Promotoria acusa Bolsonaro de “devastação constitucional”
Foto: Isan Nóbrega / PR
“Mesmo em situações de exceção constitucional, não se admite a restrição a direitos fundamentais relacionados com o acesso ao Poder Judiciário, a independência dos magistrados, a autonomia do Ministério Público e da Defensoria Pública, a preterição do juiz natural e, muito menos, a mitigação da separação de poderes”. É o que defende a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão em nota técnica encaminhada ao Congresso Nacional neste domingo, 22, para embasar a análise do projeto de lei nº 791/2020, de autoria do governo Bolsonaro, que pretende criar um Comitê ‘para prevenir ou terminar litígios, inclusive os judiciais, relacionados ao enfrentamento do novo coronavírus’.
“O cenário desse PL é de devastação constitucional, impossível inclusive em sede de emenda à Constituição e – em democracias sólidas – sequer em processo constituinte originário”, diz o órgão do Ministério Público Federal em parecer enviado aos parlamentares.
Segundo a Procuradoria, o PL institui uma série de medidas que afetam as competências do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos Conselhos Nacionais do Judiciário e do Ministério Público.
Com o Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle que seria criado, o processamento de medidas judiciais ou extrajudiciais por parte dos órgãos federais de justiça e controle terá como requisito a prévia tentativa de autocomposição perante as ‘comissões de autocomposição de litígios’.
Tais comissões, por sua vez, seriam compostas por representantes dos órgãos envolvidos no litígio, mediante designação pelos membros do Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle, com poderes plenos para firmar acordos, diz o texto enviado ao Congresso pelo governo federal.
“Em outras palavras, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União ficariam impedidos de atuar – extrajudicialmente ou judicialmente – enquanto não esgotada a tentativa de autocomposição perante as referidas comissões. Tal regra se aplica, inclusive, às recomendações emitidas pelo Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União”, argumentam o procuradores.
Segundo a Procuradoria, ainda que a Constituição não impede que a lei institua comitês que promovam interlocuções interinstitucionais, ‘é flagrantemente inconstitucional atribuir a esses comitês funções típicas e indelegáveis de qualquer um dos poderes ou instituições do Estado’.
“Impedir o Ministério Público e a Defensoria Pública de adotar providências judiciais ou extrajudiciais, até mesmo a edição de recomendação, sem o prévio esgotamento das atividades de autocomposição perante o Comitê ou as comissões, limita de modo insuperável a defesa urgente de matérias de grande repercussão social e que se inserem exatamente no contexto do novo coronavírus, como são os casos de reintegração de posse e despejos coletivos, o Programa Bolsa Família, e o atendimento a índios em situação de isolamento voluntário”, dizem os procuradores.
De acordo com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, a inconstitucionalidade da proposta decorre da violação de uma série de princípios e regras, entre eles os que tratam da ‘separação de Poderes, na medida em que representantes de todos eles estão juntos, confusamente, para tarefas comuns, com prejuízo das competências específicas de cada qual’.
O texto cita ainda a violação da ‘ inafastabilidade de jurisdição, uma vez que torna a composição extrajudicial quase que imperativa’ e do ‘ juiz natural e devido processo legal, pois atribui a um órgão administrativo, de composição mista, a função de resolver um conflito de interesses sem observância do processo e procedimento próprios’.
Os procuradores também indicam que o PL afronta a ‘independência e autonomia funcional dos membros do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, que estarão completamente imobilizados pelo novo órgão e pela configuração imprimida ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público, que passam a controlar a atividade-fim’, além da conformação constitucional do CNJ e do CNMP e da proibição de existência de juízo ou tribunal de exceção.
“Com toda a certeza, o enfrentamento da pandemia do coronavírus demanda de todos os Poderes do Estado e demais instituições estatais um enorme esforço de atuação responsável e cooperativa. Entretanto, o marco para o Estado desincumbir-se do ônus de dar respostas aos riscos de graves danos à saúde pública da população residente no país é o pacto democrático e republicano inscrito na Constituição. Em momentos de crise, como a atual crise sanitária, mais do que nunca se deve buscar a segurança das normas constitucionais, seus princípios e regras. De resto, é momento de especial cultivo aos valores democráticos da transparência, da informação e da responsabilidade dos agentes estatais”, diz a nota técnica.
A Procuradoria também frisa outra ‘grave previsão’ do PL, a instituição de ‘um procedimento preventivo de validação de contratações relacionadas ao enfrentamento da emergência de saúde pública do Covid-19’.
Segundo os procuradores, a norma ‘subverte’ os procedimentos de controles internos e externos da Administração Pública, além de ‘criar um mecanismo que remete às cúpulas dos próprios órgãos de controle, sem prévio processo administrativo ou judicial específico ou mínimo observância das regras do devido processo legal judicial ou administrativo, a função de chancelar e homologar contratações de qualquer espécie, inclusive compras de bens ou serviços’.
“Com um esdrúxulo procedimento, cuja iniciativa é do Advogado-Geral da União, a Controladoria-Geral da União, o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal estarão comprometidos e legitimando às cegas um processo de contratação cuja responsabilidade é exclusivamente do poder Executivo”.
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