustível só vai se espalhar ainda mais.
 
Ciro Barros é repórter na Agência Pública.
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reportagem comentada pelo repórter Ciro Barros no texto acima, publicada na semana passada, foi republicada por 29 veículos, como IG, Yahoo e Carta Capital. A história também saiu em veículos locais, como Folha do Progresso, Diadia Progresso e Portal Pará News.
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