A Revolução Cubana e a ruptura com o padrão histórico de dependência latino-americano
18/06/2020 12:15
Nestes dias de avanço da crise sanitária no mundo e no Brasil, quando atingimos mais de oito milhões de pessoas contaminadas pelo Covid-19 e mais de 400 mil mortes no mundo e no Brasil mais de 45 mil mortes decorrentes da pandemia. Enquanto isso na “mayor das Antillas” a doença não somente foi vencida como, principalmente, os médicos cubanos atuam efetivamente em vários países não somente prestando assistência médica, mas organizando, também, em países como Itália e parte da América Latina e África, o enfrentamento à epidemia e salvando vidas[1].
Retornamos ao debate da Revolução Cubana e buscamos aqui tratar a relação da ilha caribenha e as condições históricas da dependência, a fim de mostrar como Cuba superou as condições de dependência e subdesenvolvimento que permanecem no restante da América Latina.
Há aproximadamente 60 anos, em janeiro de 1959, um movimento formado em grande parte por jovens revolucionários cubanos ensejavam um dos maiores feitos históricos na América Latina. A libertação de Cuba do julgo opressor norte-americano foi um feito comemorado em todo planeta, seja pelo inusitado de, em pleno “quintal” da maior potência imperialista forjada pelo capitalismo do século XX, se estabelecer um projeto que se opõe ao colonialismo; seja, por conta de que a experiência pós-revolucionária que se construiu se mostrou autônoma a qualquer outro interesse internacional, ensejando uma perspectiva libertária pouco vista em outros episódios, particularmente depois das grandes experiências revolucionárias do século XX (russa e chinesa).
Em uma época de contrarrevolução em grande parte da América Latina, especialmente num momento em que o retrocesso histórico se impõe como uma sombra irracional sobre o Brasil, retornar criticamente a experiência revolucionária cubana nos parece um formidável convite a se discutir o futuro do continente. Porém, a experiência cubana se torna mais formidável para além da sua origem e da rebeldia das suas direções, torna-se um caso de estudo peculiar ao suportar um ignóbil bloqueio continental que já teria quebrado qualquer outra nação e já dura mais de 60 anos.
Aspecto importante a ser visualizado refere-se às condições de ruptura das formações periféricas em relação aos centros capitalistas, a chamada condição de dependência. Como nos fez lembrar o escritor uruguaio Eduardo Galeano à “causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa nascer de novo, será preciso derrubar seus donos, país por país”[2]. A Revolução Cubana que após 60 anos mantém seu poder atrativo sobre o imaginário social e histórico latino-americano, se reverteu e se reverte de importância justamente por ser um marco que lembra e reacende periodicamente essa possibilidade como uma condição histórica.
Na história das últimas décadas Cuba representou sobretudo resistência, persistência e inventividade histórica, sendo que os aspectos de construção de um projeto nacional, com relevância nos fatores de soberania denotados anteriormente nos parece foram centrais na continuidade do processo revolucionário. A capacidade de manutenção de um projeto nacional definido pela autonomia e construção de uma perspectiva social em oposição ao capitalismo e ao próprio imperialismo estadunidense, tornou a Revolução Cubana um marco para análise de sociedades pós-revolucionárias, seja pela sua permanência, seja pelas condições adversas a que foi submetido, pela proximidade do Império, principalmente após a crise e o fim da antiga URSS, com a imposição da nova dinâmica neoliberal capitalista mundial nas últimas décadas.
Vale notar que os revolucionários da “Sierra Maestra” não eram comunistas por mais que simpáticos ao marxismo, sendo que o desenvolvimento do processo revolucionário cubano estabeleceu a aproximação na América Latina da luta anticolonial, representada no poder de mando imperial dos EUA e a possibilidade de construção de uma ruptura socialista. A revolução cubana evoluiu como “opção internacional de apoio à defesa da soberania e da autodeterminação de Cuba, vis-à-vis das pressões postas pelos EUA”[3].
A Revolução Cubana no seu nascedouro e no seu processo de afirmação e continuidade influenciou e foi influenciada pelo pensamento econômico e sociológico latino-americano, tanto estruturalista quanto dependentista marxista. Uma das principais consequências da Revolução Cubana na área da América latina foi contribuir para o florescimento de uma nova ciência social marxista[4]. A Teoria Radical do Desenvolvimento na América Latina, que a Teoria Marxista da Dependência formula, se nutriu plenamente das contradições e avanços sociais, econômicos e culturais estabelecidos pelo experimento cubano.
Cuba foi palco de experimentos importantes do estruturalismo latino-americano. A Comissão Econômica para América Latina da ONU (CEPAL) teve especial influencia nos primeiros momentos da revolução[5]. Vale destacar que a CEPAL e muito particularmente seus principais formuladores Raul Prebisch e Celso Furtado, estabeleceram uma base critica própria em termos do funcionamento do capitalismo mundial, a condição centro-periferia amalgamou o pensamento econômico radical latino-americano desde então.
A expansão do capital em direção à periferia suscitou duas ordens de problemas para as pretensões de crescimento dessas economias: a orientação do processo de acumulação e a forma de apropriação dos resultados do crescimento econômico. Essas dificuldades permanecem até hoje nos países periféricos com maior ou menor ímpeto a depender das posições econômicas assumidas para superá-las[6].
A forma como Cuba se desenvolveu no período anterior a Revolução é muito semelhante ao que se deu em países como Brasil e Argentina. Inclusive pelo peso que na época a economia cubana tinha em relação aos demais países latino-americanos, sendo que sua economia em 1950 era a quarta maior do continente, somente superada por Brasil, Argentina e México. O estabelecimento do departamento de produção de maquinários nunca se deu na ilha, sendo que a exemplo do restante do continente o processo de substituição de importações ficou restrito aos bens de consumo, mantida a condição de produção de açúcar e seu fornecimento ao mercado estadunidense.
Cuba esteve amarrada as primeiras formas históricas de dependência, valendo notar que as condições de subordinação se deram tanto a Espanha e Inglaterra, como principalmente a dependência aos EUA. A primeira forma de subordinação se fez até quase fins do século XIX sob a tutela do regime colonial espanhol e tutela econômica inglesa. Como nos relatou Eduardo Galeano (2010), já em 1762 os ingleses se apossam economicamente da ilha e introduzem uma grande quantidade de trabalhadores escravos, “e desde então a economia cubana for modelada pela demanda estrangeira de açúcar”.
Furtado (2007) registra que Cuba, a exemplo de Porto Rico, “permaneceu sob tutela espanhola até os albores do século XX, prolongando-se o período colonial quase um século mais que nas outras áreas latino-americanas”. A mayor de las Antillas foi a última colônia da América Latina a libertar-se da Espanha, em 1898, processo longo que durou 30 anos e teve em José Martí, principal intelectual cubano e um dos mais importantes do continente, seu principal expoente, capaz de mobilizar um amplo movimento de insurreição e independência.
O regime escravocrata-colonial de produção açucareira cubano era semelhante ao que se desenvolveu no nordeste brasileiro (Furtado, 2000), seja pela forma produtiva, baseada na escravidão negra, seja pela condição de ser um enclave exportador. Assim, até mesmo o charque, que era um produto convencional na ilha, a partir do final do século XVIII (1792) passou a ser importado, sendo que a “plantação extensiva ia reduzindo a fertilidade dos solos (...) e cada engenho exigia cada vez mais terras”.
O regime extensivo açucareiro absorvia todo trabalho e toda terra, sugando a riqueza da ilha e transformando tudo naquele “ouro branco” exportável, deixando um rastro de infertilidade do solo e de pobreza para sua população, mesmo que constituindo, ao seu lado, uma “sacarocracia” que “deu um polimento em sua enganosa fortuna enquanto sacramentava a dependência de Cuba” (GALEANO 2010).
Essa dependência colonial, centrada na produção e exportação de um único produto e estabelecida com base na escravidão, foi cosmeticamente alterada ao longo do século XIX, com uma crescente influência e controle do capital estadunidense. Como as demais economias dependentes, a forma econômica “hacia afuera” da formação social e econômica cubana pré-revolução, baseada na monocultura açucareira existia conforme duas condições centrais: o ritmo cíclico da economia mundial e sua capacidade de aquisição do açúcar e a capacidade de expansão produtiva pela extensão de terras agriculturáveis, isso por conta de que a mão-de-obra nunca foi um problema nessas economias primário-exportadoras.
Uma característica historicamente importante do desenvolvimento econômico da América Latina foi a interação entre a estrutura econômica externa e a interna. De outro modo, a interdependência e os circuitos de subordinação das economias latino-americanas à economia mundo, especialmente seu centro hegemônico estadunidense, constitui marca indelével de sua dinâmica[7].
No caso de Cuba ainda havia um terceiro problema, sua umbilical subordinação ao mercado estadunidense e ao próprio controle do sistema produtivo açucareiro pelos EUA. Assim, nas vésperas da revolução “Cuba vendia quase todo seu açúcar para os Estados Unidos” e “treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47% da área açucareira total” (GALEANO 2010).
A dependência de Cuba em relação aos EUA foi com base na sua condição agrário-exportadora, sendo que os circuitos de produção industrial, centrado nos engenhos de açúcar e no controle financeiro por bancos estadunidenses desenvolveram uma dinâmica em que a lógica da especialização produtiva se tornou a base das relações entre os dois países.
O capitalismo opera no sentido de concentrar a renda nos países industrializados mediante a perda nas trocas internacionais desfavorável aos países periféricos produtores de bens primários. Assim, segundo Celso Furtado (2007), Cuba tinha aptidão para produzir um só produto, e os Estados Unidos, centenas ou milhares. O Tratado Comercial de Reciprocidade, de 1903, que reduziu as tarifas americanas para o açúcar cubano, assegurou uma situação privilegiada para os produtos dos Estados Unidos no mercado da ilha.
Há uma forte interação entre as condições macroeconômicas mantidas pelo modelo primário-exportador e sua dinâmica de dependência aos importadores internacionais. O funcionamento econômico deste tipo de forma de reprodução se dá pela subordinação aos ciclos de elevação e decaimento dos preços internacionais das commodities, assim face às flutuações da demanda externa, os produtores de açúcar mantinham em reserva grandes quantidades de terra, o que produzia dois efeitos danosos para sociedade como um todo: a população não tinha acesso às terras para plantio de outras culturas, o que impunha a importação inclusive de bens agrícolas básicos e, ao mesmo tempo, impunha elevado desocupação e incapacidade de geração de renda básica para maior parte da população. Podemos afirmar que há uma relação direta entre essas formas de dependência e a perda de soberania nos aspectos de “condições de vida” e “gestão geopolítica do território”.
A ruptura revolucionária que ocorre em 1959 encontra Cuba sob a condição de dependência econômica e social semelhante ao estabelecido no restante da América Latina. Como se constitui o processo de “revolução permanente” em Cuba, algo que vai além da questão da própria gestão do Estado, se relacionando aos aspectos de interação social e de uma forma muito peculiar de “compartilhamento” econômico existente na ilha.
Assim, a lógica dos Estados latino-americanos de uma soberania restringida, isso por conta de que a presença da força de atração imperialista dos EUA limita a capacidade de ação e autonomia geopolítica, financeira e tecnológica de nossas nações, é rompida em Cuba. Convém notar que a revolução cubana tem como veio condutor justamente a luta nacional por independência e a busca pelos estabelecimentos de certa capacidade de soberania nacional, tendo os aspectos geopolíticos e de ascensão das condições de vida de sua população como eixos centrais.
Assim, a soberania considerando os quatro aspectos fundamentais (tecnologia, financeira, geopolítica e de qualidade de vida da população) surge como o centro da disputa revolucionária, o que somente se transformará em disputa por modelo de reprodução econômica socialista no momento seguinte, quando ficaram evidentes aos insurrectos que a tutela estadunidense e a manutenção do subdesenvolvimento não eram questões autônomas e sim conjugadas. O que parece ser uma lição fundamental para toda a América Latina.
O debate em relação à soberania nacional, considerando sua continuidade e desenvolvimento, principalmente na nova conjuntura colocada de acirramento do poder geopolítico estadunidense, deve ser visto a partir do grau de amadurecimento cultural da sociedade cubana, ou seja, as inúmeras organizações da sociedade e seus níveis de intervenção e auto-organização que possibilitou o desenvolvimento naquela sociedade de um padrão que distanciou a ilha das condições de soberania restringida ainda hoje colocada para o resto da América Latina.
Vale ressaltar ainda dois pontos que consideramos centrais na compreensão do destino manifesto cubano: apesar do apelo ideológico do vizinho continental e sua opulência descarada, a sociedade da ilha suportou e desenvolveu uma contracultura, uma visão em oposição ao comercialismo e a cultura do “tudo se compra” do Mefistófeles San. Porém, também, estabeleceu um modo de viver fundado em certo tipo de associativismo, preservação ambiental e de qualidade de vida da sua população que são fatores tão necessários de serem pensados nesta virada irracional do capitalismo mundial, principalmente após a grave crise sanitária do Covid-19.
Cuba hoje detém o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da América Latina, muito a frente da maior parte dos grandes países continentais (México, Brasil, Argentina), sendo que segundo o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o país caribenho ocupa a 67° posição mundial entre 188 países, com esperança de vida ao nascer de 79 anos e uma escolarização média da população maior de 25 anos de 11,5 anos, que coloca a ilha na 30ª colocação neste quesito entre os 188 países avaliados pela ONU (Organização das Nações Unidas).
As condições de vida na América Latina expressam indicadores de enorme precariedade e de níveis de desigualdade e pobreza que contrastam fortemente com os indicadores de Cuba. Assim, segundo o Panorama Social da América Latina e Caribe 2019 da Comissão Econômica e Social para a América Latina e Caribe (CEPAL), estima-se que a população vivendo em condições de pobreza na América Latina cresceu de 164 milhões em 2014 para 191 milhões em 2019, sendo que deste total 72 milhões de pessoas vivem em situação de extrema pobreza (menos de 1 dólar estadunidense de paridade de poder compra de renda por dia). Os indicadores de pobreza são, por sua vez, contrapostos aos indicadores de concentração da renda e da riqueza na região, como pode ser visto nos dados do último relatório da Cepal[8].
A manutenção do processo revolucionário possibilitou que independente do fim do socialismo real soviético e frente a deplorável condição do poder imperial estadunidense e do seu bloqueio continental que já dura mais de 60 anos, Cuba mantivesse uma capacidade soberana não restringida e de alcance humanista tanto para seu povo como também para outros povos, como demonstram as ações dos médicos cubanos na recente epidemia do Covid-19.
José Raimundo Trindade é Professor do Programa de Pós-graduação em Economia da UFPA
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[1] Cuba mantém equipes de auxilio médico em mais de 60 países, conferir: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-23/cuba-envia-brigadas-medicas-contra-o-coronavirus-a-italia-e-america-latina.html, último acesso: 17/06/2020.
[2] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América latina. Poro Alegre/RS: L&PM, 2010 [1970].
[3] MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
[4] SEGRERA, Francisco López. A Revolução Cubana e a Teoria da Dependência: Ruy Mauro Marini como fundador. In: MARTINS, Carlos Eduardo & VALENCIA, Adrián Sotelo (organizadores). A América latina e os desafios da globalização: ensaios dedicados a Ruy Mauro Marini. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. (p. 333-360).
[5] PERICÁS, Luiz Bernardo. Che Guevara e o debate econômico em Cuba. São Paulo: Boitempo, 2018.
[6] FURTADO, Celso. A economia latino-americana: formação histórica e problemas contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1969] (4° Edição).
[7] DOS SANTOS, Theotônio. Lições de Nossa História. Revista Sociedade Brasileira de Economia Política, São Paulo, nº 30, p. 19-32, outubro 2011.
[8] No Brasil os “1% mais ricos” concentram 27,5% do total da renda e da riqueza nacionais, no Chile 22,6%, na Colômbia 20,5% e no Uruguai 14%. Conferir: CEPAL, 2019 (https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/45090-panorama-social-america-latina-2019-resumo-executivo), último acesso: 25/05/2020.
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