A marcha da insensatez de um país em processo de destruição
É um quadro mais assustador do que o da pós-ditadura. A conta maior não será do Congresso, mas do Supremo. Os principais personagens dessa trama macabra não serão poupados pela História
Luís Nassif
Há uma ameaça latente ao futuro do país como Nação. O sistema político foi destruído. Há um avanço sistemática das organizações criminosas, controlando espaços cada vez maiores do território. As disputas não são mais entre poder formal e organizações, mas guerras entre elas. Sem a estruturação formal dos partidos, aumenta a influência deletéria de grupos setoriais, como os neopentecostais, ruralistas, mercado. E, a cada dia que passa, o Estado construído pós-Constituição vai sendo desmontado, sob a lógica exclusiva do benefícios a grupos específicos.
Políticas científico-tecnológicos, universidades federais, sistema de saúde, saúde mental, educação inclusiva, tudo é soterrado por visões ideológicas que visam mascarar os grupos de interesse que se apossaram do governo. Na ponta, Supremo se apropria de funções legislativas, o Congresso se perde sem uma voz de comando, órgãos de controle assumem cada vez mais funções policialescas. Sem o papel coordenador de uma liderança, sem o conjunto articulado de ideias de um partido, cada instituição, cada ator vai abrindo espaço a cotoveladas, desmontando qualquer ideia de disciplina institucional.
Onde começou essa loucura auto-destrutiva?
No final da ditadura, o país passava por desafios similares. O sistema bipartidário desmoronava, a herança militar legara um país quebrado, com hiperinflação, moratória; a miséria era avassaladora e visível nos semáforos das grandes cidades, no campo, no interior quebrado.. Havia um oceano de turbulências apontando para uma dissolução do país.
É nesse quadro que emergem algumas lideranças fundamentais. No centro, Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Mário Covas.
Mas o ponto essencial foi o aparecimento de uma nova liderança, o metalúrgico Luiz Ignácio Lula da Silva.
Com um discurso explosivo, e uma ação conciliadora, Lula conseguiu canalizar todas as insatisfações dos abandonados para o jogo político formal.
Sem terras, sem tetos, sem comidas, sem Estado, a imensa multidão dos desassistidos seria massa de manobra fácil para organizações criminosas, para candidatos a guerrilha. Ao organizar o Partido dos Trabalhadores, Lula deu consistência política às demandas, teve grandeza para aguardar o momento de ser eleito, perdendo eleições sucessivas sem questionar seu resultado e estendendo o papel civilizatório do partido para todos os rincões.
Ao mesmo tempo, criou a possibilidade de uma polarização produtiva, com o aparecimento do PSDB. O partido se estruturou como uma alternativa racional das classes médias intelectualizadas contra a esquerda não radical representada pelo PT.
Quando explodiu a crise internacional, tem 2008, tornou-se mais nítida a grandeza de Lula. Tornou-se um símbolo internacional da tolerância, da busca da paz, um pacifista do nível de um Mandela, um Ghandi – conforme reconhecimento internacional.
Para manter a coesão nacional, talvez tenha cedido mais do que devia. Manteve uma política cambial e monetária corrosivas da industrialização, para não afrontar o mercado. Não avançou na reforma fiscal, para não afrontar os ricos. Não avançou nas comissões da verdade, para não afrontar os militares. Mas, nas frestas abertas pelas negociações, conseguiu implementar alguns dos programas sociais mais relevantes da história. Mudou a face do Nordeste com a transposição do São Francisco e a política de cisternas. Mudou a face das universidades com as políticas de cotas. Com o aumento do salário mínimo e o Bolsa Família abriu um caminho inédito de inclusão social e de redução das desigualdades.
Seu sucesso, especialmente a partir da crise de 2008, levou a uma deterioração do jogo político, e a deterioração da democracia por outros atores, incapazes de contrapor um discurso eficaz. No mensalão, o Ministério Público Federal julgou que poderia ser poder autônomo. Com a morte de Mário Covas e Franco Montoro, o PSDB caiu nas mãos de Fernando Henrique Cardoso, Aécio Neves e José Serra. Ao mesmo tempo, sem saber como enfrentar a competição trazida pela Internet, a mídia passava a exercitar cada vez mais o jornalismo de guerra, o discurso de ódio. E trouxe o PSDB consigo.
Ex-presidentes são ativos nacionais. São políticos com influência em suas bases para ajudar o país em momentos de tempestade. Na França, Miterrand foi alvo de acusações, mas preservado por uma questão de realismo político.
No auge do mensalão, quando o Ministério Público Federal exercitou pela primeira vez seus músculos, visando a desestabilização política, vários ex-presidentes saíram em defesa da normalidade institucional – José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. O único que ficou de fora foi Fernando Henrique Cardoso.
Terminadas as eleições de 2014, sabia-se que era questão de tempo para haver alternância de poder. Mas, quando Aécio Neves deu a senha para o golpe, deu a largada para o desmanche institucional do país. Nos meses seguintes, as passeatas contaram com a participação entusiasmada de Aécio, Serra e FHC.
Dali em diante, puxado pela Lava Jato, a democracia foi estuprada, com participação direta do Supremo Tribunal Federal (STF). Submetido a lideranças mais interessadas no enriquecimento financeiro do que em mudar a República, o PSDB perdeu substância.
Com a destruição do papel mediador de Lula, a perseguição implacável a que foi submetido e a anomia histórica de FHC, criou-se um vácuo político, quebraram-se as barreiras do sistema de freios e contrapesos e, a partir dali, começou a desintegração do país. Primeiro, ao se permitir a ascensão da mais suspeita organização política pós-democratização – o centrão de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima. Depois, com o grande mercado de negócios que se abriu com o desmonte, estatais sendo leiloadas, políticas sociais destruídas, em um estouro da boiada típica de países que destruíram suas referências políticas, sem colocar nada no lugar.
Hoje se tem o país com recordes mundiais de morte por Covid, uma política econômica errática que assusta o mercado, o avanço das organizações criminosas por todos os poros da República, sem nenhum referencial racional para impedir o desmanche.
É um quadro mais assustador do que o da pós-ditadura. E a conta maior não será do Congresso, mas do Supremo Tribunal Federal. Os principais personagens dessa trama macabra não serão poupados pela história.
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