quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Entenda contexto social por trás da histórica onda de protestos no Chile


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Entenda contexto social por trás da histórica onda de protestos no Chile

A panela de pressão que se havia acumulado nas últimas décadas de administração do modelo neoliberal arrebentou de forma imparável

MARÍA JOSÉ AVELLO
Diálogos do Sul Diálogos do Sul
Santiago (Chile)
O aumento da passagem do transporte público, junto às declarações de diferentes figuras pertencentes ao governo de Sebastián Piñera, que insultaram a inteligência das pessoas que dão a vida trabalhando, como “um incentivo a levantar-se mais cedo”, desataram a fúria de um país entumecido de medo e submissão, como uma pequena gota que transborda um copo de injustiças há muito suportadas.
O modo de enfrentar a mobilização (que no começo não era mais que uma brincadeira de estudantes secundaristas de pular as catracas sem pagar, cantando) foi a aplicação de violência desmedida por parte dos carabineiros. Como isso não funcionou e provocou a apoio incondicional da maioria da população, que também se somou ativamente, declararam o estado de emergência e puseram os militares nas ruas. Mas as pessoas em vez de se assustarem e ficar em suas casas, indignou-se e participou com mais força e convicção.
Aconteceu de tudo. Uma grande maioria se manifestando pacificamente, muita gente organizando destroços focalizados nos enclaves da privatização, o mercado desregulado e a usura: estações de metrô, supermercados, farmácias, bancos, edifícios estatais, companhias de serviços básicos foram saqueados e queimados. Rapidamente se somaram regiões ao que era uma manifestação de Santiago, depois convocou-se uma greve nacional para segunda-feira, e se somaram sindicatos de diferentes áreas produtivas.
Reprodução Facebook
Manifestantes tomam as ruas de Santiago

Sábado, 19 de Outubro

A noite deste sábado, 19 de outubro foi intensa e muito preocupante, foi declarado o toque de recolher em várias comunas da região metropolitana e da região de Valparaíso; nesse contexto há imagens de militares disparando como loucos em diferentes bairros de Santiago, Valparaíso, Iquique, Antofagasta, Concepción, Temuco.
Há mortos, mas ainda não há cifras oficiais. Além do mais há muitas montagens, há vídeos que evidenciam o modo como os carabineiros têm agido provocando incêndios e roubando. Algumas pessoas têm o temor de que se esteja agudizando intencionalmente para fazer um autogolpe ou pelo menos para justificar o uso desmedido da violência estatal com o resultado de mortes.
Civis de extrema direita têm saído para enfrentar os manifestantes, fazendo uso de seus veículos particulares para atropelar manifestantes e disparar armas de fogo, com toda a impunidade.

Abusos, custo de vida, desemprego...e a previdência privada

As pessoas estão muito cansadas do abuso. A grande maioria da população apoia o movimento e se soma porque não se trata dos trinta pesos do aumento da passagem; isso é apenas a ponta do iceberg e a gota que transbordou o copo, e tudo mundo sabe disso. Trata-se dos salários que caíram, o desemprego que aumentou e o trabalho precarizado.
O custo de vida aumentou de forma sustentada até cifras exorbitantes, absurdas para um país com salários de terceiro mundo e em base à corrupção de políticos, conspiração de empresários e a instalação cada vez mais descarada de políticas de privatização de todos os serviços e aspectos básicos da vida, com um encarecimento progressivo que não temos como cobrir: a água, a eletricidade, o gás, o aluguel, o transporte, a saúde ou a educação.
Só em transporte se gasta 20% do salário mínimo. O aluguel de um apartamento barato equivale a um salário mínimo. Fenômenos que se combinam com a aberração que é o sistema de aposentadoria (AFP) onde mais da metade das pessoas idosas se aposenta com o equivalente a um terço do salário mínimo. Hoje no Chile se vê todos os dias velhos e velhas que vão recolher frutas e verduras que sobram das feiras livres, porque o que ganham não dá nem para comer.
Por outro lado, tem sido interessante que diferentemente de outras manifestações, nesta oportunidade se somaram segmentos da população que antes teriam ficado contra qualquer tipo de mobilização, ou que tinham se mantido indiferentes.
Há amplos setores que se consideram de classe média, porque puderam melhorar sua posição social durante a bonança do período de crescimento econômico do retorno à democracia: alguns por ser profissionais e principalmente porque puderam comprar casa, automóvel e viajar nas férias (esse é o modelo do empreendedor ou do trabalhador que supera a média salarial) mas esse processo também lhes afetou, porque seus pais recebem baixas aposentadorias, seus filhos estão em escolas privadas caras, o combustível e o uso das estradas exclusivas sob concessão (pedágios) se estendeu e encareceu; um período curto sem emprego os leva rapidamente a perder tudo  e finalmente o que pagam por tudo é ridiculamente caro.
Além do mais, foram observadas manifestações em setores nunca imaginados, como nas comunas de La Dehesa, Las Condes, La Reina e Vitacura, que pertencem ao segmento mais acomodado da sociedade chilena.
O dados apresentados por setores do governo não dão conta da quantidade de assassinados durante esta madrugada e tentam o velho truque de sustentar que se trataria de grupos violentos minoritários “que se portam mal” e que haveria que controlar para restabelecer a normalidade. O que não reconhecem, não foram capazes de diagnosticar e muito menos de assumir é que se trata de um mal-estar generalizado, inorgânico, estendido e de alta intensidade que dificilmente poderão parar com a diminuição desses trinta pesos da passagem ou com ameaças.

Panelaços

As panelas não pararam um instante de soar em todo o país durante dois dias completos e não pararão até que Piñera renuncie, tirem os militares das ruas e se convoquem eleições democráticas para salvar o país desta tremenda crise do modelo implantado em ditadura. Com o agravante de que, por primeira vez, a fúria desatada não tem representantes, não há com quem estabelecer um diálogo, nem setor políticos que possa capitalizar adesão e representatividade.
Esta vez se trata de um diálogo com as pessoas e em um país tão institucional, burocrático e autoritário como o Chile, não há capacidade política para abordar tal desafio. Haverá que construí-la entre todos ou morrer em uma nova arremetida ditatorial.

*Socióloga e Escritora Chilena 
**Tradução: Beatriz Cannabrava
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