segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo

 


lun. 18 janv. à 13:50
Natalia Viana e Julian Assange - Ilustração: Helton Mattei/Agência Pública

O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo


Após as dezenas de furos revelados pelos documentos do WikiLeaks sobre o Brasil, o interesse dos veículos de comunicação nas informações foi minguando. Mas ainda havia muito a ser reportado.
18 de janeiro de 2021

Episódio 4 – Quem quer segredos?

Talvez não tenha ficado claro ao leitor, mas quando eu me envolvi com o trabalho do WikiLeaks, fazia já cinco anos que eu não trabalhava em veículo nenhum. Meu último emprego fora na Caros Amigos, onde entrei como estagiária e fui a primeira repórter a ser contratada pela revista, que vivia na pindaíba. Depois disso, fiz um mestrado em Londres – onde conheci o Gavin McFadyen, cujo nome já passou aqui pela Newsletter – e comecei a trabalhar com centros internacionais de jornalismo investigativo. De volta a Brasil, eu vivia de frila. Era correspondente de uma rádio americana, trabalhava para uma agência internacional, propunha pautas para revistas brasileiras. Tentava aliar isso tudo quando queria fazer uma reportagem mais aprofundada – no ano anterior, por exemplo, havia ido para o sul da Colômbia pesquisar como os indígenas da província de Nariño ficavam espremidos entre a guerrilha e os paramilitares, sendo mortos pelos dois lados do conflito. Escrevi para o site Opera Mundi, mas também pra a BBC, e ainda vendi algumas pautas de turismo para conseguir pagar a viagem. Ao mesmo tempo, estava terminando de escrever um livro sobre o Jornal Movimento, um veículo que lutou contra a ditadura, junto com a Marina Amaral e outro grande jornalista, o Carlos Azevedo. Enfim, me virava nos 30.

Isso é importante porque, durante os seis meses que eu coordenei o projeto dos documentos da embaixada no Brasil, eu não tinha nenhuma renda. A única coisa que recebi do WikiLeaks foi o ressarcimento da passagem  que eu paguei pra ir a Londres – um bolo de notas de libras, que a Sarah me entregou abaforadamente antes de me deixar na estação de trem. Eu havia conversado com Julian sobre isso e expliquei que não tinha como me manter sem um pagamento. Ele também foi direto: 

- Olha, não temos como te pagar pelo trabalho. Mas te proponho uma coisa: já que você tem acesso aos documentos, pode também escrever reportagens sobre eles e oferecer como jornalista free-lancer. 

Era uma boa ideia, pensei. Afinal, eu já era frila e agora tinha acesso a uma quantidade incrível de furos. E para facilitar a minha vida, além dos documentos brasileiros eu teria acesso também aos documentos classificados sobre os demais países da América Latina. Julian me deu carta branca para escrever sobre eles no meu parco tempo livre. Passei então a procurar veículos nacionais que se interessariam por essas reportagens. 

A revista Carta Capital não quis saber das reportagens, mas me ofereceu um blog onde eu poderia reunir todas as matérias que ia publicando no site do WikiLeaks. O pagamento era módico, mas aceitei contando que conseguiria vender alguns frilas para outros veículos. Não foi bem assim. Na revista piauí, em janeiro de 2011, me disseram que o foco em América Latina não servia à revista. Eu segui procurando outros editores. 

Meus esforços aumentaram a partir da segunda metade de janeiro, porque havia uma data importante. O dia 17 marcava o fim do acordo de exclusividade com os cinco maiores jornais do mundo, e a partir de então os documentos poderiam ser compartilhados com novos parceiros. A equipe que cuidava da América Latina agiu rápido. Em fevereiro, quatro grandes jornais da região, El Espectador, da Colômbia, Página 12 da Argentina, El Comercio, do Peru e La Jornada, do México, entraram na parceria.

Alguns jornalistas haviam tomado a liberdade de escrever ao WikiLeaks; outros foram contatados pela rede de colaboradores de diversos países que ajudavam a escolher os melhores parceiros. Assim, a partir de janeiro, um punhado de editores latino-americanos recebeu na sua caixa de email uma mensagem tão cobiçada como essa: 

 “Caro Santiago O'Donnell, meu nome é Natalia Viana, sou jornalista no Brasil e estou colaborando com o WikiLeaks por aqui, coordenando a publicação dos documentos da embaixada dos EUA. Escrevo porque o WikiLeaks pensa em estabelecer uma parceria com o Pagina 12 para o lançamento dos cabos na Argentina. Por favor, me avise se há interesse”. 

A resposta veio em minutos, apressada:  “Hala natalia, claro que hay interes. saludos” 

Meu papel acabava por aí, mas no caso do Página 12, ainda rendeu uma bela aventura, da qual fiquei sabendo por terceiros. Santiago O’Donnel viajou até a mansão inglesa em fevereiro, relatando em seu jornal que Assange “tem cara de quem está com sono e as roupas amarrotadas: terno azul, camisa azul clara, sapatos negros” e “parece mais jovem do que os seus 39 anos”. Disse, ainda, ao fundador do WikiLeaks que “Che Guevara estava na selva e usava um fuzil, o Comandante Marcos estava na selva e usava um computador, e agora você vem e usa o computador mas já não está na selva”. Assim roçou a vaidade do australiano: “Tenho consciência deste lugar que ocupo”. 

O’Donnel trabalhou durante meses nos documentos e revelou, entre outras coisas, que Mauricio Macri, que seria presidente da Argentina anos depois, havia pedido  à embaixadora americana que fosse mas abertamente crítica aos Kirshner, que então governavam o país; e como a embaixada fez um forte lobby para defender o uso do agrotóxico glifosato, da Monsanto, quando uma pesquisa foi publicada apontando riscos para a saúde. 

Mas não é pelas revelações argentinas que eu sempre me lembro da história de Santiago O’Donnel. Santiago, depois de meses liderando o vazamento no seu país, quis escrever um livro sobre a história. Seu chefe, entretanto, não aceitou. Ele fez o que podia: tirou férias para escrever um livro, e finalmente publicou “Argenleaks: Los Cables de Wikileaks sobre la Argentina, de la A a la Z”. E ainda fez uma dedicatória ao patrão.   

De certa maneira, a onda libertadora que se espalhava com o vazamento do Cablegate também chegava a nós, jornalistas. Estávamos todos pensando em como fazer o melhor uso dos documentos, longe de quaisquer pressões, seja de chefes ou de empresas jornalísticas que estavam claramente envelhecendo. 

Foi por isso – e porque eu de fato ouvira o clamor que veio naquela reunião no Sindicato dos Engenheiros – que eu decidi dar um rumo diferente aos documentos brasileiros. 

Àquela altura, a cobertura dos jornais já estava esfriando. Havia um ou dois escândalos menores – o Itamaraty chegou a negociar imunidade a militares americanos;  ajudou os pilotos americanos do jato Legacy envolvidos no desastre do voo 1907 da Gol, em 2006, a fugirem do país; o Brasil se submetia à aprovação dos EUA na aplicação da Lei do Abate. Passado o furo, Tatiana Farah me explicava que, por serem veículos nacionais, picuinhas locais tinham pouco interesse, e ao mesmo tempo não fazia muito sentido “chutar cachorro morto”, fazendo reportagens sobre as relações da embaixada com políticos que haviam perdido poder. 

Eu achava que ainda havia muitas histórias enterradas ali e tinha certeza que jogar tudo na rede não seria uma solução; era preciso encontrar jornalistas interessados em ler, contextualizar e escrever reportagens. Por outro lado, não via nenhum motivo para limitar as nossas opções à mídia tradicional. Na última década pipocavam blogs de jornalistas que saíram da grande imprensa e se tornavam cada vez mais relevantes no debate público – eles se autodenominavam “blogueiros progressistas”.            

Era uma saída. Mas eu estava pensando em uma mudança ainda mais radical. Talvez fosse mesmo o caso de permitir um acesso mais direto ao público. Afinal, essa era uma chance única de explorar fronteiras novas no jornalismo. 

Como fazer isso, era um grande pepino. Por serem blogs tocados por um jornalista com um ou dois voluntários, faltava uma estrutura básica que pudesse dar conta dos requerimentos de segurança do WikiLeaks ao lidar com os documentos sigilosos. Seria impossível entregar todo o arquivo. Além disso, imaginava que eles acabariam assoberbados. 

Então eu pensei em um plano maluco, para o qual tive amplo apoio de Julian Assange e Sarah Harrison: iria perguntar diretamente ao público quais eram os temas que eu deveria buscar nos documentos. Os temas mais populares seriam vasculhados, e os cabogramas que tratassem deles seriam  enviados em “pacotes” para um grupo de blogueiros, que teriam alguns dias para escrever e publicar as reportagens. E eu seguiria escrevendo para o site do WikiLeaks. Aproveitei e também organizei uma entrevista coletiva, com perguntas do Público para Assange, o que rendeu uma série de manchetes errôneas em agências de notícias. Estávamos quebrando tantas barreiras, eliminando mediadores, e acreditei que aquilo seria sensacional; pela primeira vez o público mandaria na dinâmica dos vazamentos, e não vice-versa. 

Passados alguns dias, minha caixa de email estava abarrotada de sugestões sobre o que deveria procurar. E então eu tive uma das mais importantes revelações durante todos aqueles meses. Agora o leitor que me diga: adivinhe qual foi o tema mais sugerido?  

...

...

...

Alienígenas. 

O público brasileiro, diante da possibilidade de entender como se deram as relações políticas na embaixada brasileira e nos cinco consulados americanos na última década, queria saber se existia vida em Marte.  

E acreditava piamente que haveria uma resposta naqueles documentos. 

Passado o susto, fiz uma seleção dos temas sugeridos que tinham algum pé na realidade, e passei a enviá-los a um grupo de vinte blogs, alguns dos quais fizeram um bom trabalho com eles – me lembro do nome da jornalista Juliana Sada, do Escrevinhador. Entre os temas abordados estavam Israel, Ditadura, mensalão e as eleições de 2006, Apareceram assim conversas de Michel Temer criticando o Bolsa Família e muitas referências a José Dirceu, que o embaixador americano dizia “ter habilidades políticas maquiavélicas”. 

Passadas algumas semanas, mesmo o interesse dos blogueiros minguou. Quando eu os questionei, recebi uma resposta chocante: “se pelo menos fossem temas que a gente cobre, como a grande mídia”... 

O vazamento mexeu tanto com a imaginação das pessoas, que muitos queriam que houvesse ali informações que simplesmente não existiam. Por outro lado, o que de fato havia nos documentos não parecia interessar a muita gente. Depois de bater em algumas portas propondo frilas sobre a América Latina, cheguei finalmente ao editor do jornal Valor Econômico, que cobre economia e eu achava que haveria de se interessar pelos negócios escusos que acontecem em outros países do continente. De fato. O editor foi receptivo, e pediu para conversar internamente e retornar a ligação. 

Alguns dias depois, recebo o telefonema: 

- Olha Natalia, achamos os documentos importantes e queremos sim escrever sobre a América Latina. Mas nossa avaliação é que, como você trabalha com o WikiLeaks, não seria uma jornalista isenta... Então não podemos pagar a você pelos textos, mas se você quiser entregar os documentos, vamos fazer as reportagens com prazer. 

Há nomes que é melhor a gente esquecer. O desse editor, por exemplo. Eu disse ‘não, obrigada’, e desliguei. Me lembro exatamente da cena. Estava sozinha em um bar na Pompeia, zona oeste de São Paulo, e pela primeira vez durante todos aqueles meses, chorei. Não podia acreditar no que aquele cara havia me dito.  

Liguei para a Marina Amaral, que eu sempre tive como uma mestra na minha trajetória jornalística. Soluçava. “Não acredito que eu estou com o maior furo do ano no meu bolso e mesmo assim os caras não acreditam que eu sou jornalista. Não vou conseguir mudar isso nunca”. E chorava. 

Marina me acalmou, disse que tudo ia ficar bem, e eu fui pra casa, desolada. Dormi pesado. Fui acordada pelo apito frenético da campainha. Abri a porta sonolenta, e ela entrou correndo pela minha sala como um furacão. Disparou: 

- Natalia, eu sei o que temos que fazer. Está na hora da gente fundar aquele negócio que falávamos, aquela agência de reportagens!

Eu não estava mais sozinha. 

Me lembro de ter dito “tá bom” meio sem graça, sem ter a menor ideia de como se fazia aquilo, mas meses depois a gente lançaria a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, que completa dez anos no dia 15 de março com uma trajetória premiadíssima. 

marina_amaral_e_andrea_dipMarina Amaral e Andrea Dip - Ilustração: Helton Mattei/Agência Pública

Nos seus primeiros meses de vida, a Pública reuniu um grupo de jornalistas investigativos voluntários para escarafunchar todos os documentos. Levamos todos eles para nosso escritório, onde tiveram acesso com segurança aos documentos, lendo cada linha para garantir a proteção de fontes da embaixada, conforme a orientação do WikiLeaks. 

No final, publicamos mais 50 reportagens – elas traziam desde informes sobre apoiadores do bolivarianismo no Brasil até uma suspeita de lavagem de dinheiro no escritório da Unesco em Brasília, passando por doações de equipamentos dos EUA para as polícias brasileiras e diálogos sobre a corrida contra a China por commodities nacionais. Participaram, por puro amor a profissão, jornalistas que merecem ter seus nomes citados aqui: Marcus V F Lacerda, Daniel Santini, Andrea Dip, Tadeu Breda, Mariana Simões, Glauco Faria, Anselmo Massad, Jéssica Souza Santos, Julio Cruz Neto, Débora Prado, Paula Sambo, Ana Aranha, Igor Ojeda e Tatiana Merlino – que fundaria a Pública junto comigo e com a Marina Amaral, mas acabou saindo pouco depois. 

Foi graças a esse grupo que, em julho, conseguimos publicar todos os documentos do Brasil no site do WikiLeaks, devidamente lidos e checados. Até hoje eles estão em domínio público e podem ser pesquisados por qualquer um que queira conhecer a nossa política externa na primeira década deste século.    

Além de coordenar isso tudo, eu estava cada vez mais envolvida com os planos futuros do WikiLeaks para os documentos das embaixadas. Uma vez que os jornais de países de renda média já haviam se prontificado a ir até Ellingham Hall, restava outro problema – como fechar as parcerias com países mais pobres. 

A solução foi o Cablerun, a “corrida dos cabos diplomáticos”, uma mistura de road movie com projeto de democratização global da informação que só poderia partir da cabeça de Julian Assange. Eu me prontifiquei a participar. E levei junto uma grande amiga e a publicação mais moderninha que tínhamos no Brasil naquela época. 

Mas essa história vai ficar para o próximo episódio.   

O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo é uma parceria da Agência Pública e do Meio. A série vai ser publicada como uma newsletter pop-up, um novo formato de newsletter que se encerra após um determinado número de edições. 

Os demais episódios serão enviados para os que se inscreverem às segundas-feiras, a partir do dia 4 de janeiro de 2021. 

Se ainda não está inscrito, inscreva-se já.

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