Por isso não estranhei nada quando o secretário executivo me ligou para perguntar se a gente conseguiria trazer o WikiLeaks para o Congresso daquele ano. “Claro”, respondi.
Naquele primeiro semestre de 2011, todos queriam Julian Assange. Ele era o homem que havia movimentado o mundo, causado o maior rebuliço diplomático de todos os tempos, involucrando mais de cem países no meio – e uma figura exótica, com ideias instigantes mas nem sempre compreensíveis. Ele vendia capas de jornais, revistas, e estava sentado sobre milhares de segredos do mundo todo. Choviam convites para congressos, palestras, entrevistas às quais ele não podia comparecer, afinal estava acorrentado a Ellingham Hall.
Quando não havia Julian, Kristinn Hrafnsson era a melhor opção. O porta-voz do WikiLeaks, um famoso jornalista islandês de meia idade, falava apaixonadamente, com uma fúria e poesia típicos das lendas nórdicas do seu enigmático país, uma ilhota onde vivem 300 mil pessoas, cercada de neve e gelo. Kris fazia muito bem seu papel, duplicando a revolta, a retidão de princípios e o charme esbranquiçado do líder do WikiLeaks onde fosse necessário. Ofereci o seu nome, que a Abraji topou na hora, e assim em julho de 2011 ele deu a volta ao mundo, voando da Islândia para Sydney, onde teria um debate acalorado com o ex-chanceler australiano Gareth Evans em um programa de rádio, argumentando que a organização “era uma força do bem” (o diplomata, irritado com os vazamentos de documentos americanos, dizia que o resultado seria “reduzir o fluxo livro de informações dentro de governos”). Deu uma palestra na Universidade de Sydney. Dali, voou para Melbourne, de volta a Sydney, onde passou seu aniversário de quarenta e nove anos em uma rave junto com dezenas de apoiadores do WikiLeaks, gravou um episódio de “Rap News” com os jovens rappers-jornalistas (“Pressões não vão nos deter. O Wikileaks vai continuar a publicar”, rimou, com forte sotaque e zero malemolência), e dali para Buenos Aires, para então pousar no Brasil.
Kristinn aceitou prontamente o convite e me perguntou se poderia ficar na minha casa. Respondi que claro, poderíamos conversar livremente e, além disso, eu estava precisando de companhia. Meu relacionamento de 5 anos havia se esfarelado no meio desse turbilhão, e eu precisava dar umas boas risadas. “Vamos ter muito tempo para isso”, me disse Kris. “Eu te faço companhia, e compartilhamos algumas taças de vinho”. E, pela primeira vez, eu pensei nele como um flerte.
Eu explico. Além de ser um homem com uma postura daqueles de filme de Hollywood, enorme, sisudo, sempre com um paletó bem cortado e elegantemente bem passado, camisa, sapatos e calças sociais, Kristinn era 17 anos mais velho do que eu, os cabelos totalmente brancos. Morava na Islândia, de onde jamais saíra, mesmo em meio ao caos do Cablegate, por criar os dois filhos pequenos em guarda compartilhada com a ex-esposa. Era famoso no seu país, havia apresentado um programa semanal de jornalismo investigativo na TV estatal, a mais popular do pequeno país, eleito por três vezes o melhor jornalista islandês, “um verdadeiro rock star”, como descreveu uma jornalista amiga minha. Nas horas vagas, fazia parte de um coral de homens (juro!) que cantavam para as belezas naturais brancas e geladas da Islândia, uma tradição do país.
E eu ainda estava naquele esquema de fazer reportagens de busão, mochilas com laptop nas costas, dormindo em hostels e dividindo quartos. Éramos totalmente diferentes. Ele era do gelo, eu, dos trópicos.
Quando o conheci, naqueles primeiros dias que passamos juntos em Ellingham Hall, ele havia me perguntado quantos anos eu achava que ele tinha. Eu disse: “Uns 50 e poucos” e ele fechou a cara, então tentei consertar dizendo que ele parecia um ex-namorado meu, só que mais velho, piorando ainda mais a minha mancada. Ou não.
Alguns dias antes da chegada de Kristinn, que eu ajudara a coordenar junto à equipe da Abraji, pois implicava uma quantidade complicada de escalas, recebi um email que me deixou abalada. Era a descrição da mesa de debate durante o Congresso. Estavam lá, Kristinn Hrafnsson, editor do WikiLeaks, e Fernando Rodrigues, da Folha de S Paulo. Eu não fora convidada. Mandei um email bastante mal-educado para o secretário executivo, Guilherme Alpendre, que se tornaria um grande amigo: “vocês têm certeza que não vão convidar a jornalista que está coordenando toda a publicação dos documentos do Brasil”?, escrevi.
Meu nome foi incluído, afinal.
O vôo atrasou mais de um dia, que ele teve que passar em Buenos Aires. Na noite seguinte, fui buscá-lo no aeroporto. Eu estava nervosa e um tanto insegura. Mas, no fundo, concordávamos em quase tudo: ambos achávamos que o WikiLeaks deveria fazer mais jornalismo, focar seu trabalho em jornalismo investigativo, fugir da cilada de tornar Julian o centro das atenções. E ambos éramos (somos), absoluta e irremediavelmente apaixonados por jornalismo.
Kristinn me pareceu mais velho do que eu me lembrava, quando saiu pela porta principal do aeroporto de Guarulhos, depois de 20 horas de vôo, uma pílula de dormir que não funcionou muito bem, com seus cabelos brancos e paletó alinhado mesmo depois disso tudo. Nos abraçamos longamente, mais do que ambos esperávamos, e eu não tinha ideia do que ia dizer. “Preciso de um cigarro”, interrompeu o islandês.
Ao chegarmos em casa, hospedou-se no meu quarto, maior e mais aconchegante – e eu fui dormir no quarto da amiga com quem morava. Levei-o a um bar barulhento na Lapa onde poderíamos conversar tranquilamente. Estava curiosa: desde que chegara da viagem às Bahamas, me dediquei basicamente à fundação da Agência Pública e tive pouco acesso a Julian – e nenhuma boa conversa com algum dos integrantes, que seguiam enfurnados em Ellingham Hall. Queria saber o que estava acontecendo. Trazia também uma mensagem do Wikileaks, que não conseguira falar com Kris: um convite para ele voltar mais cedo a Londres para participar da festa de 40 anos de Julian, que seria no sábado, dia 4 de julho.
No dia seguinte, 5 de julho, começaria o julgamento do pedido de extradição feito pela Suécia. Todas as forças do Wikileaks estavam nisso. Kristinn, irritado como sempre, falava no seu acento da certeza que todos tinham de que o pedido de extradição tinha o dedo americano. Àquela altura, mantinha pelos editores dos maiores jornais do mundo o mesmo desprezo que o chefe. “O Bill Keller é um idiota”, dizia Kristinn, “sempre admirei muito o New York Times, foi uma tremenda decepção”. Contou da sua viagem à Australia e do vulcão Islandês Eyjafjallajökull – aprendi a pronunciar o nome – que paralisou toda a Europa, com suas cinzas furiosas, fez seu voo até Buenos Aires atrasar um dia. Kris falava dele com certo orgulho; depois de alguns dias eu percebi que, todos os dias, ele acessava o serviço nacional de acompanhamento de vulcões, para ver se havia algum alerta de novas erupções. Um hábito dos islandeses. Eu fiquei surpresa ao perceber que ele não sabia muito mais sobre os planos de Julian do que eu. Julian parecia esconder dele pedaços fundamentais de informação sobre os planos, por excesso de segurança ou excesso de zelo em “compartimentalizar” a informação (ou uma dose de paranoia que, convenhamos, era justificada).
Nos dias seguintes, meu sobrado na Pompéia, zona oeste de São Paulo, virou o seu QG, de onde discutia próximas viagens e entrevistas pelo celular, sempre falando alto e sempre com um tom de indignação, discutia as notícias de Islândia (os melhores amigos ainda estavam à frente do programa investigativo) e acessava boletins diários sobre o comportamento dos filhos na escola.
Kristinn repetiu no Brasil a rotina a que estava acostumado em qualquer lugar que fosse: entrevistou-se com dezenas de jornalistas de diversos veículos. Deu uma entrevista à revista Época, falou com o Estadão,com o UOL... As entrevistas eram realizadas na salinha improvisada, onde não cabiam mais de 4 pessoas, onde a Agência Pública se preparava para ser oficialmente fundada. A festa de inauguração seria no domingo seguinte, um dia depois do debate com Kristinn no Congresso da Abraji, e no meio de uma tumultuada semana na qual os últimos documentos ainda inéditos do Cablegate no Brasil vinham à tona, através de reportagens publicadas no site da Agência, pouco mais que um blog em Wordpress modificado que eu mesma tinha montado.
Kristinn era de longe o homem mais versado na história política recente do mundo que eu conhecera – como jornalista de notícias diárias, acompanhara e lembrava-se de todas as grandes histórias dos últimos 20 anos, o que lhe dava uma grande vantagem para discutir quase todas as revelações do Cablegate – e julgar todas as jogadas do cerco a Julian Assange, que cada vez apertava mais. E Kristinn Hrafnsson, de nome praticamente impronunciável no Brasil (“já vem criptografado”, brincava o pessoal do WikiLeaks), trazia seu pedaço da Islândia, junto consigo, na língua que falava, a mais antiga do mundo em uso, nas histórias que adorava repetir sobre os vikings e as sagas (“sabia que foi um islandês o primeiro a descobrir a América”?) e pelas historinhas dos dois filhos, que deixara em segurança na pequena ilha gelada (“sinto falta deles todos os dias”).
Sobre o WikiLeaks, falava pouco, ainda menos sobre as intrincadas questões internas, novos projetos ou novos vazamentos. Eu tampouco perguntava: era um acordo tácito que subentendia o fato de que, estivessem onde estivessem, poderiam estar sendo ouvidos.
Uma tarde, levei-o para trocar a passagem para Londres, conforme pedido pelo WikiLeaks. Ele parecia enorme naquela lojinha de shopping center, sem entender patavinas do que eu falava com a atendente, mas negou-se peremptoriamente a ir dois dias antes do aniversário. “Mas aí eu vou perder um dia inteiro com você”, disse, com um ar tão natural, como se eu já fosse sua namorada.
Aconteceu no dia em que falamos na Abraji e, como não poderia deixar de ser, depois de uma furiosa discussão.
Naquela tarde, à plateia, de jovens jornalistas ou estudantes, Kristinn contou como fora sua trajetória jornalística, passando de repórter de cidades a repórter investigativo, e sobre o episódio da sua demissão do maior jornal da Islândia depois de publicar um documento do WikiLeaks que revelava práticas corruptas do bando Kaupthing, que sem qualquer fiscalização, ajudou a causar uma enorme crise financeira em 2008. As revelações levaram a uma onda de manifestações e à queda do primeiro ministro da Islândia.
Fernando Rodrigues ressaltou o extremo cuidado do WikiLeaks ao pedir a revisão de todos os documentos antes da publicação: “comigo eles sempre foram muito criteriosos e profissionais, ao contrário do que dizem”. Na saída, depois de dar dezenas de breves entrevistas a estudantes, fomos almoçar em um caro buffet perto da universidade; sentado no florido jardim do restaurante, Kristinn gravou uma hilária mensagem de aniversário para Julian: “fucking old”, dizia, em islandês, segurando um papel escrito: “Google translate”. Eu também gravei uma mensagem na qual dizia que “sinto que em breve estaremos juntos”. De fato, uma semana depois eu estaria de volta à mansão.
Naquela noite, eu escoltei o ilustre visitante para a festa de recepção do Congresso da Abraji, no elegante apartamento de um dos diretores no bairro de Higienópolis em São Paulo. Havia pouco mais de 50 pessoas, servidas por empregados uniformizados, entre canapezinhos e vinhos variados, estavam ali alguns dos principais jornalistas brasileiros, e alguns do mundo. Eu tive que colocar um chiquérrimo vestido branco e colocar uma pesada maquiagem para não parecer tão menina do lado do meu acompanhante. Kristinn tirava um barato, cantarolando para mim a música “uptown girl”, de Billy Joel.
Chegamos de braços dados, tendo fumado um cigarro na porta do prédio antes de entrarmos no ambiente formal. Quando abriram a porta, fomos recebidos com grande entusiasmo por Fernando, que puxou um longo papo com o islandês. A festa foi bastante entediante, não tivesse sido pela discussão acalorada que o editor de infografias no New York Times, Aron Pilhofer, puxou com o porta-voz do WikiLeaks (ou vice-versa, ninguém se lembra mais quem começou a discussão). Kristinn, irritadíssimo, atacava o jornal pelo perfil ofensivo que fez de Julian, chamando o Bill Keller, editor do jornal de “covarde” por ter cedido às pressões do governo americano.
Aron negava; não houve qualquer pressão do jornal, estava apenas tentando fazer bom jornalismo, ele mesmo trabalhara no vazamento e Julian era “insuportável”. Aumentava o tom de voz, riam de vez em quando. Como jornalista, notou Aron, foi um completo absurdo o WikiLeaks publicar os nomes de informantes dos militares dos EUA em meio aos arquivos do Afeganistão. “Isso já faz um ano! Get over it”, disse Kristinn, encerrando o assunto, antes de pegar na minha mão e pedir para irmos embora.
Eu fiquei bem aborrecida com tudo aquilo e no táxi de volta, reclamei que às vezes parecia que o WikiLeaks se comportava como um moleque brigão, cheio de testosterona, brigando com outros machinhos semelhantes no mundo do jornalismo.
“Estou muito cansada”, disse. Kristinn me acalmou e, para minha surpresa, pediu desculpas. Pôs a mão sobre meu ombro e esperou até chegarmos em casa para me dar um beijo. “Eu vim pensando em você” ele disse “Eu fui até a Austrália porque sabia que só assim poderia vir ao Brasil”.
No dia seguinte, tínhamos que acordar cedo: era dia da inauguração da Pública e teria uma grande festa de inauguração na vila italiana onde é a nossa sede, no centro de São Paulo. Eu fui a mestre de cerimônias, traduzindo as palestras não só de Kristinn, mas também de Andrew Jennings, famoso jornalista inglês cujo principal foco eram as corrupções da FIFA e que prometeria, naquela tarde, “tirar as calças do Ricardo Teixeira”. Aron Pilhofer, do New York Times, também falou.
Kristinn me fez passar uma grande vergonha quando, ao desejar longa vida à Pública, ele olhou pra mim e disse que a “A Pública é uma flor que brota no deserto do jornalismo investigativo”. Eu me recusei a traduzir a frase.
Embora tivesse a aparência de um homem contido, de movimentos econômicos e fala pouca, daqueles que medem bem cada palavra, Kristinn era talvez o mais desbragado de todos os que cercavam Assange; era incapaz de disfarçar sua explosiva opinião sobre quase tudo sem a menor recolha a quem lhe perguntasse, o que fazia dele o melhor e o pior Porta-Voz do mundo – sua sinceridade era tão virulenta que derrotava o mais cínico dos entrevistadores, mas rebelde a ponto de jogar por terra qualquer estratégia de comunicação de longo prazo.
Naquela tarde, debaixo de um gazebo branco, a chuva fina ia e vinha quando ele respondeu de sopetão à pergunta fundamental: “mas é legal para esses whistleblowers pegar os documentos dos governos ou organizações?” “claro que não. Mas quem liga para isso?”, respondeu, sobre aplausos furiosos da jovem plateia de cerca de 150 pessoas.
“Se você está fazendo algo que é moralmente certo, esse dever moral é superior a qualquer lei ou contrato que você tenha assinado...”.
Mais uma chuva de aplausos. Um rock star.
Depois da festa, encerrada com um samba, voltamos para casa e arrumamos as malas para uma breve viagem para Ilhabela, no litoral paulista, onde cometi o enorme erro de levar um homem de sangue islandês para ver o pôr do sol sem repelente de mosquitos. Kristinn quase foi a loucura nos dias seguintes – obviamente todos os borrachudos fizeram uma festa ali – e passou a pedir conselhos a todos os jornalistas que o entrevistavam sobre o que, diabos, fazer para se livrar da coceira. Como era fácil derrotar um viking, pensei.
Eu havia decidido ir junto com ele. Assim, na sexta-feira, portadora de uma passagem barata com escala em Lisboa, e depois Londres, para participar da festa de aniversário de Julian – fui para o aeroporto de Guarulhos pela manhã; Kristinn sairia no fim da tarde.
Esperei-o com uma folha contendo uma mensagem cifrada, e abracei-o forte quando ele apareceu, surpreso, pela porta de entrada. “Você está aqui!”, disse. “Estava trabalhando...”, respondi, com o laptop ainda sobre uma daquelas cadeiras de aeroporto. Fumamos um cigarro e combinamos de nos encontrar mais tarde na estação de Liverpool Street, para tomar o trem direto para Norfolk, de onde seguiríamos para Ellingham Hall naquela mesma noite. Kristinn precisava de um tempo. Os dois filhos chegariam dali a uma hora, vindos da Islândia, e a minha presença seria um choque. Não havia nem dois dias que estávamos juntos, mas eu já era a sua primeira namorada desde a separação.
Três horas mais tarde, sentei em um pub perto da Estação de Liverpool, para fazer hora até que Kris ligasse. “As crianças chegaram, estão bem”, disse ele, “me encontre no McDonald 's, vou dar um sunday a eles”. Eu os vi pelo vidro do pub. Kristinn ainda estava com seu paletó escuro, mas trazia em uma mão uma pequena menina, com os longos e loírissimos cabelos desgrenhados sobre os ombros, que pulava eufórica apontando para o balcão. Demoraram alguns segundos até eu ver o outro, maior que ela e mais gordinho, disputando a atenção do pai tentando falar mais alto que a irmã; era a perfeita expressão do que se imagina quando se pensa em um menino islandês. Os três pareciam estar tão à vontade, tão naturalmente às turras com a irmã, que eu custei a lembrar como era o Kristinn sem eles. Compreendi de onde vinha a doçura do porta-voz que se orgulhava de peitar os poderosos, e soube que eu estava apaixonada.
Acho que hoje, para terminar, vamos ouvir Uptown Girl?
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