A corrupção que corrói por Natalia Viana
Duas semanas atrás publicamos o resultado de uma investigação transnacional liderada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativo (ICIJ) sobre Isabel dos Santos, a mulher mais rica da África. Seu pai, o ex-ditador José Eduardo dos Santos, ficou durante 37 anos no poder em Angola, país que acumula os títulos de segundo maior exportador de petróleo na África e, ao mesmo tempo, de líder mundial de mortalidade infantil. Para se ter uma ideia, 60% da população vive com menos 2 dólares por dia, enquanto a fortuna de Isabel, obtida durante o governo de seu pai, é estimada em US$ 2,3 bilhões.
A investigação juntou 120 jornalistas de 20 países. Nós descobrimos que a fortuna da africana – aplaudida de pé como uma empresária ‘self-made’ por executivos americanos e europeus em fóruns internacionais econômicos como o de Davos – não era nada mais que o fruto de décadas de roubos descarados do dinheiro obtido com petróleo (sob as bênçãos de petroleiras como Chevron e British Petroleum) e enviado para empresas offshore e empreendimentos em países como Portugal, Inglaterra, Holanda, Emirados Árabes e Mônaco – até chegar à Paraíba, no Brasil.
Para a Pública, é essencial seguir histórias de corrupção como essa. Se o parágrafo acima não causa asco, deixe-me descrever o que significa a corrupção em um país desigual como Angola. Luanda é uma das cidades mais desesperadoras em que estive – e olha que eu estive no Haiti meses depois do terremoto de 2010.
Literalmente lado a lado, você encontra pessoas vivendo nos escombros de um antigo bairro popular – tentando permanecer ali escondidas das autoridades que derrubaram as casas com gente dentro para abrir um pedaço de litoral a resorts de luxo – e prédios suntuosos, modernos, envidraçados e, invariavelmente, vazios. Porque a verdade é que os ricos de lá preferem gastar seu dinheiro em Portugal ou em Miami. Quem aproveita dos luxos em Luanda são os europeus, americanos e brasileiros – muitos brasileiros – que recebem contratos polpudos para trabalhos temporários no país, seja no ramo de petróleo, da construção ou da comunicação.
Em Angola, vimos enormes hidrelétricas serem construídas pela Odebrecht, mas nenhuma delas funcionava e a capital continuava dependente de geradores a diesel. Estradas eram inauguradas e em poucos anos estavam deterioradas porque os empreiteiros desviavam os gastos com areia e cimento para pagar propina ao governo; enormes prédios e fábricas eram montados e ficavam às moscas, porque o que importava era construir a obra para desviar o dinheiro. Foi assim que entendi o quanto a corrupção em Angola era descarada e cruel, porque garantia que um grupo extremamente pequeno de líderes políticos agissem em completo descaso com a população, como se o país fosse seu gigantesco playground.
Enquanto nos bairros populares o lixo se acumula nas ruas sem calçada ou pavimentação, havia ao lado placas que louvavam o ditador pelo seu esforço pela paz – Angola viveu em guerra civil por quase 30 anos – e exortavam as pessoas a “viverem em paz” e não aborrecerem o governo. Jovens que questionavam o autoritarismo do pai de Isabel dos Santos ficaram presos durante meses por participar de um grupo de estudos de um livro sobre resistência pacífica. Foram acusados de tramar um golpe de Estado. Um desses jovens, quando o entrevistamos em um pequeno centro de cultura, parecia morto por dentro. Havia sido torturado na cadeia, e o regime o havia quebrado. Ele falava lentamente, mas seus olhos não mostravam nenhuma expressão, estavam sem vida. Outra ativista nos contou como policiais a espancaram durante horas, com método, dos pés à cabeça, deixando-a roxa por todas as partes do corpo e dizendo que depois da surra ela nunca mais conseguiria ter filhos. “Meu olhar para esses senhores não é como antigamente: eu não tinha provado de tanta maldade”, ela disse.
E, no entanto, quando se fala em corrupção em Angola, o que mais me vem à cabeça não é nada disso, mas a nossa visita ao hotel Epic Sana, um dos mais chiques da capital, onde homens de negócio se encontram para saborear champagne francesa e medalhões de carne importada, onde membros do governo marcam suas reuniões importantes e em cujo porão acontece uma das baladas mais quentes de Luanda. Lá, filhos de membros do governo e estrangeiros dançam ao som de eletrônico até de madrugada. Eu e a documentarista Eliza Capai queríamos conhecer o famoso hotel, e logo de cara demos com um gerente, que era brasileiro e ficou tão feliz em nos ver que decidiu nos levar a conhecer todos os andares do imponente prédio e sua vista da cidade.
Além das suítes luxuosas, dos vários cafés e restaurantes, das lojas de grife que se encontra em Nova York e Dubai, o que nos chamou a atenção foi uma cena no terraço aberto, onde uma piscina com fundo infinito é rodeada por mesas brancas. Enquanto conversávamos com o gerente brasileiro, um grupo de meninas, bem vestidas, com roupas coladas e colares e brincos dourados, fazia uma tremenda algazarra, comendo hambúrgueres e tomando milk-shake.
O brasileiro nos pediu desculpas pelo alvoroço: “Não reparem na bagunça. Elas estão aqui há algumas horas e a conta já está em quase mil dólares”, disse ele. E diante, do nosso olhar de incompreensão, continuou: “São meninas que vêm dos bairros pobres para encontrar com o ministro de turismo, que depois as leva para uma das suítes que disponibilizamos para membros do governo. Ele vem quase toda semana”. Enquanto nos levava à cobertura do Hotel, contou que os salões privê eram frequentemente ocupados – como cortesia do hotel – por ministros do governo para festas com jovens como aquelas.
Até hoje é o rosto dessas meninas me vem à cabeça quando eu penso no quanto a corrupção e a desigualdade podem corroer uma sociedade e torná-la absolutamente doente. Já se passaram quase cinco anos, mas ainda me lembro do riso eufórico delas – que provavelmente vinham dos mesmos barracos que um dia serão destruídos quando algum autocrata decidir abrir espaço pra mais resorts de luxo – enquanto esperavam para que um Ministro de Estado se servisse delas ali, tão despreocupadamente, na frente de todos os homens de negócio estrangeiros.
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