segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Xadrez dos sofimas sobre o crescimento da economia brasileira, por Luis Nassif


Xadrez dos sofimas sobre o crescimento da economia brasileira, por Luis Nassif

Peça 1 – a armadilha da retórica de guerra

A ideologia é a praga mortal do intelectualismo, especialmente nas discussões econômicas.
Cria-se o embate ideológico. Cada lado escolhe os seus centuriões, que entram no coliseu da mídia para vencer ou vencer. O coliseu da mídia é restrito, não é como o da academia, que exige meses e meses de preparação para um momento de gozo: o da publicação da tese. Na mídia são batalhas sucessivas, onde o que menos importa é a análise do todo. O juiz da disputa não é um acadêmico de saber reconhecido, mas um editor de jornal, que segue o padrão do “in” e do “out”. É “in” dizer que toda forma de gastos público é nefasta? Então, tome manchete na veia.
A cada semana (se for coluna semanal) toca a levantar fatos específicos que permitam o gozo rápido na defesa incondicional das próprias temas. Fogem-se dos temas principais para se fixar nos pequenos embates irrelevantes, mas com resposta pré-definida: só aceito os fatos que comprovem minha tese.
Não há os predicados da boa polêmica, na qual os dois lados vão refazendo seus pontos de vista à luz do que o outro levanta. Não se trata de discussão científica, mas de vale-tudo, no qual não importa decifrar os enigmas, mas em derrotar o oponente.

Peça 2 – a discussão sobre políticas anticíclicas

Nas discussões econômicas via mídia, há duas teorias para superar a crise. Ambas têm como ponto central o dilema dos gastos públicos.
Os keynesianos colocam a demanda como propulsora do crescimento. Tendo demanda, as empresas ampliam sua capacidade, contratam, havendo mais contratação há mais demanda, havendo mais demanda, haverá mais arrecadação fiscal, e assim por diante. E se sai da crise com menos sacrifício dos cidadãos – que deveriam ser o objetivo final de qualquer política econômica civilizada. Se as famílias estão endividadas e as empresas com capacidade ociosa, o único agente capaz de injetar demanda na economia é o Estado, através do aumento dos gastos públicos.
Os liberais focam nos indicadores macroeconômicos, basicamente na parte fiscal e na inflação. Excesso de demanda pressiona os preços; excesso de gastos comprometem o equilíbrio fiscal. Todos os investimentos dependem do equilíbrio fiscal. Havendo equilíbrio fiscal, as empresas voltam a investir, as pessoas a comprar.
O grande desafio é estimar o nível adequado de gastos, que estimule a economia sem pressionar os preços, e permita uma elevação da receita fiscal maior do que a dos gastos utilizados para estimular a economia.
A boa ciência deveria estar estudando esses ângulos. Se o ajuste fiscal for muito rigoroso, acentua a queda da economia, levando à redução da receita fiscal e a mais déficit fiscal e menos crescimento.
Os ideólogos não têm nuances. Ou são integralmente a favor dos gastos públicos ou radicalmente contrários. É aí que mora o perigo.

Peça 3 – como medir a eficácia

De 2013 a 2014 o país viveu sob o signo de um keynesianismo imprudente, um festival de isenções fiscais, contenção de preços de tarifas, superdimensionamento de políticas públicas.
De 2015 em diante, com as gestões de Joaquim Levy (Dilma), Henrique Meirelles (Temer) e Paulo Guedes (Bolsonaro), a política econômica seguiu os cânones do ajuste fiscal até o limite da imprudência.
O ritmo de crescimento de uma economia, no pós-recessão, é maior que a média histórica. Isso porque a recessão cria uma enorme capacidade ociosa na economia. Qualquer estímulo de demanda tem reflexos rápidos na recontratação de trabalhadores, no revigoramento das cadeias produtivas. Por isso, a melhor maneira de avaliar os resultados de políticas públicas pós-recessão, é comparando-as com outros momentos de recessão na história.
A atual crise econômica brasileira não encontra paralelo na história do país. Depois de dois anos consecutivos, 2015 e 2016, de forte contração do PIB, e outros dois, 2017 e 2018, de baixo crescimento, a economia encontra-se praticamente estagnada e flertando com a volta da recessão neste ano de 2019.
Mesmo que se ignore o forte recuo acumulado do PIB no biênio 2015/16 (de -6,7%), ainda assim o crescimento de apenas 1,1% a.a. em 2018 (ritmo semelhante ao que será observado em 2017-19) colocou a economia brasileira apenas na 40ª posição em um ranking de 42 países, segundo levantamento realizado pela consultoria privada Austin Rating. Somente Itália (0,8%) e Japão (0,7%) tiveram taxas de crescimento inferiores à da economia brasileira em 2018. Essa performance sofrível, que em termos per capita representa literalmente uma estagnação, coloca o país na trajetória mais lenta de recuperação que se seguiu a uma crise (ao menos desde o final do século XIX).
Ou seja, decididamente, a fórmula do ajuste fiscal falhou.

Peça 4 – analisando os indicadores

Nas últimas semanas, a mídia não parou de falar em recuperação da economia, saudando entusiasmadamente pequenas reversões, inexpressivas perto das perdas dos últimos anos.
Vamos a um pequeno levantamento de setores da economia, mostrando a sua situação hoje em dia comparativamente à média de 2014.
Vamos a um pequeno levantamento do desempenho de setores econômicos, comparando com a média de 2014: Bens de Capital, Bens Intermediários, Bens de Consumo e Bens de Consumo Duráveis.
Nenhum deles chegou aos níveis pré-recessão.
Uma das tabelas do IBGE comparar 69 setores da indústria. Entre eles, 43 estão abaixo de 2014, contra apenas 26 acima.
Em um quadro mais amplo, de setores industriais, de 28 setores medidos, apenas um ficou acima da média de 2014.
No setor de auto veículos, por exemplo, no acumulado de 12 meses até novembro de 2019, em relação a novembro de 2014, houve queda de 14,15% na produção de autoveículos em geral, de 9,97% de automóveis, de 31,8% de comerciais leves, de 26,23% de caminhões e de 24,82% em ônibus. Recuperação, onde?

Peça 5 – a lógica dos templários

À luz desses resultados, uma discussão econômica competente trataria de analisar as razões do insucesso do tal ajuste fiscal, aceitar que a queda nos gastos públicos prolongou a crise. Seria uma belíssima maneira do debate se reconciliar com a lógica e a ideologia se subordinar à sua majestade, os fatos.
Não é isso o que ocorre.
Em seu artigo de hoje na Folha, Marcos Lisboa – principal expoente do discurso de mercado na mídia – insiste na mesma tese.
Diz ele:
 “Tudo indica que a notável queda da taxa de juros, decorrente do ajuste fiscal iniciado pelo governo Temer e aprofundado com a reforma da Previdência, resultará em uma boa retomada da economia em 2020”.
O mercado, que inicia o ano sempre errando por excesso de otimismo, estima um crescimento do PIB em 2,2% em 2020 – inexpressivo, perto das perdas dos últimos anos.
A  queda da taxa de juros se deveu à queda da inflação, fruto de uma recessão que produziu 12 milhões de desempregados. Não há a menor garantia de como se comportará a inflação com qualquer retomada da economia.
Esse tipo de combate à inflação, com tal dose de sacrifício imposta à economia, não é sustentável, é incompatível com o objetivo maior de qualquer política econômica, que é buscar o crescimento sustentável.
Mas por que falhou a receita fiscal? Segundo Lisboa:
Desde 2017, os analistas mais otimistas esperavam crescimento anual acima de 2,5%, mas foram seguidamente frustrados com taxas de apenas 1%. Desta vez, porém, os indicadores estão bem melhores.
Verdade que a recuperação tem sido desigual e o déficit das contas externas sugere que há problemas graves em muitos setores, que não conseguem se recuperar embora o câmbio esteja mais favorável.
Apesar disso, o ajuste fiscal insiste em desmoralizar os economistas que defendiam que a recuperação da economia passava pela expansão dos gastos públicos”.
Repare no argumento. Dizia-se que a recuperação da economia passava pela expansão dos gastos públicos. Não houve expansão dos gastos públicos e não houve recuperação da economia.
Agora há uma promessa, apenas uma promessa de um crescimento tímido no próximo ano. E Lisboa considera que a promessa do crescimento tímido desmoralizou os economistas que diziam que a economia não cresceria sem aumento nos gastos públicos – como efetivamente não cresceu.
Repete-se a mesma retórica, da lição de casa insuficiente, praticada de Marcílio a Palocci, passando por Malan e Meirelles, sempre o mesmo jogo-de-enganar-bobo. Mantem-se a economia amarrada com cortes desnecessários nos gastos públicos – com a palavra gastos sempre tendo conotação negativa. A economia não se recupera. Entra-se no próximo ano sustentando que a lição de casa foi insuficiente, mas agora vai.
O governo Lula foi ajudado pelo boom dos commodities. Mas a economia só começou a se recuperar quando abriu mão do fanatismo ignorante de Palocci e Meirelles.
O grande problema é a volta do pêndulo. Depois da recuperação da economia, no pós-crise de 2008, julgou-se que a maquininha de gastos produziria o crescimento contínuo, com o país nas mãos de Guido Mantega e Arno Agustin cometendo todos os pecados no extremo oposto.
O preço do subdesenvolvimento é, também, uma discussão econômica subdesenvolvida, que não está a altura de uma economia do nível da brasileira.

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