segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Uma menina de dez anos abortar não deveria ser motivo de polêmica

 Comportamento

Uma menina de dez anos abortar não deveria ser motivo de polêmica




Será mesmo que precisamos discutir se uma criança vítima de violência sexual têm o direito de abortar? (Foto: Getty Creative)

O que você fazia aos 10 anos de idade? Talvez você já estivesse na quarta série e gostasse de brincar de polícia e ladrão no recreio. Ou preferisse colorir cadernos, fazer pinturas a dedo, até arriscar algumas leituras no tempo livre. Brincar de bola, de pega-pega, aprender coisas novas sobre o mundo. Sim, com dez anos, você era criança e como tal fazia coisas de crianças. Com certeza, ter um filho não era uma prioridade muito menos algo que permeasse a sua mente. 

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No último final de semana, o país precisou lidar com uma notícia indigesta. Uma criança de 10 anos engravidou, fruto do abuso sexual causado pelo próprio tio, no Espírito Santo. É uma história de terror que não terminou por aí. O caso foi à justiça e a menina, que está sob tutela do Estado, recebeu a autorização da Vara da Infância e Juventude de São Mateus para interromper a gestação

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As reações foram, no mínimo, impressionantes. Um grupo que "barrou" a entrada dos médicos no hospital designado para o procedimento e gritou que que a menina era “assassina" ganhou palanque - a informação do local, aliás, era sigilosa, mas foi divulgada de forma absolutamente antiética, contendo inclusive o nome da criança, por uma ativista pró-presidente Jair Bolsonaro.

Na ocasião, médicos foram chamados de assassinos também. O grupo, que se dizia religioso e que seguia as leis de Deus, tentou, inclusive, invadir o hospital. A vítima, uma criança de dez anos que foi sexualmente abusada pelo tio, era a causa de tanta discórdia. O mesmo grupo, no entanto, parecia mais preocupado com o destino de uma gravidez criminosa do que com o abusador em si, praticamente esquecido durante os protestos. 

No Brasil, a gravidez infantil, infelizmente, ainda é uma realidade muito presente. Segundo dados de 2015 publicados há 3 anos pelo Ministério da Saúde, o país registrou cerca de 574 mil crianças nascidas de mães com idade entre 10 e 19 anos. No mundo inteiro, estudos informam que uma em cada cinco mulheres será mãe antes de terminar a adolescência. 

A taxa de natalidade para meninas entre 15 e 19 anos foi de 71 em cada mil, não muito longe dos números registrados pelo Afeganistão, um país muçulmano em que o casamento de crianças ainda é comum e permitido por lei - lá, a mesma taxa é de 90 para cada um mil. 

No caso do Brasil, a causa desses números são muitas. Primeiro, a falta da educação da população - sem informação de qualidade, tanto sobre sexualidade e prevenção de gravidez e doenças, quanto sobre abuso sexual e estupro, leva às alturas os números relacionados a esses assuntos por aqui. Em segundo, por toda questão sócio-econômica do país, que muitas vezes força famílias mais pobres a tirarem os filhos da escola para ajudar em casa ainda muito novos (são mais de 2 milhões de crianças e adolescentes fora da sala de aula, segundo dados de 2017) e que se tornam crianças precoces. Isso, sem falar do sistema de pensamento machista. 

Sim, o machismo. Essa forma de pensar coloca mulheres em situações como a da menina que deu o abre a este texto. Já vulnerável por ser menor de idade - e, como tal, deveria ser protegida pelo Estado acima de tudo -, ela é objetificada, abusada e exposta a um trauma ainda maior do que o que já teve.

O que você fazia aos dez anos de idade? Será que uma criança como ela tem estrutura para criar um filho? Será que ela quer esse filho? E se não quiser, quem tem o direito de julgá-la? E o "pai"? Esse tio quer esse filho? Ele vai ajudar essa criança na criação de outra criança? Vai apoiá-la? Vai tratá-la segundo os valores da família de bem? Aliás, o que é ser uma pessoa de bem? E por que a revolta pública está mais preocupada com a interrupção de uma gravidez em uma criança do que com um adulto que abusou sexualmente de um vulnerável? Que valores são esses? Será que eles não andam um pouco invertidos? 

Segundo a legislação brasileira, o aborto é legítimo em casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia do feto. No caso em questão, vale ainda o desejo da própria criança, que não quer dar continuidade à gravidez - e seu desespero ao falar do assunto foi retrato em muitas notícias que relatam o caso. Com respaldo legal e respeitando a soberania da própria criança, quem tem o direito de contestar a decisão? 

Em um momento como esse é difícil acreditar que não existam questões mais importantes a serem discutidas e até protestadas do que o aborto de uma gravidez infantil resultado de um abuso sexual. Com uma crise sanitária sem precedentes, mais de 100 mil mortos por uma doença ainda sem cura e lideranças desencontradas, o Brasil ainda precisa, em pleno 2020, discutir questões básicas como essa. Não seria esse o momento de colocar a importância onde ela realmente é devida? 

Vale lembrar que o aborto não é uma questão ideológica, mas de saúde e direitos da mulher - especialmente em países com questões sócio-econômicas mais severas, como é o caso do Brasil. Por aqui, diz o Ministério da Saúde que uma mulher morre a cada dois dias por conta de um aborto inseguro - a maioria mulheres negras, jovens, solteiras e de baixa escolaridade. 

De fato, o momento de não é de ideologias, até porque essas são falhas e colocam uma classe social, um gênero, uma raça acima de outra. O momento é de lidar com fatos e responder à eles de uma forma que beneficie a todos. A questão do aborto não deveria depender de opiniões. A questão do abuso sexual e do estupro não deveria ficar em silêncio. O momento exige conversas sérias, importantes, decisivas. Mas, para que elas aconteçam, é preciso também parar de aceitar o absurdo.

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