Memória
Florestan Fernades, 100 anos
Comentário sobre a trajetória política e a obra acadêmica do sociólogo, cujo centenário se comemora neste mês
Como conciliar rigor acadêmico e militância política é uma questão que tem atormentado, senão mesmo paralisado, muitos intelectuais do nosso tempo. São poucos os que, como Florestan Fernandes, conseguiram satisfazer as demandas, por vezes contraditórias, desses dois tipos de envolvimento.
A maioria acabou por sucumbir ao desafio, ou abandonou o trabalho intelectual para dedicar-se à política, ou sacrificou a militância às exigências da academia. Esse dilema é peculiar ao nosso tempo, quando o intelectual se profissionalizou e suas atividades como professor, pesquisador e escritor tornaram-se cada vez mais absorventes, em detrimento do engajamento político. Por isso, muitos intelectuais deixaram de crer na cultura engajada e o próprio termo passou a ser suspeito. Para isso, também contribuiu a polarização causada pela Guerra Fria, que levou a enfrentamentos e perseguições, reduzindo o espaço de liberdade dentro da universidade.
No Brasil dos anos 60, a universidade pagou seu preço. Vários intelectuais de renome foram afastados de seus cargos com enorme dano para o ensino e a pesquisa -entre eles Florestan Fernandes, que ocupava então uma cátedra de sociologia da Universidade de São Paulo. Anos depois, com a anistia, muitos voltaram à universidade. Outros preferiram continuar seu trabalho à margem dela. Essa foi a escolha de Florestan Fernandes.
Terminada a repressão militar, uma outra forma de repressão mais insidiosa se instalou. A competição acadêmica continuou o trabalho de repressão que o Estado iniciara. Os trabalhos de Florestan foram alvo de críticas. Florestan sentiu-se isolado: “Cheguei a pensar que não era reprimido pela ditadura, mas por meus antigos companheiros”, confessou. Mas continuou, com o mesmo vigor, a publicar seus livros, mantendo-se sempre fiel às suas ideias e à militância política. Embora tenha sido sempre um espírito livre, avesso a disciplinas partidárias e cioso de sua independência, ele aceitou em 1986 o convite do PT para concorrer a deputado federal. Foi eleito por uma ampla margem de votos.
A prática cultural engajada que caracterizava os anos 60 –e que subsiste com grandes dificuldades nas regiões onde a profissionalização do intelectual foi tardia ou incompleta– tende a desaparecer entre nós. Cada vez mais encerrado na torre de marfim da academia, consumido pela burocratização, às voltas com relatórios e pareceres, à caça de bolsas e convites para participar de encontros internacionais, obrigado a seguir modas de momento, o intelectual dos nossos dias raramente se enquadra nos modelos gramscianos.
É preciso lembrar, no entanto, que os intelectuais que conseguiram resolver de maneira satisfatória o dilema trabalho intelectual e militância foram os que exerceram maior impacto na cultura. Esse é o caso de Florestan Fernandes, professor, autor e político, crítico implacável das elites brasileiras, incansável porta-voz dos interesses do povo. Florestan é, sob todos os pontos de vista, um marco na história da cultura brasileira. Um exemplo para as novas gerações.
Florestan entrou para a universidade no momento em que esta, com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, iniciava um processo de democratização, visando a criar uma nova elite intelectual. De família modesta, trabalhando desde criança –como engraxate, ajudante de alfaiate, garçom– para ajudar no seu sustento, nunca esqueceu de suas origens. Estas, em parte, explicam suas preferências metodológicas, sua temática, seu programa e sua vocação socialista. Não foi por acaso que ele foi encontrar em intelectuais progressistas – C. Wright Mills, ThorsteinVeblen, Max Weber, Karl Mannheim e Karl Marx– o material com o qual elaborou uma síntese original.
Suas opções teóricas encontraram apoio no momento político do pós-guerra, quando vários setores da população se mobilizaram nas lutas pelo desenvolvimento e pela democracia que caracterizaram a era Vargas e o período JK e culminaram no momento reformista do governo João Goulart.
Depois da Revolução Cubana em 1959, o clima na América Latina era de otimismo, reforma e mobilização popular. No Chile, Eduardo Frei e depois Salvador Allende pareciam inaugurar uma nova era. Na Europa, intelectuais como Sartre faziam da militância uma profissão de fé. Nada mais natural que no Brasil muitos intelectuais seguissem essa trajetória. Os sonhos e as ilusões desse período, no entanto, se dissiparam diante da realidade dos golpes militares e da repressão. Hoje vivemos outros tempos e tudo isso pode parecer remoto. Mas a história desse período é essencial para compreender a vida e a obra de Florestan Fernandes.
Cinquenta anos se passaram desde o momento em que ele iniciou sua atividade intelectual na USP. Nesse período, ele publicou mais de 35 livros e numerosos artigos. Em todos eles revela uma profunda preocupação com a criação de uma sociedade mais humana, isto é, mais democrática e mais livre. A sociologia foi sempre para Florestan um instrumento para a consecução desse ideal. Por isso se preocupou tanto em aperfeiçoar os seus métodos.
Podem-se distinguir alguns temas fundamentais na sua obra. A luta contra o racismo, que se evidencia em “Integração do Negro na Sociedade de Classes” e “O Negro no Mundo dos Brancos” (1970); a análise da formação da sociedade brasileira em “A Revolução Burguesa no Brasil” (1975); a avaliação crítica da sociologia em “Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica” (1963), “Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada” (1960), “A Sociologia numa Era de Mudança Social” (1963), “Elementos de Sociologia Teórica” (1970) e “A Sociologia no Brasil” (1977); a preocupação com a educação em “A Educação e Sociedade no Brasil” (1966) e “Universidade Brasileira: Reforma ou Revolução?” (1975); a crítica ao governo militar e à Nova República nos ensaios de “Circuito Fechado” (1976), “A Ditadura em Questão” (1982), “A Nova República” (1986); finalmente, seu interesse pela América Latina levou-o a publicar “Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina” (1973) e “Da Guerrilha ao Socialismo –A Revolução Cubana” (1979), e “Poder e Contra-Poder na América Latina” (1981).
Tão importante quanto suas pesquisas foi seu trabalho de professor. Conhecido internacionalmente como o responsável pela criação de um grupo de pesquisadores notáveis, que vieram a reformular a sociologia no Brasil, conferindo-lhe um rigor que jamais tivera. Florestan teve, entre seus alunos, intelectuais do porte de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Luis Pereira, Eunice Durham e muitos outros.
Recentemente, em 1993, numa entrevista à Folha, Florestan reafirmava sua fé no socialismo, que ele encara como um processo constantemente em transformação, e na democracia, que ele vê como uma conquista das classes populares e não como dádiva das elites ou do Estado. Pode-se concordar ou não com ele, mas é impossível deixar de admirar sua coragem, seu espírito incansável, a consistência de suas posições e, principalmente, o admirável equilíbrio entre militância política e rigor científico que conseguiu realizar.
Emília Viotti da Costa (1928-2017) foi professora Emérita da USP, autora de diversos livros de referência como Da Senzala à Colônia.
*Publicado originalmente em 'A Terra é Redonda'
Nenhum comentário:
Postar um comentário