sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Carta Capital

 

SEXTA-FEIRA, 19 DE FEVEREIRO DE 2021

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Furtado considerava ilusório imaginar que a Escola Superior de Guerra pudesse ser um centro de estudos superiores, no campo das ciências sociais, capaz de desenvolver um pensamento abrangente em torno da realidade nacional 

Impressões de Celso Furtado sobre os militares

“Eles veem o Brasil como um problema de organização, como se para cada coisa houvesse um lugar certo a ser encontrado. Está aí a chave da formação intelectual do militar: sempre será positivista, no sentido epistemológico, criador de certezas”, registrou o economista em sua autobiografia

Por Carlos Drummond

Fundamentais à criação da Petrobras e da Embraer e, no atual governo, determinantes também para o desmantelamento da petrolífera e a venda da fabricante nacional de aviões, que só não se concretizou porque o comprador desistiu da operação, os militares suscitam interpretações variadas, inclusive entre economistas, acerca do seu papel na economia e na sociedade. Ora nacionalistas, ora entreguistas, capazes de romper o acordo militar Brasil-Estados Unidos, como fez o general-presidente Ernesto Geisel em 1977, depois submissos a ponto de designar um general do Exército brasileiro para um posto no Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos, em 2019, eles tanto contribuem para o desenvolvimento da indústria e do País como dilapidam o que eles mesmos ajudaram a construir. Os exemplos de posições mutuamente excludentes assumidas em diferentes momentos da história incluem o monopólio nacional do petróleo e do urânio, entre outros. Anotações do economista Celso Furtado, instado a conviver com a nata das Forças Armadas devido à sua participação em governos, contribuem para a compreensão do problema. Os parágrafos abaixo, escritos em 1953, integrantes das páginas 150 e 151 do volume autobiográfico A fantasia organizada, publicado em 2014 pela Companhia das Letras, revelam um Furtado ciente do papel crescente da instituição nos rumos da política e da economia:  

“Minha experiência a partir de 1953, quando fiz maior número de conferências e participei de longos debates, levou-me a refletir sobre a natureza dessa instituição. É sobremodo meritório que as elites militares estudem os problemas do país. Mas é uma ilusão imaginar que uma escola (alusão de Furtado à Escola Superior de Guerra) organizada no “estilo militar” possa vir a ser um centro de estudos superiores, no campo das ciências sociais, capaz de desenvolver um pensamento abrangente em torno da realidade nacional.”

“Como tive oportunidade de conviver de perto com nossos militares, inclusive em circunstâncias muito particulares, como as que surgem durante a guerra (referência do economista à sua participação na Força Expedicionária Brasileira), tratei de vencer os estereótipos que nós, “paisanos”, nutrimos com respeito a eles. De todas as grandes instituições criadas pelo homem, a militar é certamente a mais simples, exigindo enorme transparência no comportamento dos indivíduos. Como na vida militar a postura profissional é estritamente regulamentada, torna-se muito mais fácil captar o que é próprio de cada indivíduo. Por isso, aquele que procura assumir o que não é, “posar”, não escapa da crítica dos colegas. Impressiona a mordacidade dos comentários que fazem os militares com respeito aqueles que deslizam em “paisanadas”. Um conferencista civil pode mistificar os seus ouvintes; no caso de um militar, é muito mais difícil, se os ouvintes também são militares.

“Nas minhas exposições, procurava ser simples, pois sabia das suscetibilidades dos ouvintes militares, sempre prevenidos contra um civil que pretende subentender a ignorância deles. Ainda assim, nos longos debates que se sucediam dificilmente havia comunicação efetiva de ideias. O ritualismo era excessivo, dando-me a impressão de estar participando de uma sessão de ordem-unida. As perguntas eram extremamente simples, como se seu autor desejasse apenas dirimir uma dúvida de detalhe. Não lhes ocorria formular uma questão de ordem geral, como se estas já tivessem sido esclarecidas de antemão, ou somente pudessem ser abordadas em círculos mais restritos, o que entre os militares significa transferir para escalões hierárquicos superiores. O comportamento dos civis era menos formal, ainda assim influenciado pelo ambiente.

“Dentre os dirigentes da Escola (Superior de Guerra) com quem mantive contato, interessou-me o general Juarez Távora, figura legendária para a minha geração. Fora o intelectual da Coluna Prestes, e o líder da Revolução de 1930 no Nordeste. Sempre que se apresentava uma oportunidade, demorava-me para conversar com ele. Via o Brasil como um problema de organização (grifo no original), como se para cada coisa houvesse um lugar certo a ser encontrado. Está aí a chave da formação intelectual do militar: sempre será positivista, no sentido epistemológico, criador de certezas. À imaginação atribuem um papel residual na apreensão da realidade. Ora, os processos sociais complexos escapam a qualquer esquematização, com frequência alimentando-se de conflitos. Na linguagem de hoje: exigem muito jogo de cintura mental para ser captados.”


 

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A inteligência artificial decuplica o atraso e tende a reverter ganhos obtidos pelos países emergentes em meio século

A pior crise da indústria ainda estaria por acontecer

O avanço da inteligência artificial e da automação pode representar, assim como a Revolução Industrial, um ponto crítico na história, pondo fim ao modelo de desenvolvimento liderado pela exportação de manufatura que teve efeitos positivos profundos para muitos emergentes, alertam os economistas Anton Korinek e Joseph E. Stiglitz

Por Carlos Drummond

O progresso em inteligência artificial e formas relacionadas de tecnologias de automação poupadoras de mão de obra ameaçam reverter os ganhos que os países em desenvolvimento e os mercados emergentes experimentaram com a integração na economia mundial no último meio século, agravando a pobreza e a desigualdade, alertam os economistas Anton Korinek e Joseph E. Stiglitz no estudo intitulado Inteligência Artificial, Globalização e Estratégias para o Desenvolvimento Econômico. As consequências para o Brasil, conclui-se, com sua indústria defasada tecnologicamente desde a crise da dívida externa dos anos 1980, tendem a ser devastadoras.

Há no mundo todo, dizem os economistas, temores de perda de empregos e aumento da desigualdade resultante da IA e formas relacionadas de tecnologias de automação, mas os países em desenvolvimento e as economias de mercado emergentes têm ainda mais motivos para se preocupar do que os países de alta renda, pois sua vantagem comparativa na economia mundial depende de mão de obra abundante e recursos naturais. A revolução da inteligência artificial “pode levar a uma miséria ainda maior no mundo em desenvolvimento, prejudicando os ganhos rápidos que têm sido a marca do sucesso obtido nos últimos 50 anos e ameaçando o progresso feito na redução da pobreza e da desigualdade”. 

Korinek e Stiglitz analisaram as forças econômicas por trás desses desenvolvimentos e descrevem as políticas econômicas que mitigariam os efeitos adversos nas economias em desenvolvimento e emergentes, assim como as reformas que consideram necessário fazer no sistema global de governança econômica para “compartilhamento dos benefícios da IA de forma mais ampla com os países em desenvolvimento”. 

É preciso, o quanto antes, recomendam os autores do trabalho, abandonar em definitivo a presunção de que os avanços na tecnologia beneficiariam a todos, que tomou corpo no dogma do trickle down ou gotejamento da riqueza dos de cima para aqueles situados nas camadas inferiores de renda, que caracterizou o neoliberalismo. “No entanto, nunca houve uma teoria econômica que dissesse que os avanços na tecnologia necessariamente beneficiariam a todos e muitas pesquisas econômicas alertaram que esse poderia não ser o caso, pois o progresso tecnológico pode muito bem criar vencedores e perdedores”, sublinham.

“Alguns países, a exemplo da China, passaram por uma transformação econômica a tal ponto profunda que sua vantagem comparativa mudou, de modo que podem estar entre os vencedores da revolução da IA. Para outros países, entretanto, a IA pode interromper ou reverter a convergência em direção aos padrões de vida dos países ricos que eles experimentaram durante grande parte do século passado”, ressaltam Korinek e Stiglitz. 

Um dos principais problemas, prosseguem, é que as tecnologias da informação, como a IA, também tendem a dar origem a monopólios naturais, criando um pequeno conjunto das chamadas empresas superestrelas localizadas em alguns países poderosos, mas que atendem a toda a economia mundial. 

O artigo argumenta que os países em desenvolvimento podem enfrentar um novo conjunto de desafios no futuro, mas ressalvam que existem medidas políticas capazes de mitigar os efeitos adversos tanto no que se refere a políticas domésticas e estratégias de desenvolvimento, quanto na esfera da cooperação internacional e no que diz respeito à necessária reformulação das  regras globais que governam a economia da informação. 

“Os avanços em IA e tecnologias relacionadas podem, assim como a Revolução Industrial, representar um ponto crítico na história. O aumento da automação na manufatura pode levar ao fim do modelo de desenvolvimento liderado pela exportação de manufatura, que teve efeitos positivos profundos em muitas economias de mercado emergentes. O pior cenário é o estancamento de grande parte dos ganhos em desenvolvimento e em termos de redução da pobreza que vimos no último meio século”, concluem os economistas. 

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