Uma menina de dez anos abortar não deveria ser motivo de polêmica
O que você fazia aos 10 anos de idade? Talvez você já estivesse na quarta série e gostasse de brincar de polícia e ladrão no recreio. Ou preferisse colorir cadernos, fazer pinturas a dedo, até arriscar algumas leituras no tempo livre. Brincar de bola, de pega-pega, aprender coisas novas sobre o mundo. Sim, com dez anos, você era criança e como tal fazia coisas de crianças. Com certeza, ter um filho não era uma prioridade muito menos algo que permeasse a sua mente.
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No último final de semana, o país precisou lidar com uma notícia indigesta. Uma criança de 10 anos engravidou, fruto do abuso sexual causado pelo próprio tio, no Espírito Santo. É uma história de terror que não terminou por aí. O caso foi à justiça e a menina, que está sob tutela do Estado, recebeu a autorização da Vara da Infância e Juventude de São Mateus para interromper a gestação.
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As reações foram, no mínimo, impressionantes. Um grupo que "barrou" a entrada dos médicos no hospital designado para o procedimento e gritou que que a menina era “assassina" ganhou palanque - a informação do local, aliás, era sigilosa, mas foi divulgada de forma absolutamente antiética, contendo inclusive o nome da criança, por uma ativista pró-presidente Jair Bolsonaro.
Na ocasião, médicos foram chamados de assassinos também. O grupo, que se dizia religioso e que seguia as leis de Deus, tentou, inclusive, invadir o hospital. A vítima, uma criança de dez anos que foi sexualmente abusada pelo tio, era a causa de tanta discórdia. O mesmo grupo, no entanto, parecia mais preocupado com o destino de uma gravidez criminosa do que com o abusador em si, praticamente esquecido durante os protestos.
No Brasil, a gravidez infantil, infelizmente, ainda é uma realidade muito presente. Segundo dados de 2015 publicados há 3 anos pelo Ministério da Saúde, o país registrou cerca de 574 mil crianças nascidas de mães com idade entre 10 e 19 anos. No mundo inteiro, estudos informam que uma em cada cinco mulheres será mãe antes de terminar a adolescência.
A taxa de natalidade para meninas entre 15 e 19 anos foi de 71 em cada mil, não muito longe dos números registrados pelo Afeganistão, um país muçulmano em que o casamento de crianças ainda é comum e permitido por lei - lá, a mesma taxa é de 90 para cada um mil.
No caso do Brasil, a causa desses números são muitas. Primeiro, a falta da educação da população - sem informação de qualidade, tanto sobre sexualidade e prevenção de gravidez e doenças, quanto sobre abuso sexual e estupro, leva às alturas os números relacionados a esses assuntos por aqui. Em segundo, por toda questão sócio-econômica do país, que muitas vezes força famílias mais pobres a tirarem os filhos da escola para ajudar em casa ainda muito novos (são mais de 2 milhões de crianças e adolescentes fora da sala de aula, segundo dados de 2017) e que se tornam crianças precoces. Isso, sem falar do sistema de pensamento machista.
Sim, o machismo. Essa forma de pensar coloca mulheres em situações como a da menina que deu o abre a este texto. Já vulnerável por ser menor de idade - e, como tal, deveria ser protegida pelo Estado acima de tudo -, ela é objetificada, abusada e exposta a um trauma ainda maior do que o que já teve.
O que você fazia aos dez anos de idade? Será que uma criança como ela tem estrutura para criar um filho? Será que ela quer esse filho? E se não quiser, quem tem o direito de julgá-la? E o "pai"? Esse tio quer esse filho? Ele vai ajudar essa criança na criação de outra criança? Vai apoiá-la? Vai tratá-la segundo os valores da família de bem? Aliás, o que é ser uma pessoa de bem? E por que a revolta pública está mais preocupada com a interrupção de uma gravidez em uma criança do que com um adulto que abusou sexualmente de um vulnerável? Que valores são esses? Será que eles não andam um pouco invertidos?
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