26 DE DEZEMBRO DE 2019, 14H07
2019, o ano I do fascismo à brasileira
Rodrigo Perez Oliveira: "Moro e Bolsonaro apontam para o futuro, disputam o controle de uma promessa utópica. Lula é a experiência testada e aprovada, um momento feliz do passado recente"
O ano político de 2019 terminou em 25 de dezembro, quando o presidente Jair Bolsonaro sancionou o pacote anticrime, a menina dos olhos de Sérgio Moro. Com o “pacote anticrime”, Moro esperava capitalizar pra si a agenda da segurança pública, o grande filão politico de Jair Bolsonaro.
O Congresso Nacional desidratou o texto original de Moro, que tinha claros contornos fascistoides. O excludente de ilicitude, por exemplo, foi derrubado pelos parlamentares. Bolsonaro vetou outros 22 pontos, além de ter empurrado goela abaixo de Moro o juiz de garantias, visando o controle da “legalidade das investigações criminais”. Moro queria que a “investigação criminal” ficasse sob controle exclusivo do Ministério Público e da Polícia Federal, sem nenhuma fiscalização externa.
Moro é fascista com verniz de civilidade, com gestos controlados, vocabulário polido e apoiado pela mídia hegemônica. Bolsonaro é aloprado, fedorento, feio. Moro é mais perigoso que Bolsonaro.
O texto sancionado foi o resultado de uma aliança conjuntural entre o presidente e o Congresso Nacional que teve o objetivo de enfraquecer Sérgio Moro, hoje a liderança mais forte em atuação no jogo político brasileiro. Na altura em que escrevo este texto (madrugada do dia 26 de dezembro), a hastag #bolsonarotraidor está entre os trend topics do Twitter.
Em sua conta pessoal no Twitter, Moro diz que não é o “projeto dos sonhos, mas vamos em frente”. A mensagem é clara: Moro é o sonho, o anjo fundador de um país sem corrupção e sem violência. Bolsonaro é o traidor que se juntou à velha política para bloquear o futuro.
Assim, Moro compromete Bolsonaro junto a uma opinião pública assustada e desejosa do endurecimento do aparato repressor do Estado. Na corrida pelo controle do projeto fascista, Moro termina o ano meio corpo na frente de Bolsonaro.
Em janeiro, a situação era outra, mas nem tanto.
Bolsonaro subia a rampa do Planalto para ser empossado na presidência da República como o símbolo da energia disruptiva liberada em junho de 2013. No vocabulário da engenharia, “disruptiva” é a energia inesperada liberada por um sistema mecânico, cujo funcionamento é anormal, defeituoso.
A disruptividade já começou a se manifestar nas eleições de 2014. Basta lembrarmos do fenômeno Marina Silva: 1,20 minutos de propaganda na TV, campanha eleitoral impulsionada pelas redes sociais e impressionantes 21,32% dos votos. Em vários aspectos, Marina Silva antecipou o fenômeno que levaria Bolsonaro ao Palácio do Planalto: a insatisfação com o establishment político da IV República, constituído pela trinca partidária formada por PT, PMDB e PSDB.
Mas Bolsonaro não herdou sozinho o capital político de 2013. Sérgio Moro, desde a corrida presidencial, era o pior tipo de aliado que alguém pode ter: aquele que é mais forte, mais poderoso. Sem nunca ter participado de eleições ou ter ocupado cargo na política institucional, Moro representa melhor que Bolsonaro a tão glorificada imagem da “nova política”.
Bolsonaro, naquele que talvez tenha sido seu grande erro estratégico, nomeou Moro para o superministério da Justiça e da Segurança Pública, dando numa bandeja de prata ao seu principal adversário o controle daquelas que talvez sejam as grandes agendas políticas brasileiras nesses tempos de crise: justiça e segurança pública. Melhor seria ter deixado Moro em Curitiba, como cão de guarda de Lula.
Não foram poucos os embates entre Moro e Bolsonaro: controle do Coaf, direção da Polícia Federal e, agora, os vetos no pacote anticrime.
Nos primeiros rounds dessa disputa, Moro levou a melhor. Bolsonaro era o aloprado, mal educado e Moro era o avalista, o homem premiado na imprensa internacional e incensado pela mídia brasileira. Em junho, com o início dos vazamentos dos chats privados dos operadores da Lava Jato feitos pelo site Intercept Brasil, veio o revés. Moro começava a viver os dias mais difíceis de sua curta e meteórica vida pública.
Agora estava comprovado aquilo que muitos já sabiam: no processo que resultou na condenação de Lula, Moro agiu como o coordenador da acusação, foi parcial e violentou a Constituição e a lei orgânica da magistratura.
Os vazamentos criaram algum constrangimento para Sérgio Moro, alterando momentaneamente a hierarquia estabelecida entre o Ministério da Justiça e o Palácio do Planalto. Agora, era Moro quem precisava de apoio e Bolsonaro soube se aproveitar muito bem do momento de fragilidade de seu adversário: demorou a se posicionar, assumiu o controle da narrativa ao levar Moro pelo braço a um jogo de futebol. Moro, homem de gabinete e não versado nas performances de palanque, foi obrigado a aceitar a posição de coadjuvante. Por alguns meses, Bolsonaro parecia ter se tornado maior que Moro.
Bolsonaro, então, dobrou a aposta, atacando com frequência e sem nenhum pudor as instituições estabelecidas: críticas públicas ao Congresso Nacional, ao STF, ameaça de AI-5, conflitos com sua própria base aliada que resultaram no rompimento com o PSL, partido pelo qual disputou as eleições de 2018.
Os menos atentos acreditam que essas crises significam a fragilidade do governo. A verdade, entretanto, é outra: Bolsonaro é o resultado do caos institucional. Em um cenário de normalidade, Bolsonaro ainda seria deputado de baixo clero, representando os interesses corporativos dos pensionistas das Forças Armadas. Para o bolsonarismo, a crise não é fragilidade. É alimento vital.
Ao atacar publicamente as instituições, Bolsonaro tenta colar nelas a pecha da “velha política”, excitando, assim, sua base social orgânica. Ainda não sabemos com clareza o tamanho exato dessa base. As eleições municipais do ano que vem dirão algo a respeito disso.
Enquanto isso, Moro ficou na defensiva, esperando para saber o tamanho do estrago da Vaza Jato. Limitou-se a negar o conteúdo dos vazamentos e agir como leal defensor dos interesses da família Bolsonaro. A PF não incomodou Fabrício Queiroz, não investigou Flávio Bolsonaro. Moro ainda tentou federalizar o caso Marielle Franco, num gesto de afago ao clã presidencial.
Os últimos dois meses do ano mostraram, para a felicidade de Sérgio Moro, que a bomba prometida pelo Intercept Brasil não passou de um estalinho, ou traque-de-massa, como se diz aqui na Bahia. Em pesquisa recente, o Data Folha mostrou que Moro é mais popular que Bolsonaro, contando com o apoio de 53% da população.
Mas como nem só de opinião pública é feita a política, a Vaza Jato enfraqueceu Moro no plano da institucionalidade. Liderado por Gilmar Mendes, o STF revisou o entendimento sobre a prisão em segunda instância, o que acabou beneficiando Lula, que foi solto no início de novembro.
Nesses quase dois meses de liberdade, Lula está investindo na organização de uma frente ampla que envolveria o PT, as esquerdas em geral e aquilo que podemos chamar de modo um tanto impreciso de “centro democrático”. O grande capital político de Lula é a memória de seus governos, marcados pela ampliação do consumo e pelo desenvolvimento econômico.
O ano acaba, então, mais ou menos assim: o fascismo à brasileira está sendo disputado na unha por Moro e Bolsonaro. Ambos se apresentam como lideranças revolucionárias que querem romper com o passado recente e construir um futuro melhor, saneado de toda a corrupção política e moral. Moro termina 2019 tal como começou: mais forte que Bolsonaro.
As esquerdas, por sua vez, não foram capazes de criar sua versão de 2013, de fabricar sua própria liderança disruptiva. As esquerdas não têm um outsider para chamar de seu e, por isso, Lula ainda é sua grande liderança, talvez a única.
Moro e Bolsonaro apontam para o futuro, disputam o controle de uma promessa utópica.
Lula é a experiência testada e aprovada, um momento feliz do passado recente, dos anos de ouro do regime político forjado na redemocratização.
Promessa x Memória. Nesses termos que se dará a disputa política em 2020. Hoje, qualquer previsão não passaria de aposta, e torcida.
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