segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021
O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo
Julian Assange - Ilustração: Helton Mattei/Agência Pública
O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo
No interior da Inglaterra, três brasileiros se preparavam para viajar por países do Caribe - sem passar pelos Estados Unidos - para distribuir os documentos diplomáticos vazados pelo WikiLeaks.
1 de fevereiro de 2021
Natalia Viana
Episódio 6 - Cablerun
Manhã de primavera britânica, gelada como tal, e dentro do imponente prédio do Guardian paredes de vidro permitiam uma visão espetacular dos andares abaixo, dos cafés, do entra-e-sai dos jornalistas em diferentes editorias de um dos principais jornais do mundo, às oito da manhã. A sala de reunião modernosa estava cheia, como costume. Sentados nos dois longos sofás amarelos, quadrados, formando como um circuito fechado, estavam, encamisados, cada um dos editores cuja tarefa é definir quais serão os assuntos, as chamadas, o que importa e o que não importa na soleira do dia que começa, desde a Costa Rica ao Afeganistão, passando, claro, pelo Reino Unido. O que sair daqui dará em boa medida o tom e a cor de boa parte das notícias que circularão neste dia, no mundo todo; fixará o que é importante e o que não é, o que aconteceu e o que não aconteceu (porque não deu no Guardian), surpreenderá correspondentes, será lido e reescrito por jovens redatores das agências de notícia, correrá por cabos de fibra ótica para os cinco continentes, irá estressar e dar trabalho a câmeras, âncoras, repórteres de TV, terminará sendo assunto de bar no cair da noite em algum ponto obscuro do globo. Mas a sala despojada contrastava com o clima solene; é como assistir a uma chamada oral de uma escola tradicionalista britânica, entre paredes de vidro. Há, no canto esquerdo da famosa sala, um longo banco amarelo para que assistentes, estagiários e visitantes possam acompanhar o infalível ritual.
Naquela manhã havia um grupo de jornalistas estrangeiros em visita; repórteres da África, da Ásia e da América Latina tinham sido trazidos por um programa financiado pela Comissão Europeia para conhecer como se faz as noticias que eles reproduzirão, traduzirão, e repercutirão nas suas próprias redações. Eu estava entre eles, e observávamos atentos; toda a sala estava atenta, prendendo a respiração. O editor-chefe fala pausadamente, sem qualquer alteração, e baixo, quase incompreensível, forçando a todos a se manter vidrados à fala, papel e caneta nas mãos. Um a um, os editores são chamados a declamar os principais fatos do dia, numa lista monotônica, Reuters está dando que houve uma explosão em Bagdá. Poucos fazem comentários; em uma ou duas ocasiões, há risos contidos. No final de cada tema, o editor-chefe comenta a lista, sem aumentar a voz, derrubando esta ou aquela pauta, pedindo um detalhe a mais. Os editores subalternos prosseguem, na ordem. A reunião é cirúrgica, mas sem uma gota de sangue.
Chatíssima.
E o mundo lá fora.
Aquele dia, uma das observadoras, eu mesma, voltava de um fim-de-semana num ambiente visceralmente oposto, embora quase ali do lado: a 190 quilômetros de Londres, no já meu conhecido casarão georgiano, que àquela altura havia se transformado em prisão domiciliar para Julian e para meus outros colegas. O contraste era chocante; enquanto em Ellingham Hall um pequeno grupo dissecava, desmembrava, tamborilava cada acontecimento como se fosse a última coisa nas suas vidas, a única coisa em suas mãos; no poderoso Guardian o mundo era uma rotina distante. Em não mais que três dias foram tantas discussões acaloradas, idas e voltas de raciocínio, embates apaixonados.
Eu havia me metido ali naquele grupo porque era a única maneira de conseguir pagar uma passagem para voltar para Londres, financiada por uma ONG que eu conhecia. Era a minha contribuição para o “financiamento criativo” do projeto Cablegate. Aceitei ser parte de um grupo de jornalistas de “países em desenvolvimento” que iriam ser treinados pelos sabichões da ONG britânica (aprendemos até mesmo a usar máquina fotográfica!) para conseguir chegar até ali. Os custos para chegar até Ellingham Hall correram pelo WikiLeaks.
Mas aquela era só uma pequena parte dos gastos. O resto, pasmem, seria pago pela revista Trip, que conseguiu uma entrevista exclusiva com Julian Assange em Ellingham Hall, com vivência e estadia no meio do nosso grupo de jornalistas amalucados. Em troca, a revista pagaria o equivalente a todas as passagens que eu e Eliza Capai - minha amiga documentarista que me acompanharia pelo Caribe - precisaríamos para percorrer quatro países caribenhos. De lambuja, o editor deles, Lino Bocchini, viria junto com a gente na viagem, para depois escrever uma reportagem sobre o fato. Ela nunca foi escrita; então o leitor vai viajar com a gente, em primeira mão, dez anos depois. Foi preciso fazer um zigue-zague épico para evitar vôos que passassem pelos Estados Unidos. Eliza e Lino tiveram que passar por Kingston, na Jamaica, Trinidad & Tobago, e Caracas, na Venezuela, até chegar a São Paulo.
Na noite de quinta-feira, 24 de março de 2011, a “equipe Caribe” se reuniu pela primeira vez na capital inglesa, em um bar-cinema próximo à estação de London Bridge chamado Roxy. Além da videomaker e da repórter encarregada de operacionalizar a transferência dos documentos em segurança, um jornalista “embedded”, como se diz aos jornalistas que acompanham a guerra ao lado dos soldados, editor da revista Trip, acompanharia todo o trajeto de olho no relato da viagem, que daria em primeira mão, e da entrevista com Assange, negociada a muito custo, e que era a sua principal preocupação naquela noite, nervoso que estava de antecipação.
Sobre a viagem em si, não se falou muito – já que ninguém sabia muito bem o que faríamos em cada país. O itinerário já estava acertado; Eliza sairia de Barcelona, onde morava, passaria pelo México e encontraria a equipe em Santo Domingo, capital da República Dominicana; o editor da Trip iria de São Paulo; e eu, direto dos Estados Unidos, para onde viajaria depois de Londres. Falou-se da entrevista. Como todas as capas de Trip, esta seria uma edição temática. O tema desta seria “controle”. A primeira pergunta a ser feita era clara: se Obama estava no controle – ou Julian.
“Não acho que Obama seja um presidente que está no controle de fato. Ele não é esse tipo de presidente”, responderia o australiano.
Na manhã seguinte, partimos da estação de trem de Liverpool Street, rumo à pequena cidadezinha de Diss, onde o trem chegou pontualmente às 11:38. Diante da estação, um carro prateado esperava a equipe. Julian se escondia detrás de uma câmera filmadora, apontando para os novos integrantes da mais jovem empreitada do WikiLeaks. Sarah saltou do carro: “que saudades”. Depois, foi a vez de Julian me abraçar, em um rodopio. Dentro de um impecável paletó azul escuro, com um largo sorriso, falava agitado. “Ontem um helicóptero das forças armadas do Reino Unido voou sobre o gramado em frente à casa. Era daquelas aeronaves militares grandes, com duas hélices”. Esses vôos se tornaram frequentes durante os primeiros meses de 2011. Helicópteros militares, vans de canais de TV, câmeras de segurança em volta da casa: todo o mundo parecia os estar espionando. Percebi que havia passado muito tempo. Eu estava tão ocupada que não percebi.
Em poucos minutos, estacionamos diante de uma casa amarronzada, de tijolo aparente, cercada de um quintal gramado, com amplas janelas de vidro, que funcionava como escritório temporário. Além de uma sala de tevê com lareira, uma pequena cozinha com armários de madeira onde se guardava o essencial: um macarrão, alguns potes de pesto, molho pronto, pacotes de pão. Na sala ao lado, uma grande mesa serviria para algumas das mais importantes reuniões do Cablegate – ali seríamos introduzidos pela primeira vez ao projeto, em poucos minutos. Na sala contígua, um sofá e poltronas floridas, e uma cadeira de balanço que aparava um ursinho branco de pelúcia. Uma casa de bonecas.
Destoava, em tudo, da seriedade do encontro. Os três brasileiros queriam saber quanto, e como, seriam vigiados. “Você acha que uma pessoa como eu, que não tem nada a ver com a história, também pode estar sendo monitorada?”, perguntou Lino. “Olha... Seguramente todo mundo que entra e sai desta casa é fichado”. Julian estava sentado no sofá, e nós ouvíamos espalhados pelo chão. Havia, desde meados de 2010 uma força-tarefa montada no Pentágono, a WikiLeaks Task Force, para, oficialmente, avaliar quais documentos estavam em poder do WikiLeaks e que impactos teriam sobre suas ações – em especial, sobre a capacidade da CIA de recrutar informantes. Em pouco tempo, a força-tarefa ficou conhecida dentro do Departamento de Defesa pelo seu acrônimo – WTF – sigla que também significa what the fuck, “mas que porra é essa?” Nos três vazamentos subsequentes a WTF elaborou planos de contingência e contra-informação para as revelações mais sensíveis.
Mas, segundo Julian disse naquela tarde, o objetivo maior da WTF era vigiar qualquer pessoa associada ao WikiLeaks. “O princípio é que nenhuma comunicação é segura. Os piores meios de comunicação são e-mail e chat”. Todo tráfego de internet vindo da América do Sul, ele explicava, passa por um cabo de fibra ótica subterrâneo até os Estados Unidos. Tudo o que um brasileiro faz na internet pode potencialmente ficar guardado em um dos supercomputadores do Pentágono. “São máquinas gigantes, do tamanho de prédios. Centenas delas”. Àquela altura o Departamento de Defesa estava construindo um gigantesco centro de dados no estado de Utah, de onde seriam comandadas as ações de interceptação e análise de comunicações a cargo da National Security Agency (NSA). O centro, inaugurado em 2013, congrega diversos prédios em 92 mil metros quadrados e tem capacidade de gerenciar 65 megawatts de dados. Custou 2 bilhões de dólares. “São máquinas com capacidade de armazenamento gigantesco. Supostamente todas as comunicações via internet podem ser gravadas, caso a NSA venha a te investigar do futuro para o passado”. Ele disse assim: “in case the NSA decides to investigate you back from the future”
Foi a nossa vez de pensarmos: “What the fuck?” Aquela reunião aconteceu dois anos antes dos vazamentos de Edward Snowden – um professo admirador do WikiLeaks que se sentiu instigado pelo exemplo de Chelsea Manning – e seres humanos normais, como nós três, não suspeitávamos do alcance da máquina americana de espionagem. E na boca de Julian Assange, a expressão back from the future parecia ainda mais surreal. Mas ela dava o tom do que seria, afinal, a viagem na qual estávamos embarcando. Protestamos bem à brasileira, cada um falando sobre o outro. “Calma”, disse Julian. “Embora as máquinas estejam armazenando todos esses dados, isso não significa que alguém esteja olhando. O que importa, na verdade, é o elemento humano, alguém para monitorar isso tudo e decidir o que é importante e o que não é. Vocês têm que entender que na época do vazamento dos cabos eles estavam muito em cima de nós, mas agora há uma enorme crise no oriente médio, há o Afeganistão, o Iraque, então eles provavelmente estão ocupados com muitas coisas. Nós não somos vistos como a maior ameaça. Somos um problema, mas há outras coisas mais importantes”, explicava, com paciência. “Agora, se no futuro alguém quiser te investigar a partir daquele ponto no tempo, para trás, ele terá como fazer isso, porque os dados estão lá”.
E o que fazer para evitar? “Depois do email, os telefones são muito inseguros, celulares podem ser facilmente grampeados. A melhor forma é usar o skype, mas evitem mesmo isso sempre que possível”. Toda a comunicação deveria ser criptografada, assim como nossos computadores, pendrives, HDs, tudo o que a equipe carregasse na viagem. “E contra-informação é sempre melhor do que nenhuma informação. Zero informação deixa aqueles que estão te seguindo mais curiosos e determinados a descobrir o que está acontecendo”.
Mais do que pela espionagem, Lino estava tenso porque todas as revistas e jornais do mundo se degladiavam pela oportunidade de entrevistar o hacker-ídolo pop. Foi por isso que a Trip topou investir na entrevista “mais alto de todas as reportagens na história da revista”, como não cansava de repetir. Para agradar o entrevistado, a equipe mandou fazer uma camiseta especial da seleção brasileira, modelo vintage, com o símbolo da Confederação Brasileira de Desportes. Atrás, sobre o número 7, o nome Julian, estampado em verde. Ele adorou. “Oh my god! That’s soo cool!”, gritou Sarah ao abrir o pacote. Ali mesmo na sala, ele provou a blusa, perfeita. Lino ainda arriscou: “A gente tinha pensado em tirar uma foto sua mostrando a tornozeleira que te monitora”.
Julian fechou a cara. “De jeito nenhum. Ainda não decidimos como vamos mostrar a tornozeleira. É politicamente sensível”.
O pequeno anel cinza envolvendo o tornozelo direito de Julian, raramente ficava à mostra – ainda mais quando havia jornalistas por perto. Havia um gosto de pequena humilhação naquela tornozeleira aparentemente tão frágil. Era claro também que Julian se sentia profundamente irritado. “Agora que eu engordei, está ainda mais apertada”, dizia. Além da tornozeleira, fabricada e mantida pela empresa americana de segurança Cisco, que periodicamente enviava uma equipe para checar o aparelho, havia 3 caixas de transmissão instaladas na mansão de Vaughan Smith: uma em cada lado da casa, e uma no teto. Cada uma aparava duas antenas, uma para acompanhar os movimentos do prisioneiro, e outra para retransmitir essas informações à sede da Cisco, em Londres. A maior crueldade, no entanto, estava na fragilidade do aparelho: se tivesse um acesso de cólera, Julian Assange seria capaz de, em segundos, cortar o anel e atirá-lo longe. Simples assim, seria o fim da liberdade sob fiança, da meia-liberdade de que usufruía, da confiança daqueles que haviam se juntado para pagar a fiança. Lidar com ela exigia frieza.
Naquela tarde, Julian topou ser fotografado no gramado da casa, brincando com uma bola de futebol. Depois de alguma insistência: queria se barbear, pois achava que a barba passaria uma imagem errada. Posou divertido para a lente de Eliza, antes de explicar que a entrevista teria que ser no dia seguinte. “Temos muito a fazer”.
De volta à mesa da sala, a primeira reunião sobre a viagem durou horas a fio. A lógica era simples: Julian estava preso, mas o seu exército de jovens jornalistas podia viajar para completar o alcance do vazamento mais importante da história. Ele monitoraria tudo da sua prisão domiciliar, pelo computador, e através de reuniões por Skype. O principal objetivo, portanto, mais do que a entrega dos documentos em si, eram as imagens que seriam gravadas, o filme. Tudo seria cuidadosamente planejado. “O que este filme está dizendo é que nós somos cool. E sermos cool significa que vamos vencer”.
Os episódios, exibidos em formato de série, deveriam lembrar um estilo road movie, câmera na mão, tomadas informais, e muita cor local. Através de nós Julian também conheceria um pouco da realidade de cada um dos países visitados. Era importante, dizia ele, transmitir o clima de suspense, segredo, e de aventura – que era bastante real: enquanto uma turma de jornalistas iria visitar ex-repúblicas soviéticas sob regimes autoritários, nós iríamos entregar os documentos literalmente nas barbas do Tio Sam. Uma terceira equipe, que deveria viajar pela África, acabou abortando a missão.
Era mais ou menos esse o espírito da fase 3 do Cablegate; “neste pendrive há documentos que comprovam a corrupção de governantes e a influência dos Estados Unidos sobre diversos governos. São os mesmos documentos que têm derrubado governos ao redor do mundo, levado à expulsão de embaixadores e causado revoltas populares. E eu os estou confiando a você, para que você avalie este material e o publique da maneira como ele merece”, descreveria Julian Assange em um vídeo de apresentação para a nova fase, os olhos fixos na câmera, na mão um minúsculo pendrive preto.
Na verdade nós não estávamos levando nenhum dos tão cobiçados documentos. Tudo fora planejado com muita astúcia. O “pacote” continha senhas, um vídeo de apresentação, um contrato estabelecendo colaboração com os veículos, e as chaves para uma relação direta com o núcleo central do WikiLeaks. Uma vez em cada país, quem iria hospedar a equipe seriam os jornais locais. “Mas esses jornais têm que entender que nós não somos monogâmicos”, brincou Julian. Ou seja, se a cobertura fosse ruim, poderíamos buscar outros parceiros no mesmo país.
A reunião se arrastava nos pormenores da viagem: o roteiro, os parceiros já contatados, o que iria e o que não iria aparecer no filme. O repórter da Trip já não se aguentava, como descreveu depois na revista. “Em meio a esse cenário, as horas passam e nada de alguém falar em comida. Minha fome física superou a jornalística e turbinou minha cara de pau. A solução, sugerida pela Natalia, foi eu mesmo invadir a cozinha, pôr dois panelões de água pra ferver e fazer uma batelada de macarrão ao pesto. Fiz isso. Na hora em que ficou pronto, todos, inclusive o entrevistado, pegaram seu pratinho, agradeceram a iniciativa e comeram com gosto. Minutos depois, como sempre, todo mundo de volta aos seus laptops, sérios. Refeições, digamos, formais, são raras. Mas momentos de descontração acontecem o tempo todo. Como quando a própria Natalia quebra o gelo em um sisudo momento: “Vamos brincar de Google fight?!”. “Põe Assange x Madonna”, alguém sugere. “Ah, não, claro que eu vou perder”, retruca o próprio, fingindo indignação. “Então põe a Cher!”, sugere outro, e o povo cai na risada. Em tempo: Assange perde no Google fight pra Madonna e também pra Cher no número de menções no mecanismo de buscas. Mas ganha de Ronaldinho, da arquirrival Hillary Clinton e do revolucionário vintage Che Guevara”.
Naquela noite, todos voltaram para Ellingham Hall, ocupamos o quarto mais ao topo, no terceiro andar, não sem antes fazer uma porção de caipirinhas para os anfitriões; basta colocar dois brasileiros pra fazer uma caipirinha no estrangeiro que eles discutirão sobre como se faz a caipirinha perfeita. Lino gentilmente aceitou dormir sobre uma maca de socorro do Exército, um dos diversos aparatos militares que se espalhavam pela casa do ex-correspondente de guerra, Vaughan Smith.
E assim a revista Trip conseguiu a façanha de ser “o primeiro veículo brasileiro” a entrar na casa onde Julian estava preso.
Em Ellingham Hall, Lino e Eliza chegaram a organizar um cenário perfeito para as fotos da entrevista, a serem feitas por ela. Haviam reordenado quase tudo no segundo salão. Um belo divã verde com bordados seria a peça central na entrevista, com duas poltronas ao lado. O fundo seria uma parede ornamentada por quadros ancestrais, abajures antigos, sustentando a mobília de antiguidade. Mas não: a decisão do WikiLeaks era não expor nenhum detalhe da casa. “Aqui mora uma família”, resumiu Julian sem muita paciência. Morava; e àquela altura os Smith também já estavam cansados da prisão na qual eram eles também prisioneiros não intencionais. Sua casa se transformara em um bunker, num eterno entra-e-sai de jornalistas, ativistas, advogados, fãs, estranhos das mais diversas partes do mundo. Somente naquele fim de semana, além da equipe do WikiLeaks que estava temporariamente morando em torno de Julian – cinco pessoas de cinco países diferentes – passariam um jornalista russo (que traria talvez a melhor vodka saboreada durante todo aquele ano), Andrew O'Hagan, autor da primeira e única autobiografia não autorizada na história, do próprio Julian; e um amigo australiano.
Enquanto isso, lá fora, no enorme gramado diante da mansão, Pramvera coloria com as duas filhas uma tela de pano, sobre um tripé; claro que a maior parte da tinta acabava na roupa delas. Eu até tentei elogiar a bela cena familiar. “É gostoso”, respondeu Pram, como era chamada. “Mas seria mais divertido se estivéssemos sozinhas”.
O australiano era parceiro dos primeiros anos de hacker-ativismo na Austrália e estava estudando em Cambridge. Viera especialmente no sábado, cobrindo cerca de 50 quilômetros de bicicleta no percurso; Sarah preparou uma surpresa para o chefe, dizendo que se tratava de mais uma entrevista com um jornalista. O rapaz foi calorosamente recebido, participou das reuniões, foi chamado a palpitar nos projetos; sorridente, declinou dormir na mansão e, no começo da tarde, subiu na bicicleta e partiu. No entra-e-sai de gente havia às vezes um sabor melancólico. Tornara-se muito difícil confiar em qualquer um. Todo mundo, dizia Julian, pode ganhar dinheiro comigo. Algo que eu falar aqui pode sair no jornal; rapidamente qualquer pessoa pode se tornar interesseira.
A entrevista para a Trip acabou sendo montada em meio ao gramado. Ventava um pouco, mas Julian, de terno e cachecol azul, aprumado, se mostrava treinadíssimo a lidar com a câmera. Ao mote, quem estava afinal no controle, respondeu: “conseguimos sair vitoriosos na coisa mais difícil que nos propusemos a fazer, que foi a divulgação dos documentos diplomáticos. Teve outras publicações difíceis, mas essa foi de longe a mais complicada, e nós conseguimos”.
A conversa se arrastou um pouco demais – até que Sarah marchou para interromper o papo, os passos pesados na grama. “Chega! Nós temos muito, muito o que fazer, estou ficando nervosa”, disse. Julian manteve a calma, inverteu a cadeira em que sentava sobre a sua cabeça, e a carregou para a mansão em silêncio. A revista saiu com uma enorme foto de Assange sorridente e verde-amarelo, em Maio. Ainda lacrou na capa: "O Assange é Nosso"
Lá fora, a equipe Caribe guardava o equipamento quando foi interprelada por um homem ao volante de uma caminhonete 4x4. “O que vocês fazem aqui? São convidados?”. Era um dos seguranças que, agora, faziam a ronda da fazenda. A cara de poucos amigos era um lampejo que contava, junto com os suspiros de Pramvera, quanta coisa mudara.
Dentro da casa, os computadores estavam sendo revisados e criptografados por um programador inglês. Em especial, o de Eliza, que abrigaria todo o valioso registro visual. Ela andava de um lado pro outro, expressão concentrada, repetindo em voz alta a senha “nossassenhoradoceu123senhordobonfim...” O resto do equipamento consistia em dois pequenos netbooks de pouco valor. Os integrantes do WikiLeaks revisavam as fotos feitas no dia anterior, decidindo o que não deixariam que fosse. Lá fora, Julian falava ao celular com um potencial produtor para a série de TV. De terno, discutia a parceria compenetrado, a postura solene – não fosse estar pulando sobre cama elástica, brinquedo das crianças. A cena era tão saborosa, que por alguns minutos um silêncio tomou a sala. Eliza sacou a câmera fotográfica, não se aguentando. Tirou fotos que mais tarde, seriam vetadas pelo próprio Julian. “Há sensibilidades políticas em mostrar algo assim ao público. Vocês não entendem”, diria, taxativo, sem perceber um entre-olhos dos brasileiros, como dizendo: “tudo para esse aí é politicamente sensível...” A foto, no final, foi publicada, mesmo sem uma autorização expressa do WikiLeaks.
É talvez o mais fiel registro visual do estilo gerencial de Assange e de como foi dirigida, a pulso de ferro e pés no ar, a aventura do Cablegate.
Uma peça essencial em toda a história, de especial zelo para o hacker australiano, eram os pendrives, que carregariam a chave para todas as etapas da entrega dos documentos.
Pendrives eram um símbolo da cultura hacker, um instrumento de significado. Por isso, Julian reagiu indignado quando suas assistentes entregaram pendrives comuns à equipe do Cablerun. Até que elas voltaram com um objeto preto, de não mais de 2 centímetros quadrados: “esse sim é bacana”, elogiou o chefe. Como eu, libriana, avoada, ia fazer para não perder aquela coisiquinha? Resolvemos que eu levaria o pendrive-master (minúsculo), em uma corrente no pescoço, enquanto Eliza e Lino carregariam back-ups em caso de necessidade. Cada um deles continha páginas e páginas de manuais sobre como usar a criptografia, senhas, contratos a serem assinados, um emaranhado que, no final, gastava cerca de vinte minutos para chegar ao que interessava: o vídeo de apresentação.
Nele, Julian apresentava a equipe, sentado, com todos à sua volta, e recomendava ao editor do jornal que confiasse em nós. E então me entregava o diminuto pendrive que acabaria nas mãos dos parceiros caribenhos. Selava, assim, a parceria. O mais importante era que o jornal se comprometesse a publicar todos os documentos em um certo período de tempo, realizando, com esmero, a “limpeza” de quaisquer nomes que pudessem sofrer ameaças. Os editores deveriam sentir responsabilidade de ter estes documentos nas mãos, e se comprometer a fazer bom jornalismo, primando pela verdade.
Mas todo o procedimento era tão complicado que chegamos a ensaiar diversas vezes como seria apresentada e discutida a parceria. “Você é muito mole com eles, Natalia!”, Julian brigava. “Não estamos pedindo nada, estamos entregando algo valioso, preste atenção”. E lá ia eu repetir o texto, diante da câmera que tudo registrava, enquanto Joseph, um dos jornalistas da equipe do WikiLeaks, fazia as vezes de um editor caribenho apressado e insolente. Eu tinha que me fazer de durona. E caíamos na risada.
Antes de dormir, um bolo de notas foi guardado com cuidado, algumas centenas de libras, apenas o essencial para custos extras. Era importante evitar o uso de cartões de crédito. O bloqueio financeiro já durava quase tanto tempo quanto a prisão domiciliar, e era uma forte sinalização política das empresas Visa e Mastercard. Elas registram, armazenam, e podem entregar sem nenhum impedimento todas as movimentações financeiras de qualquer um de seus clientes ao governo americano.
Aos poucos, nos despedimos novamente de Ellingham Hall, cada um carregando seu pendrive e um calhamaço de páginas com instruções sobre cada etapa da viagem para serem lidas com cuidado, memorizadas e picotadas, para então serem espalhadas por diversas latas de lixo diferentes. Segui à risca; e fui a última a partir.
Era domingo de manhã e antes de embarcar no trem, nos dirigíamos a um café na praça central da pequena Diss, onde aproveitamos o sol para tomar um english breakfast – ovos, salsicha, café aguado. Éramos três, sentados na calçada, mas era claro que Julian não conseguia ficar tranquilo em pleno ar livre, os olhos perscrutando o entorno na mais calma manhã primaveril. A certa altura, um inglês de postura informal, meio careca nos seus 40 anos, se aproximou estendendo a mão. “Me desculpe, mas você é Julian Assange?”. “Não”. “Ah”, respondeu o homem, confuso. “Que pena. Eu sou um fã”, disse, devolvendo a mão ao bolso, antes de se virar e ir embora. “Ele tinha alguma coisa no bolso”, disse Julian, meio sem graça.
Horas antes, depois de mais uma noite pouco dormida, Julian me presenteara com um dos raros lampejos sobre futuros vazamentos do WikiLeaks: “Nós estamos com as fichas de todos os prisioneiros de Guantánamo”, disse, excitado e com aquele ar alegre de hacker que quebrou uma senha, adolescente que descobriu a chave para um quarto proibido. “Vamos publicar nas próximas semanas”. “Muito bom”, respondi. “Só não pode ser quando estivermos no Caribe, pois estaremos ali do lado”. “Apenas depois, em maio”, garantiu.
Ele mentiu.
Na verdade, o nosso “tour” foi repleto de surpresas, desde a primeira hora quando, ao aportar em Santo Domingo, capital da República Dominicana – nossa primeira parada –, fomos recepcionados por um homem forte, alegre e bonachão, anéis nos dedos, colar de ouro e ares de dono do pedaço, que nos apressou para dentro de uma enorme picape 4x4, mostrando sobre o console a sua pistola automática.
O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo é uma parceria da Agência Pública e do Meio. A série está sendo publicada como uma newsletter pop-up, um novo formato de newsletter que se encerra após um determinado número de edições.
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